Sofia Ribeiro Branco

Licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, em 1999, concluiu o mestrado em Ciências Jurídicas em 2008, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É advogada, exercendo a sua actividade na área de contencioso, onde tem trabalhado, essencialmente, em assuntos de contencioso comercial, societário, criminal e contra-ordenacional, em Portugal e no estrangeiro.

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O estado de emergência por calamidade pública decorrente da pandemia por COVID-19 foi declarado em 18.03.2020, tendo-se iniciado às 00:00 do dia seguinte. À data em que escrevemos, foi já declarada a prorrogação do estado de emergência, pelo menos, até às 23:59 do dia 17.04.2020.

No contexto criminal, colocam-se diversas questões tão prementes quanto a circunstância de o processo penal ser especialmente vocacionado para a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Neste período de situação excecional e enquanto vigorar o estado de emergência, a perseguição de determinados tipos de crime é mais premente e os diplomas que o executam manifestam preocupações com a fiscalização célere e eficaz dos ilícitos.

Apontaríamos 3 categorias de comportamentos criminalmente relevantes e de fiscalização mais intensa no período em que durar a presente situação excecional: (i) aqueles que decorrem diretamente do regime do estado de emergência em geral, como a desobediência; (ii) aqueles que resultam de um estado de emergência como o presente, por calamidade pública com fundamento em pandemia, nomeadamente infrações antieconómicas e propagação de doença; e (iii) aqueles que encontram no estado de emergência um ambiente propício à respetiva perpetração no estádio de atual desenvolvimento da sociedade, como os cibercrimes.

Desobediência(s)

Como princípio geral existente no nosso ordenamento jurídico, e vigente muito antes do COVID-19, a violação do disposto na lei que consagra o regime do estado de emergência (Lei n.º 44/86, de 30 de setembro), na declaração do estado de emergência e na execução desta declaração faz incorrer os autores da infração em crime de desobediência.

O Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência, densificou alguns comportamentos suscetíveis de especificamente constituir crime de desobediência, relacionados com o incumprimento das obrigações e deveres nele estabelecidos.

Assim, de acordo com o referido Decreto, foi determinada a obrigação de confinamento obrigatório dos doentes com COVID-19, dos infetados com SARS-Cov2 e dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa que não fiquem confinados em estabelecimento de saúde, no domicílio ou no local que for indicado pelas autoridades de saúde, tendo ficado expressamente previsto o crime de desobediência por desrespeito pela mencionada obrigação.

Por outro lado, o Decreto em causa ordenou o encerramento de determinadas instalações e estabelecimentos, a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho e a suspensão de atividades de prestação de determinados serviços, tudo conforme regulado no mesmo diploma, tendo ficado previsto que o incumprimento de ordens legítimas das autoridades competentes por violação desta determinação também constitui crime de desobediência.

Na renovação do estado de emergência, em 02.04.2020, o crime de desobediência foi musculado, estando agora expresso que pode incorrer na prática do mesmo quem resistir, de forma ativa ou passiva, às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do estado de emergência. Ou seja, o não acatamento de ordens das autoridades em relação a limitações ou a deveres especialmente surgidos neste período, constituirá igualmente desobediência. Notamos, quanto a este aspeto, que o período da Páscoa foi tratado como um período excecionalíssimo dentro do período excecional, na medida em que foram impostas limitações de circulação entre 9 e 13 de abril de 2020, cujo desrespeito apenas será punível se ocorrer nestas datas.

Sem prejuízo da reconhecida importância de respeitar as regras impostas pelo estado de emergência, quando os casos chegam aos tribunais deverá de ser efetuada uma apreciação do concreto comportamento alegadamente “desobediente”, enquadrando-o na situação específica em que ocorra. Com efeito, como sucede na apreciação de qualquer ilícito criminal, poderão verificar-se causas de exclusão da ilicitude e da culpa.

A este propósito, podem surgir situações de aparente desobediência que, porém, não são puníveis ou não justificam punição. Por exemplo, podem as autoridades constatar que determinado estabelecimento de encerramento obrigatório tinha as portas abertas aparentemente de forma indevida, verificando-se, no entanto, que as instalações estavam abertas com permissão do membro responsável pela área da economia (o que a legislação do estado de emergência prevê) ou que uma pessoa que esteja doente com COVID-19 é encontrada fora do domicílio porque era a única capaz de socorrer alguém que estava em perigo.

Os demais crimes de desobediência previstos no ordenamento jurídico mantêm-se em vigor, merecendo, neste período, particular destaque o crime de desobediência no contexto das infrações antieconómicas conforme abaixo tratado.

Infrações antieconómicas

O facto de estar em causa um estado de emergência fundado em razões de saúde pública em relação a uma doença para cuja prevenção é recomendada a utilização de produtos com determinadas características e no âmbito do qual foram introduzidas fortes restrições ao direito de circulação, bem como a circunstância de ter sido criado um clima de incerteza quanto à possibilidade de contínuo abastecimento de bens essenciais, têm trazido para a ribalta o regime das infrações antieconómicas e contra a saúde pública, consagrado no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro.

