José Manuel Oliveira Antunes
Advogado com especial intervenção na área dos Contratos Públicos, no Direito da Construção e Urbanismo. É formador e docente convidado em cursos de Pós Graduação na área da Contratação Pública e autor de vários livros sobre a temática do Direito Público.
Desde 1969, com a publicação do Decreto-Lei 48 871 de 19 de Fevereiro, que as empreitadas de obras públicas são fiscalizadas por representantes da entidade contratante ou dono da obra. Esses representantes eram designados por “agente da fiscalização” segundo a terminologia de 1969, que se manteve até 2008, quando o Decreto-Lei 59/99 de 2 de Março, foi revogado pelo Decreto-Lei 18/2008 de 29 de Janeiro, usualmente conhecido como Código dos Contratos Públicos (CCP).
No seu preâmbulo, o CCP reafirma as suas melhores intenções na valorização da fiscalização da execução dos contratos, através de uma “clarificação do mecanismo de representação das partes e reforço dos poderes do director de fiscalização da obra (antigo” fiscal da obra).”
Esse denominado (pelo legislador, claro) “reforço dos poderes”, encontra-se consagrado nos artigos 303º a 305º do CCP. No entanto, se houve reforço de poderes ou não e se isso era relevante no contexto da lei, não é a questão essencial. O essencial seria que os operadores da contratação pública, adjudicantes, adjudicatários, fornecedores, consultores etc. entendam claramente quais são as funções de cada um, para além das afirmações de princípio.
Da transparência dessa “clarificação” que o CCP se propunha trazer, é elucidativo o texto do nº 2 do artigo 303º: “O exercício dos poderes de direção e de fiscalização deve salvaguardar a autonomia do cocontratante, limitando-se ao estritamente necessário à prossecução do interesse público e processando-se de modo a não perturbar a execução do contrato, com observância das regras legais ou contratuais aplicáveis e sem diminuir a iniciativa e a correlativa responsabilidade do cocontratante”. Pela simples leitura, já se vê que de “clarificação”, pouco se conseguiu.
Ao invés do CCP, a legislação anterior, desde 1969 até 2008, sempre deu menos importância a estas “grandes afirmações de principio” e maior relevo à concretização na lei, das funções efectivas da fiscalização na execução do contrato.
Esse objectivo foi claro até 2008, porque se encontrava na lei aquilo que a Fiscalização tinha que fazer, vigiar e verificar. Desde o local de implantação da obra à fiabilidade dos materiais a aplicar, das características dimensionais à observância dos prazos de execução, do rigor das medições dos trabalhos executados ao cumprimento dos prazos parciais, a aprovação de propostas do empreiteiro etc. Basta ler o artigo 180º do Decreto-lei 59/99 de 2 de Março.
Mas numa peça jurídica de linguagem tão “redonda” e tão “codificada” como o CCP, ficava certamente a destoar na mente do legislador, a inserção de matérias tão pouco interessantes.
A partir de 2008, as funções são aquelas que nos contratos específicos com a fiscalização, cada entidade adjudicante assim entenda, o que em si, não constitui qualquer problema.
Acontece que em 12 anos de vigência, o CPP já teve qualquer coisa como 17 revisões e muitas rectificações e sempre que é publicada uma revisão, o legislador acrescenta novas disposições. Uma das mais recentes inovações é a introdução da figura do Gestor de Contrato. Já constava da revisão operada pelo Decreto-Lei 111-B/2017 no artigo 290ºA e é de novo alterado pela Lei 30/2021 de 21 de Maio.
E que funções tem esta nova figura? Deve acompanhar permanentemente a execução do contrato, elaborar indicadores de execução quantitativos e qualitativos adequados a cada tipo de contrato, que permitam entre outros, medir os níveis de desempenho do cocontratante, a execução financeira, técnica e material do contrato. Deve também detectar desvios, defeitos ou outras anomalias na execução do contrato.
Para atingir este desiderato, não se vislumbra como as suas funções não tenham de ser paralelas, iguais ou sobrepostas com as da fiscalização. De facto, onde vai o Gestor do Contrato, recolher as informações que necessita para cumprir a sua missão, nomeadamente sobre o desempenho do cocontratante? Seguramente à verificação da normalidade do curso do Plano de Trabalhos, às medições, a desconformidades identificadas, aos processos de execução, ao plano de mão de obra, ao plano de equipamentos, tudo o que é próprio e essencial para a fiscalização cumprir as suas obrigações. Portanto, vamos ter duas entidades a fazer, com poucas diferenças, as mesmas actividades ou vamos definir claramente quem faz o quê?
Acresce que o Gestor de Contrato, pode ser plural, portanto pode existir mais de um em cada contrato e pode ser contratado externamente pela entidade adjudicante.
No Decreto-Lei 111-B/2017, o legislador esqueceu que criou esta nova figura no contrato de empreitada de obra pública e não cuidou de esclarecer na lei, o que ele representava no âmbito do contrato. Agora com a Lei 30/2021, vem tentar resolver essa omissão com uma alteração ao nº 2 do artigo 244º, que passa a dispor assim: “Durante a execução do contrato, o dono da obra é representado pelo director de fiscalização da obra, em todos os aspectos relacionados com a obra e pelo gestor do contrato em todos os outros aspectos da execução do contrato (…). Ora, ninguém no seu perfeito juízo, que tenha alguma experiência do que é a execução de um contrato de obra pública, pode entender como separar deste modo os poderes de representação. Onde é que acaba a “obra” e onde é que começam “todos os outros aspectos”? Como é possível a pronúncia sobre os “outros aspectos”, sem o conhecimento da “obra”? Tantos erros sucessivos nas alterações ao CCP, só podem ter uma explicação: Quem escreve as propostas de lei, o mais perto que deve ter estado de um contrato de construção, foi quando comprou – já pronta a habitar – a casa onde vive e os deputados não devem ter tempo para ler o que publicam como lei.