Elda Marques

Professora Auxiliar da Secção Autónoma de Direito da Faculdade de Economia da Universidade do Porto.

Doutora em Direito, Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais e Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Comentarista no Código das Sociedades Comerciais em Comentário (II, V, VI e VII volumes, IDET/Almedina) e no Código Cooperativo Anotado (Almedina).

Investigadora Integrada do CIJ – Centro de Investigação Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.


Consulte a obra Código das Sociedades Comerciais em Comentário neste link.

Consulte a obra Código Cooperativo Anotado neste link.


O Decreto-Lei n.º 114-D/2023, de 5 de dezembro, que transpõe para o ordenamento nacional a Diretiva (UE) 2019/2121, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças, entrou em vigor no dia 4 de janeiro de 2024, alterando, entre outros diplomas nacionais, o Código das Sociedades Comerciais (CSC), nomeadamente, ao modificar o regime das fusões transfronteiriças e ao regular, pela primeira vez, as cisões e transformações transfronteiriças.

Estando já regulada a fusão transfronteiriça de sociedades de responsabilidade limitada em todos os Estados-Membros, por força da transposição da Diretiva 2005/56/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, com a transposição da Diretiva (UE) 2019/2121 em todos os Estados-Membros, passa a existir na UE um regime harmonizado também da cisão e transformação transfronteiriças de sociedades de responsabilidade limitada. O legislador europeu aproveitou para introduzir alterações ao regime harmonizado preexistente da fusão transfronteiriça e alargou-o, com as devidas adaptações, à cisão e transformação transfronteiras.

O regime jurídico harmonizado das operações (fusão, cisão e transformação) transfronteiriças contribui para a supressão das restrições à liberdade de estabelecimento das sociedades de responsabilidade limitada (sociedades anónimas, sociedades em comandita por ações e sociedades por quotas e suas congéneres no direito de cada Estado-Membro) sujeitas ao direito da UE e, ao mesmo tempo, proporciona proteção adequada às partes interessadas, designadamente trabalhadores, credores e sócios minoritários.

O Decreto-Lei n.º 114-D/2023 transpõe para o CSC as normas da Diretiva (UE) 2019/2121 de caráter imperativo, não se tendo aproveitado para acolher algumas previsões[1] deixadas à discricionariedade dos Estados-Membros. Há, porém, que assinalar a boa opção do nosso legislador, aliás em sintonia com a tomada por outros Estados-Membros, como, p. ex., a Espanha e a Alemanha, de regular a cisão (total ou parcial) transfronteiriça por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias preexistentes e a nova modalidade de cisão por separação também por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias preexistentes, apesar de a Diretiva (UE) 2019/2121 apenas impor a receção no direito interno da cisão (total ou parcial) por constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias e da cisão por separação por constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias.

O quadro normativo harmonizado mínimo é constituído por disposições que asseguram a proteção dos sócios minoritários, dos credores sociais e dos trabalhadores, sem descurar o interesse público, instituindo mecanismos para evitar que uma operação (fusão, cisão ou transformação) transfronteiriça possa ser utilizada para fins abusivos ou fraudulentos, como seja contornar os direitos dos trabalhadores, os pagamentos à segurança social ou as obrigações fiscais, ou para fins criminosos.

Passemos a enunciar as principais novidades normativas recebidas no CSC.

1.Qualificação como fusão transfronteiriça da operação de fusão por incorporação sem que haja emissão[2] de participações sociais (mediante aumento do capital social) pela sociedade incorporante, desde que (hipótese a) uma pessoa (singular ou coletiva) detenha, direta ou indiretamente, a totalidade das participações sociais das sociedades participantes na operação [ou seja, da sociedade incorporante e concomitantemente  da(s) sociedade(s) incorporada(s)]; ou (hipótese b) os sócios (pessoas singulares e/ou coletivas) das sociedades participantes na operação [ou seja, da sociedade incorporante e simultaneamente da(s) sociedade(s) incorporada(s)] detenham as suas participações sociais na mesma proporção em todas as sociedades participantes na operação. As duas hipóteses, a) e b), contemplam a fusão por incorporação[3] entre sociedades (sociedades anónimas, sociedades em comandita por ações ou sociedades por quotas) “irmãs” em sentido amplo, não circunscrita, pois, à fusão por incorporação entre sociedades irmãs detidas totalmente, direta ou indiretamente, pela mesma sociedade mãe no âmbito de um grupo (de direito) de sociedades por domínio total.