Este diploma criminaliza um conjunto de comportamentos que visam, essencialmente, proteger a economia e o consumidor. Pela maior probabilidade de ocorrência neste período excecional, importa identificar alguns deles, neste caso, a fraude sobre mercadorias, o açambarcamento, a especulação e um crime de desobediência especialmente previsto no referido instrumento legislativo.

Assim, são comportamentos punidos como fraude sobre mercadorias o fabrico, a transformação, a introdução em livre prática, a importação, a exportação, a reexportação, a venda ou a circulação por qualquer outro modo de mercadorias contrafeitas, falsificadas ou depreciadas, ou de natureza diferente ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem, com intenção de enganar.

Por outro lado, praticará o crime de açambarcamento quem, em situação de notória escassez ou com prejuízo do abastecimento regular do mercado de bens essenciais ou de primeira necessidade ou ainda de matérias-primas utilizáveis na produção destes ocultar existências, recusar a sua venda segundo os usos normais da respetiva atividade ou condicionar a venda à aquisição de outros bens. A recusa de venda de bens essenciais pode, no entanto, ser justificada em determinados casos, nomeadamente se for para satisfazer as necessidades do abastecimento doméstico do produtor ou do comerciante. É também admitida a recusa de venda, entre outras situações, se a quantidade solicitada for suscetível de prejudicar a justa repartição entre a clientela, em quantidade manifestamente desproporcionada às necessidades normais de consumo do adquirente ou aos volumes normais das entregas do vendedor.

Poderá também ser suscetível de punição por açambarcamento quem, em situação de notória escassez ou com prejuízo do regular abastecimento do mercado, adquirir bens essenciais ou de primeira necessidade em quantidade manifestamente desproporcionada às suas necessidades de abastecimento ou de renovação normal das suas reservas.

Quem, nomeadamente, alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor ou quem vender bens ou prestar serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço poderá ser punido pelo crime de especulação.

Na análise do comportamento suscetível de pré-figurar um crime de especulação deverão, na nossa perspetiva, ser verificadas as razões subjacentes ao aumento dos preços dos bens no período relevante. Pense-se, por exemplo, no fabricante que necessita de matérias-primas que o respetivo fornecedor passou a vender a um preço mais elevado ou no vendedor que foi confrontado com o aumento dos custos de transporte. O aumento dos preços no final da cadeia de abastecimento pode dever-se a diversas causas, que podem ser legítimas.

Finalmente, salienta-se o crime de desobediência a requisição de bens pelo Governo, por via do qual é punido quem não cumprir a requisição, ordenada pelo Governo, de bens indispensáveis ao abastecimento das atividades económicas ou ao consumo público.

Questão comum aos crimes acabados de enunciar é a de saber o que se entende por bens essenciais ou de primeira necessidade.

Na atual conjuntura, apesar de não terem sido expressamente identificados esses bens, foi determinado que devem manter-se abertas as atividades de comércio a retalho que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais, nomeadamente supermercados, frutarias, talhos, peixarias, padarias, oculistas, drogarias, farmácias, entre diversos outros.

Adicionalmente, importará ponderar se as recomendações de profissionais de saúde ou a mera divulgação de opiniões sobre os benefícios de usar determinado equipamento permitirão qualificar como bens como essenciais, porque alegadamente aptos a evitar ou a mitigar o contágio, o álcool gel, o álcool, as luvas, as máscaras faciais, alguns tipos de medicamentos, entre outros.

Podem ser responsabilizados pelos crimes de fraude sobre mercadorias, açambarcamento, especulação e desobediência a requisição de bens pelo Governo, as pessoas singulares que atuem, voluntariamente, como órgão, membro ou representante de uma pessoa coletiva, bem como as próprias pessoas coletivas, quando as infrações forem cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse coletivo.

A responsabilidade criminal é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

Para além dos fatores tipicamente a considerar para a determinação da medida da pena a aplicar (o grau de culpa e de ilicitude, a gravidade da infrações, entre outros), devem ser atendidas circunstâncias associadas aos tipos de crime em causa e às condições em que os mesmos sejam cometidos, nomeadamente se a infração foi praticada numa situação de falta ou insuficiência de bens ou serviços para o abastecimento do mercado desde que o seu objeto tenha sido algum desses bens ou serviços, se a infração provocou uma alteração anormal dos preços no mercado, se o agente aproveitou o estado de premente carência do adquirente, consumidor ou vendedor, com conhecimento desse estado ou se a infração permitiu alcançar lucros excessivos ou foi praticada com a intenção de obtê-los.

Atendendo a estes fatores para a determinação da medida da pena, não pode deixar de referir-se que no presente estado de emergência por calamidade pública por questões de saúde relacionadas com a epidemia COVID-19, tem sido publicamente divulgada a escassez de álcool, de álcool gel e de máscaras, por exemplo, pelo que a venda desses bens a preços muito acima do normal no mercado ou com um lucro excessivo, aproveitando a necessidade do consumidor deverão ser tomados em consideração.

