César Pires

Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Empresariais) pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Advogado.

Juiz-árbitro em Tribunais Arbitrais e investigador no Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) da Universidade do Minho.


A Transferência do Risco na Venda Internacional de Mercadorias é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 18 de maio de 2023.

Consulte a obra neste link.


No pretérito dia 03 de fevereiro completou-se um ano desde a obtenção do grau de Doutor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. A Almedina publicou da tese de Doutoramento, sobre “A transferência do risco na venda internacional de mercadorias”, em um curto prazo.

É tempo, por isso, de fazer algum balanço, tentando perceber se as novidades surgidas alteram o que aí se preconiza.

A obra versa sobre a transferência do risco na venda internacional de mercadorias e não se reconduz à simples apreciação do regime previsto na Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias (a CISG). Mas a CISG constitui a Convenção Internacional de Direito substantivo com maior número de Estados contratantes e, por isso, aí são colocadas algumas questões em debate (falta de conformidade das mercadorias, violação antecipada e violação fundamental do contrato, alteração das circunstâncias, impossibilidade, impedimento, resolução contratual, entre outras).

O critério de transferência do risco que se considera ser o mais consentâneo com o conjunto de transações inerentes ao designado comércio internacional é o do controlo exercido sobre as mercadorias. Esse critério não deve estar reduzido ao controlo físico das mercadorias e a CISG dá indicações nesse sentido.

A CISG consagra uma metodologia específica para a interpretação das suas normas. A interpretação da CISG deve ter em conta o seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade na sua aplicação (art. 7.º). O intérprete deve, por isso, soltar as ‹‹amarras›› suscetíveis de o fazer lançar mão de institutos, conceitos e noções existentes no ordenamento jurídico interno ou até mesmo resultantes de uma abordagem de Direito Comparado. A exigência de uma interpretação autónoma da CISG resulta das suas próprias disposições.

E se o elemento histórico desempenha o seu papel na determinação dos motivos que levaram o legislador a consagrar determinado regime jurídico, isso não pode (e não deve) constituir ‹‹amarra›› que impeça a CISG de se aplicar a novas realidades que, entretanto, vão reclamando regulamentação.

Se assim fosse não estaria a CISG (ou outra qualquer Convenção) condenada a ter de ser periodicamente alterada?

Uma interpretação atualista da CISG será sempre necessária. Constituirá o recurso a uma interpretação atualista uma posição de jure condendo ou ainda estaremos no âmbito de uma posição de jure condito?

A ideia tradicional de mercadorias já não é a única a ter em conta na delimitação do âmbito de aplicação das normas da CISG, não restando grandes dúvidas de que um contrato de venda internacional de software fica abrangido pelas normas desta Convenção[1].

Vejamos as novidades surgidas a respeito de bens digitais.

Um trabalho intensivo levado a cabo no seio do UNIDROIT conduziu a que o seu Conselho Diretivo adotasse, na sua 102.ª sessão (10-12 de maio de 2023), os “Princípios do UNIDROIT sobre os bens digitais e o direito privado”[2]. Estes Princípios começam por definir bem digital como “um registo eletrónico que pode ser sujeito a controlo” (Princípio 2, §2.º). Por seu turno, “registo eletrónico significa a informação (i) armazenada num suporte eletrónico e (ii) suscetível de ser obtida” (Princípio 2, §1.º).

Esta ideia de controlo aparece neste instrumento de soft law em vários outros pontos relacionados com a transferência dos bens digitais, surgindo a destruição de tais bens também relacionada com a mudança de controlo (vide, v.g., Princípio 6, §2.º).

E neste domínio a tendência é estabelecer que o controlo pode relevar no momento de reconhecer um direito de propriedade, ou property, sobre um bem digital (neste sentido veja-se o relatório final da Law Commission of England and Wales sobre esta matéria[3]).

Do mesmo modo, a referência a posse de um documento transferível é inadequada no que concerne aos registos/documentos eletrónicos transferíveis. Para estes o critério deixa de ser o da posse e surge o critério do controlo (neste sentido veja-se o artigo 11.º da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Registos Eletrónicos Transferíveis[4]).