Na hipótese descrita em a), está abrangida a operação de fusão por incorporação entre sociedades (irmãs) detidas totalmente, direta ou indiretamente, pelo mesmo sócio único (que pode ser uma pessoa singular ou uma sociedade ou outra pessoa coletiva, como, p. ex., uma cooperativa); se a mesma sócia única, direta ou indiretamente, for uma sociedade anónima, em comandita por ações ou uma sociedade por quotas, estará em causa uma fusão por incorporação entre sociedades irmãs (detidas pela mesma sociedade mãe) no quadro de uma relação de grupo por domínio total, direto ou indireto.

Na hipótese b) está coberta a operação de fusão por incorporação entre sociedades (irmãs) detidas diretamente por dois ou mais sócios (sejam pessoas singulares, sociedades ou outras pessoas coletivas, como, entre outras admissíveis, cooperativas) na mesma proporção.

Em ambas as hipóteses, a) e b), é dispensada a emissão[4] de participações sociais (mediante aumento do capital social) da sociedade incorporante preexistente para atribuição a) ao sócio único ou b) aos sócios em igual proporção da(s) sociedade(s) incorporada(s). Sendo dispensada a emissão de participações sociais, deixa de ser necessária concomitantemente a determinação da relação de troca das participações sociais no projeto de fusão. A desnecessidade de emissão de participações sociais para adjudicação a) ao sócio único ou b) aos sócios em igual proporção da(s) sociedade(s) incorporada(s) justifica-se pelo facto de não haver qualquer repercussão da operação para a posição social a) do sócio único ou b) dos sócios em igual proporção, porquanto apenas se trata de concentrar juridicamente (na esfera da sociedade incorporante) uma realidade (desconcentrada juridicamente em duas ou mais sociedades, mas) já economicamente unificada. A estrutura da relação societária preexistente na esfera das sociedades participantes na fusão mantém-se idêntica, após a operação, na esfera da (única) sociedade incorporante, sem necessidade de qualquer atribuição de participações sociais. A desnecessidade (ou a não obrigatoriedade) de atribuição de participações sociais (e, por conseguinte, a desnecessidade de realização de um aumento do capital para o efeito) simplifica a execução da operação de fusão por incorporação entre sociedades irmãs no sentido amplo que se evidenciou.

A simplificação do procedimento desta operação de fusão por incorporação vai, no entanto, mais além, na medida em que a Diretiva (UE) 2019/2121 exclui a aplicação de outros requisitos exigidos no procedimento geral ou comum de fusão. Acontece, porém, que o legislador português não conseguiu, com a alteração efetuada à redação do n.º 1 do art. 117.º-I[5], estender expressis verbis a exclusão de determinados requisitos do procedimento comum ou geral de fusão, já aplicável à fusão por incorporação de sociedade totalmente dominada, direta ou indiretamente, pela sociedade incorporante (upstream merger), à agora aditada fusão por incorporação entre sociedades (irmãs) detidas totalmente, direta ou indiretamente, pelo mesmo sócio único. Julga-se que o legislador pátrio terá intencionado operar a extensão da simplificação do procedimento de fusão previsto no art. 117.º-I à fusão por incorporação entre sociedades detidas totalmente, direta ou indiretamente, pelo mesmo sócio único, em cumprimento da Diretiva (UE) 2019/2121, com o aditamento ao n.º 1 do referido dispositivo “desde que a sociedade incorporante não atribua novas participações sociais no âmbito da fusão”, expressão esta muito próxima, nesta parte, da nova redação do n.º 1 do art. 132.º da Diretiva (UE) 2017/1132, dada pela Diretiva (UE) 2019/2121. A tentativa do nosso legislador foi gorada, pois que não transpôs a restante parte da alteração à redação do n.º 1 do art. 132.º da Diretiva (UE) 2017/1132, conferida pela Diretiva (UE) 2019/2121, que passou a incluir expressamente, além da fusão por incorporação realizada por uma sociedade que detenha, direta ou indiretamente, a totalidade das participações com direito de voto nas assembleias gerais da sociedade incorporada ou incorporadas, adicionalmente a fusão realizada por pessoa[6] que detenha, direta ou indiretamente, a totalidade das participações sociais da sociedade incorporante e da sociedade incorporada ou incorporadas.

