Ana Maria Guerra Martins

Juíza do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Professora Associada com Agregação da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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Introdução

Os efeitos do novo COVID 19 na saúde pública podem vir a ser minorados ou até extintos pela descoberta científica de um medicamento ou de uma vacina. Esperemos que isso aconteça o mais depressa possível.

Porém, o seu impacto a outros níveis – sociais, políticos, económicos e financeiros – é muito mais difícil de prever, de ultrapassar e durará, por certo, muito mais do que a própria pandemia.

No dia em que tomamos posse como Juíza do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), inspirando-nos na Carta que a Secretária-Geral do Conselho da Europa – Marija Pejčinović Burić – enviou ao Primeiro-Ministro húngaro, no passado dia 24 de março, resolvemos partilhar com os leitores algumas reflexões sobre o quadro jurídico previsto pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) para situações deste tipo.

Ninguém duvida que o COVID 19 pode representar uma enorme ameaça ao futuro da democracia, da rule of law e da proteção dos direitos humanos, se as medidas adotadas para conter o vírus não respeitarem os limites consagrados no direito interno e no direito internacional.

  1. Enquadramento da questão

Não é a primeira vez que os Estados membros do Conselho da Europa enfrentam crises e também não é a primeira vez que, por causa delas, usam mecanismos de exceção para restringir direitos humanos.

Ainda, recentemente, foram múltiplas as crises que ocorreram na Europa e no Mundo: económico-financeira, dos refugiados e o terrorismo. Todas elas tiveram como consequência restrições, limitações e até violações dos mais elementares direitos humanos. Porém, nenhuma delas se pode comparar à que atualmente estamos a viver, quer devido à sua amplitude quer devido ao tipo de medidas que foi necessário tomar para lhe fazer face.

Ora, estando cientificamente comprovado que a única forma de conter o vírus é a ausência de contacto físico entre as pessoas, os governos de todo o Mundo não têm hesitado em adotar medidas de restrição, entre outros, do direito à liberdade de circulação, do direito ao trabalho, do direito de aprender e ensinar, do direito à cultura e do direito de livre iniciativa empresarial.

Se a maior parte dessas medidas são justificadas, do ponto de vista jurídico, com base em estados de exceção, denominados de diferentes modos (estado de emergência, em Portugal) ninguém duvide que o coronavírus pode constituir uma tentação para governos menos democráticos de, pela via das medidas de emergência, derivarem para o autoritarismo. Daí a preocupação da Secretária-Geral do Conselho da Europa em deixar claro ao Primeiro-Ministro da Hungria que “the measures which member states take in the present exceptional circumstances of the pandemic must comply with both national constitutions and international standards, and observe the very essence of democratic principles”.

Vejamos então que regras devem os governos de respeitar.

2. A distinção entre a restrição e a derrogação de direitos na CEDH

Antes de avançar cumpre distinguir as limitações ou restrições s. s. de direitos, as quais se referem a uma compressão de direitos, em situações de normalidade, e podem operar a todo o tempo das derrogações ou suspensão de direitos, as quais implicam a eliminação do direito, pelo que só podem operar, em casos contados, e temporariamente. 

2.1. A restrições de direitos

A CEDH permite expressamente a restrição de alguns direitos, nos seus artigos 8.º a 11.º. Ou seja, os Estados podem restringir, em qualquer altura, os direitos ao respeito pela vida privada e familiar, as liberdades de pensamento, de consciência e religião, a liberdade de expressão e a liberdade de reunião e de associação, desde que respeitem certas condições, a saber:

  1. O princípio da legalidade – a restrição deve estar prevista na lei, entendendo-se como tal o conjunto do Direito quer ele seja proveniente do poder legislativo, regulamentar ou jurisprudencial;
  2. O objetivo deve ser legítimo – a restrição deve visar um fim legítimo, como seja o interesse da vida estadual (segurança nacional, segurança pública, bem-estar económico ou geral do país), da vida social (segurança pública, ordem pública, saúde ou moralidade pública) ou dos direitos de outrem no seio da sociedade;
  3. O princípio da proporcionalidade – a restrição deve ser necessária numa sociedade democrática. 

2.2. As derrogações de direitos

Em situações de crises mais graves, como a guerra ou outro perigo público que ameace a vida da nação, a CEDH contem, no artigo 15.º, uma autorização geral de derrogação mais ampla dos direitos humanos. Assim, qualquer parte pode tomar providências que derroguem as obrigações nela previstas, desde que sejam observados determinados requisitos formais e substanciais. A derrogação de certos direitos pode incluir a sua suspensão por um determinado período.

