Carlos Reis
Professor catedrático da Univ. de Coimbra e autor de mais de 20 livros, publicados em Portugal e no estrangeiro. Foi reitor da Universidade Aberta (2006-11) e presidente da European Association of Distance Teaching Universities (2010-11).
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O ensino a distância está na ordem do dia. Entretanto, como alternativa ao ensino presencial ele configura uma pedagogia há muito consolidada e socialmente justificada.
1. Por razões dramáticas, o ensino a distância (EaD) está na ordem do dia (escrevo “a distância”, como deve ser, e não “à distância”, conforme reiteradamente tenho lido e ouvido).
Desde que fomos atingidos pelo absurdo de uma pandemia difícil de explicar por uma razão moderna ou pós-moderna, foi necessário encontrar soluções de emergência para acudir à massa impressionante de estudantes de todos os níveis de ensino que, um pouco por todo o mundo, foram obrigados a recolher a casa. Longe da sala de aula, do convívio direto com os colegas e do contacto ao vivo com o professor, os estudantes (e não só eles, claro) descobriram aquilo que já se sabia, mas nem sempre era reconhecido: que existem alternativas não para toda e qualquer prática de ensino presencial, mas para situações que convidam a essas alternativas. O EaD é uma delas, certamente a mais fiável, revelando-se até, nalguns casos, mais produtivo do que o ensino convencional. A questão é que se saiba o que se está a fazer, para quem, quando e com que métodos de trabalho.
2. Vale a pena recordar algumas coisas já sabidas. Reavivadas no atual (e difícil) contexto, elas tornam evidente o que muitos resistiam a reconhecer: que o EaD tem uma consistência metodológica e uma pertinência social e educativa que só por miopia ou empedernida resistência podem ser ignoradas.
O EaD nasceu e consolidou-se a partir de certas necessidades sociais e em função do recurso a ferramentas, a métodos e a orientações pedagógicas que procuraram responder àquelas necessidades sociais. Embora tenha a sua origem no século XIX, naquilo que então era meramente um “ensino por correspondência”, o EaD, enquanto opção formativa, afirmou-se sobretudo a partir dos anos 60 do século passado. De forma muito sintética, refiro-me a duas instituições que tiveram um papel decisivo no aprofundamento do EaD: a Open University britânica, criada em 1969 e assente, em grande parte, na televisão como veículo pedagógico (recorde-se: foi pela TV que se ensinou e aprendeu na Telescola portuguesa, uma iniciativa que, apesar das suas óbvias limitações, prestou bons serviços); a Universitat Operta de Catalunya, criada em 1994 e considerada a primeira universidade centrada em recursos telemáticos com aplicação ao EaD e com integração do digital.
Nas últimas décadas do século XX, o EaD conheceu um impulso apreciá-vel por força de solicitações socioeducativas cada vez mais insistentes. A par disso, o célere desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação e a expansão da Internet abriram possibilidades de trabalho e implantaram desafios cognitivos que, no ensino como em muitas outras atividades, geraram um sempre movente e, para alguns, admirável mundo novo. Nada que não tivesse sido previsto: nas suas magistrais propostas para o novo milénio (este em que já estamos e em que foi incubada a pandemia), Italo Calvino, logo em 1985, teve a lucidez e a intuição suficientes para prenunciar muito do que ia passar-se.
A realidade atual do EaD, sobretudo quando considerado o caso do ensino superior (é apenas dele que falo aqui), exibe uma dinâmica de expansão irreversível. Foram criadas universidades de EaD em muitos países; algumas delas são consideradas mega-universidades, acolhendo centenas de milhares de alunos; ao seu serviço encontram-se máquinas logísticas muito complexas; a tecnologia e a pedagogia do EaD conhecem um índice de aperfeiçoamento considerável; e ainda: o EaD é a resposta adequada para formações do tipo da aprendizagem ao longo da vida (ALV), em paralelo ou em conjugação com o ensino superior, em diferentes modalidades de certificação e de creditação académica.
3. O desenvolvimento do EaD permite aplicações a domínios e a públicos que vão muito além do que era feito no século passado. Por exemplo: a já referida ALV, a requalificação profissional, a extensão a atividades outras que não o ensino formal, a recuperação de contingentes de estudantes dispostos a retomar formações interrompidas, etc.
Para que assim seja, contribuem, pelo menos, dois fatores: primeiro, a utilização recorrente e já trivializada de ferramentas digitais e das redes sociais, gerando atitudes cognitivas que acentuam a recetividade aos métodos atuais do EaD; segundo, a coloração de “modernidade” que aquelas ferramentas trazem consigo, induzindo a superação progressiva das reservas que o EaD suscitava há algumas décadas. De tal modo assim é que mesmo escolas e níveis de ensino até há pouco convencionais têm acolhido progressivamente o EaD, derivando para regimes de ensino misto (o chamado b-learning). Fazem-no não apenas pela necessidade de captação de novos públicos, mas também pelo reconhecimento da eficácia das referidas ferramentas.
4. Quem imagina que o EaD se resolve tão-só pelo recurso às chamadas “aulas pela Internet” revela uma visão estreita do que aqui está em jogo, da diversidade de recursos que este regime de ensino e aprendizagem tem ao seu dispor, da complexidade do seu funcionamento e das suas exigências logísticas. Por estranho que pareça, ainda há quem pense que, em EaD, o estudante é avaliado sem controlo, em sua casa e com toda a informação que tem à mão…
Por fim, sublinho o seguinte: não estou aqui a equacionar comportamentos ou processos exclusivos do ensino e do EaD. A naturalidade com que hoje falamos em telemedicina, em telecomércio ou em teletrabalho, bem como a quotidiana utilização de recursos digitais e em rede para tarefas correntes – comprar uma passagem de avião, reservar um quarto de hotel, ler um jornal ou um livro, ver e falar com quem está longe, visitar um museu, enviar um documento e assim por diante – mostram bem que há uma realidade que hoje não dispensamos. Essa realidade é simples de descrever, mas nem sempre facilmente aceite: entre nós e o objeto do nosso desejo – um livro, um determinado conhecimento, uma pessoa, uma informação – interpõe-se uma máquina sofisticada. E também linguagens que vamos interiorizando, para além daquela que naturalmente aprendemos na infância, o que significa também um considerável ganho de autonomia.
Parafraseando Alberto Caeiro: “por que razão que se perceba” não haveria o ensino de fazer parte desta realidade? Parece que foi preciso vivermos o que estamos a viver para se descobrir o charme discreto do ensino a distância.