Em face da letra do n.º 1 do art. 117.º-I do CSC, não está abrangida a fusão por incorporação em que uma pessoa (singular ou coletiva) detenha, direta ou indiretamente, a totalidade das participações sociais das sociedades participantes na operação [ou seja, da sociedade incorporante e da(s) sociedade(s) incorporada(s)], como impõe a nova redação do n.º 1 do art. 132.º da Diretiva (UE) 2017/1132, dada pela Diretiva (UE) 2019/2121. Enquanto o legislador nacional não alterar a redação infeliz do n.º 1 do art. 117.º-I, terá o intérprete de recorrer à extensão teleológica (caracterizada como uma forma de correção do texto da norma) do respetivo campo de aplicação, exigida por uma interpretação em conformidade com a norma europeia. Ainda que a despropósito na economia deste texto, as als. c) e d) do novo n.º 4 aditado ao art. 117.º-I são abstrusas, contrariando o disposto no n.º 2 da mesma disposição.

2.Previsão de três modalidades de cisão transfronteiriça, podendo qualquer delas ser realizada por constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias, como impõe a Diretiva (UE) 2019/2121 ou também, por opção do legislador nacional[7], por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias já existentes. Está, assim, regulada internamente a cisão total por constituição de duas ou mais sociedades beneficiárias e por incorporação em duas ou mais sociedades beneficiárias já existentes; a cisão parcial por constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias e por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias já existentes; e a inovadora cisão por separação por constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias e por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias já existentes.

Na cisão parcial ou total, os sócios da sociedade cindida podem não participar em cada uma das sociedades beneficiárias na proporção que lhes cabia na sociedade cindida (cisão não proporcional). A não proporcionalidade poderá respeitar a todos os sócios da sociedade cindida ou afetar apenas alguns, em igual ou diferente medida entre eles, podendo servir para a divisão dos sócios da sociedade cindida pelas sociedades beneficiárias e, no caso de cisão parcial, permitindo a divisão dos sócios da cindida pela(s) sociedade(s) beneficiária(s) e pela própria sociedade cindida parcialmente (cfr. arts. 129.º-C, 1, b), 129.º-J, 1, a), ii) e b), ii) do CSC).

3.Instituição do direito (legal) de exoneração dos sócios minoritários da sociedade incorporada, cindida ou transformada, que, sendo titulares do direito de voto, votem contra a aprovação do projeto de operação transfronteiriça e contanto que, em virtude da operação, lhe tenham sido atribuídas participações sociais na sociedade resultante da operação regidas pela legislação de outro Estado-Membro. O direito de exoneração tem de ser exercido no prazo de um mês a contar da data da deliberação que aprova a operação, estando a sociedade resultante da operação, no prazo de dois meses a contar da inscrição da operação transfronteiriça no registo comercial, obrigada a proceder ao pagamento da contrapartida em dinheiro oferecida no projeto da operação (fusão, cisão ou transformação) transfronteiriça (cfr. arts. 117.º-F, 6 e 8, 129.º-G, 2 e 5, e 140.º, 1 e 4 do CSC).