No que respeita às sanções aplicáveis, para além de multa para as pessoas coletivas e prisão ou multa para as pessoas singulares, podem ser determinadas a perda dos bens, a interdição temporária do exercício de certas atividades ou profissões, a privação temporária do direito de participar em arrematações ou concursos públicos de fornecimentos, a privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, o encerramento temporário ou definitivo do estabelecimento ou a publicidade da decisão condenatória. Além do mais, o tribunal pode ordenar ao agente que cesse, imediatamente ou no prazo que lhe for indicado, a atividade ilícita, incorrendo em crime de desobediência qualificada quem não cumprir esta injunção.

Propagação de doença

A circunstância de o presente estado de emergência resultar de uma pandemia, relativamente a um vírus que veio a revelar-se muito facilmente transmissível, traz a esta reflexão o crime de propagação de doença.

Com efeito, é suscetível de ser punido pela prática deste crime quem propagar doença contagiosa e criar deste modo perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem. Não é, pois, necessário que a transmissão ocorra, bastando que o comportamento do agente seja suscetível de transmitir a doença. Contudo, se desse comportamento resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o crime é qualificado.

A divulgação pública recorrente da especial facilidade de transmissão do vírus em causa constitui um alerta para todos os cidadãos, dificilmente sendo possível ignorar esta especificidade associada à doença COVID-19.

Acresce que a capacidade de transmissão do vírus levou a que fosse imposto por Decreto do Governo o cumprimento do dever de confinamento obrigatório em relação aos doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2, bem como aos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa. O objetivo evidente dessa norma é limitar o número de casos da doença, pelo que a respetiva violação, para além de constituir crime de desobediência nos termos já mencionados, é suscetível de configurar a prática do crime de propagação de doença.

Sendo ambos os crimes (de desobediência e de propagação de doença) públicos, as autoridades podem investigá-los sem necessidade de apresentação de queixa.

Pelo crime de propagação de doença (e também pelo de desobediência) podem ser responsabilizadas pessoas singulares e pessoas coletivas. No entanto, caso esteja em causa a violação do dever de confinamento obrigatório, importa tomar em linha de conta que esta obrigação é dirigida especificamente aos doentes e aos cidadãos relativamente aos quais as autoridades determinem vigilância ativa, que são, necessariamente, pessoas singulares.

Cibercriminalidade

Ao estado de emergência estão associados sentimentos de medo e de incerteza, pelo que o período de situação excecional em causa surge como uma oportunidade de exploração dessas vulnerabilidades. Numa sociedade em que a utilização da Internet está massificada, a informação por email de que um familiar está internado com COVID-19 pode levar a abrir um ficheiro malicioso. Por outro lado, no presente caso, a obrigação de “ficar em casa” propicia o recurso às compras online e o isolamento social cria necessidade de utilização de plataformas informáticas para reuniões profissionais, familiares e de amigos.

Os crimes informáticos são, por isso, também, uma realidade a considerar, sendo que já foi dada notícia da respetiva proliferação em ambiente de estado de emergência.

Em causa poderão estar crimes como os de falsidade informática, acesso ilegítimo, sabotagem ou burla informática.

No contexto da presente situação excecional, salienta-se que constitui falsidade informática, entre outros comportamentos, a interferência, com a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, por qualquer forma, num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes, sendo que se a conduta em causa incidir sobre dados registados ou incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena será agravada.

O mero acesso, sem permissão legal ou sem autorização pelo proprietário ou por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, a um sistema informático constitui a prática do crime de acesso ilegítimo, que será qualificado caso, através do acesso, o agente tomar conhecimento de segredo comercial ou industrial ou de dados confidenciais, protegidos por lei ou o benefício ou vantagem patrimonial obtidos forem de valor consideravelmente elevado.

Por seu turno, praticará o crime de sabotagem informática simples quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, entravar, impedir, interromper ou perturbar gravemente o funcionamento de um sistema informático, através da introdução, transmissão, deterioração, danificação, alteração, apagamento, impedimento do acesso ou supressão de programas ou outros dados informáticos ou de qualquer outra forma de interferência em sistema informático.

Poderá igualmente estar em causa uma burla informática, crime imputável, nomeadamente, a quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou utilizar dados sem autorização.

Alguns dos cibercrimes acima mencionados dependem de queixa, nomeadamente o acesso ilegítimo simples e a burla informática simples, sendo, por isso, necessário o impulso processual da vítima para se iniciar a investigação.

Apesar de os crimes informáticos não serem legalmente qualificados como urgentes, a maior suscetibilidade de perda de prova e de perda do produto do ato ilícito associados a este tipo de crimes, confere-lhes uma urgência de investigação que poderá justificar a intervenção cautelar das autoridades sobretudo em estado de emergência. De outra forma, poderão os prejuízos causados pelos cibercrimes ser de difícil ou mesmo impossível recuperação.