Ainda que tanto as restrições como as derrogações visem conciliar os direitos individuais com o interesse público e as necessidades da sociedade, a verdade é que não se devem confundir, pois prosseguem fins diversos e os requisitos exigidos para acionar as primeiras são muito menos exigentes do que os requeridos para invocar as segundas.

Pode parecer estranho que, sendo a probabilidade de violação de direitos humanos, em situações de crise, maior do que em situações de normalidade e existindo os instrumentos de proteção internacional de direitos humanos precisamente para proteger os direitos, se verifique um tão elevado número de  situações em que é possível os Estados desviarem-se dos parâmetros previamente estabelecidos.

Porém, isto faz sentido se pensarmos que a segurança e o bem estar do Estado, como um todo, também devem ser preservados, pois só assim se conseguirão afirmar plenamente e preservar a democracia e o Estado de direito. No fundo, a ideia subjacente a estas normas é a de que a democracia deve dispor de meios para afastar os seus inimigos. 

Aliás, quanto mais democrático é o Estado e mais forte é o seu poder judicial, mais necessidade terá de invocar a cláusula de derrogação quando se depara com uma situação de crise e emergência durante a qual tem de restringir ou suspender direitos. Nos Estados em que os eleitores não podem facilmente destituir os governantes e os tribunais não têm competência para anular as medidas governamentais restritivas, os Estados têm tendência a usar menos a cláusula de derrogação.  

3. O regime jurídico da derrogação a direitos em situações de emergência na CEDH

3.1. As condições de aplicação do artigo 15.º da CEDH

3.1.1. A existência de um perigo público que ameace a vida da Nação

A primeira condição de fundo que tem de estar preenchida para que um Estado possa invocar o artigo 15.º CEDH é a existência de guerra ou de qualquer outro perigo público que ameace a vida da nação.

Deixando de parte a situação de guerra, no que diz respeito à determinação do que seja um perigo público que ameaça a vida da nação, o TEDH já teve oportunidade de se pronunciar. Inicialmente, no caso Lawless c. Irlanda[1], definiu-o como “uma situação de crise excecional ou emergência que afete toda a população, e constitua uma ameaça à vida da comunidade que compõe o Estado”. Posteriormente, no caso Aksoy c. Turquia[2], o TEDH alterou esta definição, tendo admitido que a situação de emergência se pode circunscrever apenas a uma parte do território do Estado, não necessitando de abranger a sua totalidade. Em coerência com esta jurisprudência, o TEDH considerou, no caso Sakik c. Turquia[3], que, se a derrogação abrange uma parte do território do Estado, os atos praticados fora dela não estão cobertos pela derrogação, pelo que devem respeitar totalmente a CEDH[4].

3.1.2. O caráter atual ou iminente do perigo

Além disso, o perigo público não precisa de ser atual, podendo ser iminente (caso Grego[5]). O TEDH admite que não se pode exigir ao Estado que fique à espera que a situação de emergência ocorra e só depois possa tomar medidas necessárias e adequadas[6].

3.1.3. A temporalidade das medidas excecionais

As derrogações aos direitos consagrados na CEDH devem ser temporárias. Porém, o TEDH (e antes a Comissão), desde o seu primeiro acórdão nesta matéria – o caso Lawless c. Irlanda (n.º 3)[7] – remeteu para as autoridades nacionais a avaliação da questão de saber se existe ou não uma situação de emergência, aí incluindo a questão da sua duração, pois considera-as melhor colocadas que o juiz internacional para decidir sobre a existência da situação de emergência[8].  

No fundo, a questão que se coloca é a de saber como estabelecer a fronteira entre as situações de excecionalidade e as situações de normalidade. Se a emergência se prolonga muito no tempo, como tem sucedido nalguns casos, esta acaba por se tornar normalidade e então o desrespeito dos direitos humanos deixa de ser a exceção para passar a ser a regra.  

Como afirma a Secretária-Geral do Conselho da Europa, na carta acima referida, “an indefinite and uncontrolled state of emergency cannot guarantee that the basic principles of democracy will be observed and that the emergency measures restricting fundamental human rights are strictly proportionate to the threat which they are supposed to counter”.

Ou seja, a aplicação do artigo 15.º da CEDH está sujeita a limites.

3.2. Os limites à derrogação da CEDH 

Não obstante a ampla margem que o TEDH tem conferido aos Estados para apreciarem as circunstâncias concretas que levam à declaração de emergência, a verdade é que os Estados não têm um direito absoluto de derrogação, devendo respeitar alguns limites, os quais são judicialmente controláveis.