4.Atribuição aos sócios da sociedade incorporada/fundida, cindida ou transformada, que, dispondo do direito de exoneração, o tenham exercido, do direito de requerer, no prazo de seis meses a contar da data da deliberação que aprova o projeto da operação de fusão, cisão ou transformação transfronteiriça, a avaliação judicial das respetivas participações sociais (ao abrigo do estabelecido nos artigos 1068.º e 1069.º do Código de Processo Civil) com fundamento na inadequação da contrapartida em dinheiro da aquisição das suas participações sociais, oferecida no projeto da operação (fusão, cisão ou transformação) transfronteiriça, reclamando a fixação de uma compensação monetária suplementar (cfr. arts. 117.º-F, 11, 129.º-G, 6, 140.º-I, 5 do CSC). A inadequação da contrapartida monetária pela aquisição das participações sociais dos sócios exonerados, constante do projeto da operação transfronteiriça, não é fundamento autónomo de impugnação da deliberação que aprova o projeto da operação (cfr. arts. 117.º-F, 5, b), 129.º-F, 5, b), 140.º-H, 3, a) do CSC). A reclamação judicial de uma compensação monetária suplementar não impede a inscrição definitiva da operação de fusão ou cisão no registo comercial (cfr. art. 117.º-F, 12, aplicável à cisão por remissão do art. 129.º-B, 1 do CSC); a mesma solução, apesar da lacuna legal, é de aplicar à operação de transformação.

5.Atribuição aos sócios[8] não titulares do direito de exoneração ou que, sendo titulares desse direito, não o tenham exercido, do direito de requerer, no prazo de seis meses a contar da data da deliberação que aprova o projeto da fusão ou cisão, a avaliação judicial das respetivas participações sociais (ao abrigo do estabelecido nos artigos 1068.º e 1069.º do Código de Processo Civil) com fundamento na inadequação da relação de troca das participações sociais, constante do projeto de fusão ou cisão transfronteiriça, exigindo a atribuição de uma compensação monetária adequada. Esta é a interpretação razoável do disposto nos arts. 117.º-F, 7, 129.º-G, 1 do CSC), em conformidade com Diretiva transposta (cfr. arts. 126-A, 6, 160.º-I, 6 da Diretiva (UE) 2017/1132, na redação dada pela Diretiva (UE) 2019/2121), sendo de criticar o texto legal vertido naqueles dispositivos, denotando alguma confusão do legislador nacional (ao referir-se a “contrapartida da aquisição das suas participações sociais”, ao invés de a “relação de troca das participações sociais”, como seria curial). A inadequação da relação de troca das participações sociais, constante do projeto de fusão ou cisão transfronteiriça, não é fundamento autónomo de impugnação da deliberação que aprova o projeto de fusão ou cisão (cfr. arts. 117.º-F, 5, a), 129.º-F, 5, a) do CSC). A reclamação judicial de uma compensação monetária não impede o registo comercial da fusão ou cisão transfronteiriça (cfr. art.  117.º-F, 12, aplicável à cisão por remissão do art. 129.º-B, 1 do CSC).

6.Manutenção do direito dos credores das sociedades participantes na fusão transfronteiriça de deduzir oposição judicial à fusão transfronteiriça, agora no prazo de três meses após a publicação do registo do projeto, com fundamento no prejuízo que dela derive para a realização dos seus direitos de crédito anteriores a essa publicação (e ainda que já vencidos), desde que tenham solicitado à sociedade a satisfação do seu crédito ou a prestação de garantia adequada, há pelo menos 15 dias, sem que o seu pedido tenha sido atendido (cfr. art. 101.º-A, aplicável por remissão geral do art. 117.º-B, 1 do CSC). A produção de efeitos da prestação de garantias pela sociedade[9] participante na fusão, ordenadas por decisão judicial (nos termos do art. 101.º-B do CSC), está sujeita à condição suspensiva de a fusão transfronteiriça se tornar eficaz mediante inscrição no registo comercial (cfr. art. 117.º-B, 2 do CSC).[10]

