Rui Medeiros

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.

Presidente do Conselho para a Arbitragem de Direito Público da Associação Portuguesa de Arbitragem, desde 2017.

Sócio na Sérvulo & Associados.


Constituição e Identidade Nacional na Era dos Populismos é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 2 de fevereiro de 2024.

Consulte a obra neste link.


I. Haverá espaço, nas atuais democracias liberais, para uma identidade nacional baseada em fatores como a língua, a história e a cultura? Será legítimo que as políticas de imigração e de cidadania, a definição do currículo do ensino ou a determinação do estatuto das igrejas e confissões religiosas sejam influenciadas por fatores étnico-culturais específicos de uma concreta comunidade política? Poderá um Estado de direito democrático ignorar as pretensões secessionistas que surgem no seu seio?

Aparentemente, quando se observa o discurso constitucional, a resposta deve ser negativa. Com efeito, a discussão está crescentemente centrada na afirmação dos princípios fundamentais em que se alicerça o direito constitucional estadual de matriz ocidental e que estão hoje largamente difundidos pelo mundo. Obviamente, continuam a proliferar obras de direito constitucional positivo assentes nas particularidades de cada ordem jurídico-constitucional. Porém, quando se procura determinar os “constitutional essencials” – para pedir emprestada a expressão de John Rawls -, verifica-se que o atual discurso jusconstitucional assenta fundamentalmente em categorias universais.

Paradoxalmente, na prática, multiplicam-se no nosso tempo os movimentos nacionalistas, os gritos secessionistas e os populismos, isto é, proliferam hoje movimentos que, em vez do universalismo, põem antes o acento tónico na singularidade das diferentes culturas e povos e em fatores identitários étnico-culturais particulares.

II. Será, porém, que, numa democracia liberal, é admissível, e com que latitude, que o sentimento de pertença diferenciador reconduzível a um nós se apoie num “background étnico, da língua ou das tradições dos povos”?

É conhecida e está muito difundida – em grande parte por força da influência da construção de Jürgen Habermas – a resposta do patriotismo constitucional. No essencial, não obstante as suas múltiplas versões, para o patriotismo constitucional o fundamento da unidade política de uma comunidade democrático-liberal deve ser construído, não a partir da ideia de um povo enquanto comunidade de destino étnico-cultural relativamente homogénea, mas antes com base na prática política dos cidadãos que, sob uma mesma Constituição, exercem ativamente os seus direitos de comunicação e participação democrática.

A verdade, porém, é que, não obstante os diversos méritos da teoria do patriotismo constitucional, esta tentativa de resposta ao problema da integração política de uma comunidade democrática de cidadãos heterogénea não consegue frequentemente, por força da sua abertura limitada à dimensão particular de uma concreta comunidade, alicerçar a unidade política de um povo.

Neste contexto, é possível construir uma alternativa ao patriotismo constitucional. Uma tal alternativa assume que o Estado constitucional assenta numa tensão ineliminável entre os direitos universais de toda e qualquer pessoa e os direitos dos cidadãos de um Estado particular. Sem dúvida, o discurso dos direitos numa comunidade democrática não pode ficar fechado no quadro de uma discussão ética daquilo que é melhor para a concreta comunidade de cidadãos, devendo haver espaço para juízos morais válidos universalmente e, portanto, válidos também para todos aqueles que se formaram em contextos vitais e tradições completamente distintos. Em qualquer caso, salvaguardados esses limites, o legislador democrático, na tarefa de concretizar os direitos, dispõe de um amplo espaço para ponderar, nas opções que toma, a relevância da existência de um sentimento de pertença diferenciador reconduzível a um nós na respetiva comunidade política particular e, bem assim, dos fatores em que um tal sentimento de pertença comum se alicerça, não estando, por isso, condenado a um agnosticismo identitário étnico-cultural.

III. A ideia de que a distinção entre nós e os outros numa democracia liberal pode ter bases muito diversas, incluindo uma relevante base étnico-cultural, projeta-se na discussão de um conjunto de temas estruturantes da vida de uma concreta comunidade, legitimando soluções normativas que, à partida, são difíceis de justificar quando, na esteira do patriotismo constitucional, se sustenta que a identidade de uma nação de cidadãos deve assentar numa base não étnica.