Assim, as medidas adotadas com base na situação de emergência devem ser:

  1. as estritamente necessárias;
  2. não podem violar regras de direito internacional;
  3. não podem restringir certos direitos inderrogáveis;
  4. não podem ser discriminatórias.

3.2.1. Respeito do princípio da proporcionalidade

O primeiro limite convoca o princípio da proporcionalidade, o qual implica que as medidas devem revestir um caráter de necessidade absoluta e serem estritamente indispensáveis para fazer face ao perigo público. A expressão “a estrita medida em que a situação o exigir” impõe, por um lado, que se averigue se a situação de necessidade existe e, por outro lado, se essa necessidade justifica a medida em causa, o que significa que quanto maior for a gravidade da situação, maior será a tolerância do TEDH às medidas derrogatórias. Porém, isto não significa que todas as medidas derrogatórias sejam admissíveis, de acordo com o artigo 15.º CEDH.

Nalguns casos, o TEDH aceitou que as autoridades nacionais gozam de uma ampla margem na apreciação da necessidade das medidas, pelo que não procedeu a uma análise muito rigorosa do princípio da proporcionalidade, através, por exemplo, da indagação da possibilidade de medidas alternativas menos restritivas. Noutros casos, o Tribunal considerou a medida desadequada[9], uma vez que se aplicava apenas a estrangeiros quando a ameaça (o terrorismo) provinha tanto de nacionais como de estrangeiros.[10]

3.2.2. Respeito do direito internacional

O segundo limite de derrogação, previsto no artigo 15.º CEDH, é a ausência de contradição com outras obrigações decorrentes do direito internacional. Ou seja, mesmo que as medidas derrogatórias sejam admissíveis, de acordo com o artigo 15.º da CEDH, elas deixam de estar justificadas se violarem outras obrigações internacionais do Estado em causa.

Não especificando o preceito quais as normas de direito internacional para que remete, pensamos que, em primeira linha, se devem ter em conta outros tratados de direitos humanos. Assim, os Estados devem respeitar os limites constantes, por exemplo, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. O artigo 4.º do Pacto contém alguns limites que coincidem com os previstos no artigo 15.º da CEDH, mas também inclui exigências que não constam deste último preceito. Desde logo, o artigo 4.º, n.º 1, do Pacto exige uma declaração oficial, como, por exemplo, uma declaração interna de emergência, das situações excecionais de perigo para a nação, o que não se verifica no artigo 15.º CEDH.

A questão que se coloca é a de saber se essa exigência se aplica igualmente no âmbito da CEDH. Ora, no caso Brannigan and McBride c. Reino Unido[11], o TEDH considerou que, tendo em conta os elementos constantes dos autos, a extensão e o impacto da violência resultante do terrorismo na Irlanda do Norte e noutras partes do Reino Unido, não havia dúvidas que, na época, se verificava uma situação de emergência.    

Além dos tratados de direitos humanos, os Estados devem igualmente respeitar o direito internacional humanitário previsto, designadamente, nas Convenções de Genebra de 1949[12] e as convenções da Organização Internacional do Trabalho.   

3.2.3. Respeito do princípio da não discriminação

Um outro aspeto em que o artigo 4.º do PIDCP vai mais longe do que o artigo 15.º da CEDH diz respeito à exigência de que as medidas derrogatórias respeitem o princípio da não discriminação – “não contenham nenhuma discriminação fundamentada unicamente em motivos de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social”. Daqui decorre que os Estados não devem adotar medidas derrogatórias que ponham em causa este limite.

3.2.4. Direitos inderrogáveis

Por último, o artigo 4.º, n.º 2, do PIDCP contém uma lista mais ampla de direitos inderrogáveis do que a prevista no n.º 2 do artigo 15.º da CEDH. Enquanto o PIDCP não permite qualquer derrogação ao direito à vida; o artigo 15.º da CEDH admite-a, se a morte resultar de atos lícitos de guerra. Além disso, considera inderrogáveis o direito a não ser preso por dívidas e o direito de todo o ser humano ao reconhecimento da sua personalidade, o que não sucede com o artigo 15.º da CEDH.

O direito a não ser submetido a tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, o direito a não ser tornado escravo nem servo, o direito a não ser condenado por uma ação ou omissão punido que, no momento em que foi cometida, não constituía infração segundo o direito nacional ou internacional (princípio da legalidade) e o princípio non bis in idem são considerados inderrogáveis quer na CEDH quer no PIDCP.