7.Previsão do direito dos credores das sociedades participantes na cisão transfronteiriça de requerer judicialmente a obtenção de garantias adequadas, no prazo de três meses a contar da publicação do projeto de cisão transfronteiriça, desde que demonstrem, fundamentadamente, que a cisão compromete a satisfação dos seus créditos (anteriores à publicação do projeto de cisão transfronteiriça e ainda que já vencidos) e que a sociedade não lhes ofereceu as garantias adequadas (cfr. art. 129.º-H, 1 do CSC).  A produção de efeitos da prestação de garantias pela sociedade participante, previstas no projeto de cisão transfronteiriça ou ordenadas por decisão judicial (nos termos do art. 101.º-B do CSC), está sujeita à condição suspensiva de a cisão transfronteiriça se tornar eficaz mediante inscrição no registo comercial. Esta é a interpretação razoável, e em conformidade com a Diretiva, do texto infeliz, por confuso, constante do art. 129.º-H, 2. É de notar que, ao contrário do que é estabelecido a respeito da fusão, na cisão não é exigido que os credores tenham solicitado à sociedade devedora a satisfação do seu crédito ou a prestação de garantia adequada, há pelo menos 15 dias, sem que o seu pedido tenha sido atendido.

8.Previsão do direito dos credores da sociedade a ser transformada, cujos créditos sejam anteriores à publicação do projeto de transformação e que ainda não estejam vencidos nessa data, no prazo de três meses a contar da publicação do projeto de transformação transfronteiriça, de requerer judicialmente a determinação de garantias adequadas, com fundamento no prejuízo que decorra da transformação transfronteiriça para a satisfação dos seus direitos (cfr. art. 140.º-J, 1 do CSC). A produção de efeitos da prestação de garantias pela sociedade a ser transformada, previstas no projeto de transformação transfronteiriça ou ordenadas por decisão judicial, está sujeita à condição suspensiva de a transformação transfronteiriça se tornar eficaz mediante inscrição no registo comercial (cfr. art. 140.º-J, 2 e 3). É de notar ainda que os credores, cujos créditos sejam anteriores à data de publicação do projeto de transformação transfronteiriça, independentemente de os referidos créditos estarem ou não já vencidos, podem, nos dois anos imediatamente posteriores à produção de efeitos da transformação, intentar nos tribunais portugueses ações contra a sociedade transformada, sem prejuízo de outras regras em matéria de competência decorrentes do direito da UE, do direito nacional ou de pacto de jurisdição.[11]

9.Especificamente em relação à cisão transfronteiriça, prescreve-se a responsabilidade solidária da(s) sociedade(s) beneficiária(s) – assim, no caso de haver mais do que uma sociedade beneficiária em resultado da cisão –, até ao limite do ativo líquido que lhe(s) tenha sido atribuído no âmbito da operação de cisão e, se não se extinguir, em caso de cisão parcial ou cisão por separação, da própria sociedade cindida pelas dívidas atribuídas a uma sociedade beneficiária, caso o património total desta venha a revelar-se insuficiente para a satisfação dos respetivos credores (cfr. art. 129.º-H, 3 do CSC). A responsabilidade solidária da(s) sociedade(s) beneficiária(s) e, se não se extinguir, da sociedade cindida é, assim deve entender-se[12], subsidiária em relação à sociedade beneficiária (devedora principal) à qual foi atribuído o elemento passivo do património da sociedade cindida.


[1] Nomeadamente, não foi acolhida no direito nacional a admissibilidade de atribuição de participações sociais ou outra compensação (v. g., participações sociais noutras sociedades, obrigações, warrants, opções de compra de ações) pela sociedade resultante da fusão ou cisão transfronteiriça, em substituição do pagamento de uma contrapartida monetária na sequência de correção (determinada no processo judicial para o efeito proposto por sócios sem direito de exoneração ou que o não tenham exercido) da relação de troca das participações sociais, constante do projeto de fusão ou cisão aprovado pela maioria dos sócios (cfr. arts. 126.º-A 7, 160.º-I, 7 da Diretiva (UE) 2019/2121).