Se a transferência ou aquisição de direito de propriedade sobre um determinado bem se depara com a necessidade de recurso ao critério do controlo, terão os critérios da entrega, da conclusão do contrato ou da transferência da propriedade viabilidade para determinar o momento da transferência do risco face a estas novas realidades?

Voltemos à CISG.

No que concerne à venda de software ou de dados[5], quer seja porque se considera que o envio pela internet se assemelha ao transporte (art. 67, n.º 2 da CISG)[6], quer seja porque se deva considerar aplicável o artigo 69.º, n.º 1 da CISG[7],a ideia comum é de que a transferência do risco ocorre quando o comprador assume o controlo. Os critérios estabelecidos na CISG são aplicados a estas novas realidades com recurso a uma interpretação atualista.

As normas da CISG estão aptas a regular novas realidades, não havendo necessidade de se proceder à sua alteração. Uma interpretação atualista da Convenção não implica a sua alteração.

Uma interpretação atualista da CISG, conjugada com a interpretação de outras Convenções criadas para regular outros contratos[8] comerciais internacionais,permitirá que o critério do controlo sobre as mercadorias se considere acolhido de jure condito no âmbito da transferência do risco.

As novidades entretanto surgidas vão impondo que o critério do controlo seja também alargado à transferência de direitos (de propriedade ou property) sobre bens digitais e à transferência de documentos eletrónicos.

Haverá espaço para confluir em um mesmo sentido? Provavelmente. Aguardemos por mais novidades que nos provoquem novas reflexões.

Aliás, está já a ser efetuado trabalho sobre “documentos de carga negociáveis” para permitir no transporte ferroviário, rodoviário, aéreo e multimodal o que já se permite no âmbito do transporte marítimo[9].

Ao que parece a ideia de controlo sobre as mercadorias, por via da detenção de um document of title, continuará a marcar a agenda relativa à regulação das relações comerciais internacionais (veja-se o trabalho em curso na UNCITRAL, Grupo de Trabalho VI, em que se reconhece expressamente que a aquisição do direito de controlo no âmbito do transporte “afeta os direitos do expedidor ao abrigo das convenções internacionais aplicáveis”[10]).


[1] Neste sentido, vide Edgardo Muñoz, ‹‹Software technology in CISG contracts››, in Uniform Law Review, Volume 24, N.º 2, Junho de 2019, pp. 281–301.

[2] Disponíveis em: < https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2024/01/Principles-on-Digital-Assets-and-Private-Law-linked.pdf>

[3] Disponível em: < https://cloud-platform-e218f50a4812967ba1215eaecede923f.s3.amazonaws.com/uploads/sites/30/2023/06/Final-digital-assets-report-FOR-WEBSITE-2.pdf>

[4] Disponível em: < https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/mletr_ebook_e.pdf>.

Neste sentido veja-se, também, o parágrafo 2.º, n.º 2 e 3 do Electronic Trade Documents Act 2023 do Reino Unido, no que concerne à definição de documento comercial eletrónico. Disponível em: < https://www.legislation.gov.uk/ukpga/2023/38/enacted/data.pdf>

[5] Vendas que devem considerar-se abrangidas pelas normas da CISG  (neste sentido, vide Pascal Hachem, ‹‹Article 1››, in Ingeborg Schwenzer / Ulrich G. Schroeter (Eds.), Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG), p. 34 e ss., 5ª Edição, 2022, Oxford University Press.

[6] Neste sentido, vide Edgardo Muñoz, ‹‹Software technology in CISG contracts››, in Uniform Law Review, Volume 24, N.º 2, Junho de 2019, pp. 281–301.

[7] Neste sentido, vide Pascal Hachem, ‹‹Article 1››, in Ingeborg Schwenzer / Ulrich G. Schroeter (Eds.), Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG), p. 54., 5ª Edição, 2022, Oxford University Press.

[8] Imprescindíveis para a execução das obrigações emergentes do contrato de venda internacional.

[9] Quanto ao transporte marítimo, o conhecimento de carga (bill of lading)já permite esse controlo sobre as mercadorias.

[10] Documento da UNCITRALA/CN.9/WG.VI/WP.102.