A questão que se coloca é a de saber se o TEDH poderá controlar a violação das condições e limites aditados pelo PIDCP, uma vez que a sua jurisdição se restringe, de acordo com o artigo 19.º da CEDH, à Convenção e aos seus protocolos. Na prática, o TEDH é bastante cauteloso na interpretação do Pacto[13], devido ao facto de ser duvidosa a sua competência para este efeito.   

3.3. A notificação da derrogação

Além das condições substantivas acima analisadas, o artigo 15.º, n.º 3, da CEDH impõe ainda aos Estados o dever de manterem completamente informado o Secretário-Geral do Conselho da Europa das medidas de derrogação tomadas e dos motivos que as provocaram.

Daqui não decorre necessariamente que a notificação da derrogação tenha de ser anterior à data da adoção das medidas. Pode suceder que só possa ocorrer posteriormente.

O objetivo da notificação ao Secretário-Geral do Conselho da Europa é o de dar a conhecer aos outros Estados e ao público em geral que existe uma situação de emergência num determinado Estado que interfere com a aplicação da CEDH.

Por último, os Estados deverão igualmente informar o Secretário-Geral do Conselho da Europa da data em que as medidas de emergência tiverem deixado de estar em vigor e da data em que a normalidade na aplicação da Convenção é reposta plenamente. Ou seja, tendo em conta que a derrogação deve ser encarada como uma medida excecional, se a situação de emergência deixar de existir, a CEDH deve voltar a ser aplicada na sua plenitude. Para tanto o Estado deve igualmente notificar o Secretário-Geral do Conselho da Europa.

Porém, o facto de o Tribunal conferir uma grande margem de apreciação aos Estados quanto à definição da emergência bem como das medidas que devem ser adotadas, implica que também a notificação do fim da situação de emergência acaba por ficar na discricionariedade dos Estados.  

3.4. O controlo das medidas derrogatórias pelo TEDH

O controlo da observância do artigo 15.º CEDH por parte dos Estados incide, essencialmente, sobre os requisitos substanciais. Assim, o Tribunal aprecia, por exemplo, se o princípio da proporcionalidade foi respeitado ou não.

Porém, mesmo aí o Tribunal mostra alguma autocontenção, na medida em que se trata de situações normalmente muito delicadas em que o TEDH não possui toda a informação necessária, nem está no terreno para poder avaliar a situação com rigor.

4. Conclusão

Concluindo, importa notar que a situação de pandemia que se vive atualmente, justifica, por razões de saúde pública, a restrição e até a suspensão de certos direitos humanos. Porém, as restrições ou suspensão de direitos estão sujeitas a limites rigorosos, impostos pelo direito internacional, designadamente, pela CEDH.

Se esses limites não forem escrupulosamente observados pelos Estados partes, o COVID 19 pode representar uma enorme ameaça ao futuro da democracia, da rule of law e da proteção dos direitos humanos. Ainda que confira uma grande margem de apreciação aos Estados e venha a mostrar alguma deferência, como se verificou no passado, quando estiveram em causa situações de emergência, o TEDH poderá vir a ter que desempenhar um papel fundamental no controlo judicial das medidas que extravasam claramente dos limites aceites pela CEDH.

Nota muito importante: As opiniões expressas neste texto apenas vinculam a sua autora.


[1] Queixa n.º 332/57, de 1 de julho de 1961.

[2] Queixa n.º 59741/00, 31 outubro 2006.

[3] Queixa n.º 87/1996/67/897-902, 26 de novembro de 1997.

[4] V. igualmente Sadak c. Turquia, n.º 25142/94 e 27099/95, de 8 de abril de 2004; Yurttas c. Turquia, n.º 25143/94 e 27098/95, 27 de maio de 2004, e Abdülsamet Yaman c. Turquia, n.º 32446/96, 2 de novembro de 2004.

[5] Dinamarca, Noruega, Suécia e Holanda c. Grécia, n.º 3321/67, 3322/67, 3323/67 e 3344/67 de 5 de novembro de 1969.

[6] V. A e outros c. Reino Unido, já citado.

[7] Já citado.

[8] Esta jurisprudência foi confirmada em Brannigan e McBride c. Reino Unido, n.º14553/89; 14554/89, 25 de maio de 1993 e A. e outros c. Reino Unido, já citado.

[9] V. Aksoy c. Turquia, já citado.

[10] V. A e outros c. Reino Unido, já citado.

[11] Já citado.

[12] V. Hassan c. Reino Unido, n.º 29750/09, 16 de setembro de 2014.

[13] V. caso Brannigan and McBride c. Reino Unido, já citado, e Marshall c. Reino Unido, n.º 41571/98, 10 de julho 2001.