Não se estabeleceu também a eficácia externa dos casos julgados favoráveis aos restantes sócios que não sejam parte no processo judicial proposto contra a sociedade, nos casos de fixação judicial de uma compensação pecuniária adicional e/ou de fixação judicial da relação de troca (corrigida) das participações sociais. No primeiro caso, a fixação judicial de uma compensação pecuniária adicional aproveitaria a todos os restantes sócios que tivessem exercido o direito de alienar as respetivas participações (i e, direito de exoneração) numa transformação, fusão ou cisão transfronteiriça (cfr. arts. 86-I, 4, 2.º parágrafo.; 126.º-A, 4, 2.º parágrafo; 160.º-I, 4, 2.º parágrafo da Diretiva (UE) 2019/2121). Por seu turno, no segundo caso, a fixação judicial da relação de troca (corrigida) das participações sociais beneficiaria todos os restantes sócios que não dispusessem do direito de alienar as respetivas participações (i e, direito de exoneração) ou não o tivessem exercido numa fusão transfronteiriça (cfr. art. 126.º-A, 6, 2.º parágrafo da Diretiva (UE) 2019/2121), e, por aplicação no direito nacional do regime desta à cisão, igualmente numa cisão transfronteiriça.

[2] E também sem atribuição de participações próprias detidas pela sociedade incorporante.

[3] No n.º 2 do art. 117.º-A CSC, apesar de ser usada a expressão “sociedades a fundir” (e dada a maior proximidade gramatical à fusão de sociedades fundidas para a constituição de uma nova sociedade), ao invés de “sociedades objeto de fusão”, como consta da al. d) do n.º 2 do art. 119.º da Diretiva (UE) 2019/2121, e simultaneamente ser omitida a referência a “sociedade incorporante”, já existente, na qualidade de sociedade resultante da fusão, que consta da mesma norma da diretiva mencionada, não está abrangida no seu âmbito de aplicação a fusão entre sociedades irmãs (com o sentido amplo mencionado) por constituição de uma nova sociedade. É que numa fusão por constituição de nova sociedade, ainda que entre sociedades irmãs (naquelas hipóteses a) e b) mencionadas) a serem fundidas/extintas, existe sempre emissão inicial de participações sociais para atribuição ao sócio único ou aos sócios em igual proporção da nova sociedade, ainda que a atribuição de participações sociais corresponda a um simples cálculo aritmético (dispensando, em bom rigor, a relação de troca das participações sociais).

A al. d) do n.º 2 do art. 119.º da Diretiva (UE) 2019/2121 refere-se expressamente a sociedade já existente na qualidade de sociedade adquirente naquelas referidas hipóteses a) e b), o que remete para a fusão entre sociedades (irmãs) realizada por incorporação (na língua inglesa, cross-border merger by acquisition).

[4] Ao nível da fiscalidade, não deve haver diferença de enquadramento e tratamento desta operação pelo facto de estar dispensada a emissão ou atribuição de participações sociais, assim prevenindo o enviesamento e a distorção de escolhas dos agentes económicos a respeito da estrutura da operação.

[5] Aliás, a epígrafe do art. 117.º-I também teria de ter sido alterada para acolher a fusão por incorporação entre sociedades (irmãs) detidas totalmente, direta ou indiretamente, pelo mesmo sócio único.

[6] Estando, assim, excluída, nessa norma europeia, em face da sua redação, a extensão obrigatória da simplificação do procedimento de fusão geral ou comum à outra factispécie de fusão por incorporação entre sociedades irmãs, ou seja, quando as sociedades incorporante e incorporada(s) sejam detidas por dois ou mais sócios na mesma proporção, apesar de estar prevista para tal factispécie também a desnecessidade de emissão de participações sociais pela sociedade incorporante no n.º 2 do art. 117.º-A, por força da transposição da citada al. d) do n.º 2 do art. 119.º da Diretiva (UE) 2019/2121; sem prejuízo, porém, de os Estados-Membros poderem prever uma tal extensão no seu direito nacional.

[7] Ao contrário da Diretiva (UE) 2019/2121, que circunscreve o conceito de sociedade beneficiária a uma sociedade recém-constituída no decurso de uma cisão transfronteiriça (cfr. respetivo art. 160.º-B, 3), não regulando, por conseguinte, a cisão por incorporação numa ou mais sociedades beneficiárias preexistentes – o que foi criticado pelos peritos de direito europeu das sociedades (European Company Law Experts (ECLE)), «The Commission’s 2018 Proposal on Cross-Border Mobility – An Assessment, September 2018», acessível em https://europeancompanylawexperts.wordpress.com/publications/the-commissions-2018-proposal-on-cross-border-mobility-an-assessment-september-2019/#_ftnref90, ponto II –, o regime jurídico nacional da cisão transfronteiriça omite uma definição de sociedade beneficiária, mas não deixa dúvidas, em face de várias expressões espalhadas pelo articulado da cisão transfronteiriça, de que podem participar na cisão duas ou mais sociedades (sendo uma necessariamente a sociedade cindida e a(s) outra(s) sociedade(s), logicamente, a(s) sociedade(s) beneficiária(s) já existente(s)) – cfr., entre outros, arts. 129.º-C, 1, 129.º-D, 1, 129.º-E, 2, 129.º-F, 1, a), e 2 do CSC. Também no mesmo sentido é de assinalar a expressa previsão, em alternativa, da deliberação sobre o projeto de alteração a introduzir no contrato da sociedade beneficiária (aqui, leia-se, preexistente), ou sobre o projeto de contrato da nova sociedade (que é necessariamente beneficiária) – cfr. art. 129.º-F, 1, b) do CSC. Esta opção do legislador nacional em estender o regime harmonizado à cisão por incorporação está em sintonia com a de outros Estados-Membros (p. ex., Espanha e Alemanha). Na Itália, também foi regulada a cisão parcial e total por incorporação, mas quanto à cisão por separação (scissione mediante scorporo) restringiu-se esta modalidade de cisão expressamente à realizada mediante a constituição de uma ou mais sociedades beneficiárias (cfr. art. 2506.1 Codice Civile, para que remete o art. 41, 1, a) do DECRETO LEGISLATIVO 2 marzo 2023, n. 19).

[8] Estando abrangidos, por conseguinte, os sócios de qualquer sociedade objeto de fusão ou cisão transfronteiriça, com exceção dos sócios da sociedade incorporada ou cindida que, tendo votado contra o projeto da operação, tenham exercido o direito de alienar as respetivas participações sociais (i e, o direito de exoneração).

[9] Que pode ser a sociedade incorporada ou a fundir ou a sociedade incorporante.

[10] Não se aplaude a restrição legal efetuada no art. 117.º-B, 2 do CSC no sentido de apenas as garantias prestadas em cumprimento de decisão judicial nos termos do n.º 1 do artigo 101.º-B ficarem sujeitas à condição suspensiva de a fusão produzir efeitos. De todo o modo, ao abrigo da autonomia negocial da sociedade participante, poderá ser estipulada uma condição suspensiva da eficácia da garantia prestada voluntariamente pela sociedade, de acordo com o previsto no projeto de fusão (cfr. al. h) do n.º 1 do art. 98.º, aplicável por remissão geral do art. 117.º-B, 1 do CSC); apesar de a disposição citada aludir às “garantias oferecidas pela sociedade incorporante ou pela nova sociedade”, não deixa de ser de equacionar que a garantia seja oferecida e prestada pela sociedade incorporada, que, após a eficácia da fusão, é assumida ex lege pela sociedade resultante/incorporante.

[11] Para maior desenvolvimento, v. Elda Marques, “A proteção dos sócios e credores nas transformações, fusões e cisões transfronteiriças segundo a Diretiva (UE) 2019/2121”, in VI Congresso de Direito das Sociedades em Revista, Almedina, 2022, p. 246-249.

[12] Mais desenvolvidamente, v. Elda Marques, “A proteção dos sócios e credores nas transformações, fusões e cisões transfronteiriças segundo a Diretiva (UE) 2019/2121”, in VI Congresso de Direito das Sociedades em Revista, Almedina, 2022, p. 244-246.