Miguel Pestana de Vaconcelos

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Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Professor da Porto Business School (PBS) e Professor Catedrático da Universidade Lusíada, Norte. Antigo Diretor e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (2014-2019). Autor de múltiplos artigos, capítulos de livros (em inglês, espanhol, francês e alemão) e livros sobre direito bancário, direito das garantias, direito da insolvência, recuperação de empresas, direito comercial e direito das obrigações.


1. Enquadramento

I. A pandemia teve, e continuará a ter, efeitos muito duros na realidade económica e empresarial. Diversas empresas foram impedidas de laborar; outras, só o puderam fazer parcialmente; e, outras, ainda, foram atingidas pelas limitações à circulação de pessoas e pela recessão económica geral. É em particular assim nas empresas do setor dos serviços, com ênfase no turismo e na restauração. Acumularam passivos e têm problemas crescentes e fortíssimos de liquidez.

O conjunto de medidas adotadas pelos entes públicos para minorar as suas consequências passou, e bem, por diversos apoios e pelo regime das moratórias legais[1], em termos, quanto a estas, diga-se, mais generosos do que a legislação congénere de outros países europeus. Mas essas medidas não eram, e continuam a não ser, em si, suficientes. O regime da moratória vai-se estreitando e aproxima-se do fim, até porque a sua extensão acarreta diversos perigos de perdas para o setor bancário. Os apoios públicos – reforce-se: essenciais – não são eternos.

II. Por isso, a resposta tem que passar, também, por mecanismos que, numa análise fina, permitam a restruturação das empresas, em especial as que estando fortemente desequilibradas financeiramente, tenham, num futuro pós-pandemia que já se avizinha, viabilidade económica.

III. Com essa finalidade, foi publicado no fim do ano passado o processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE – Lei n.º 75/2020, de 27/11)[2]. É um instrumento que consagra medidas a meu ver fundamentais, como a possibilidade de empresas insolventes recorrerem a uma variante de uma das modalidades do processo de recuperação (a dos acordos homologados), a proteção excecional e temporalmente limitada do financiamento pelos sócios e as reduções dos juros de mora das obrigações tributárias.

Trata-se de um mecanismo importante, que vai mais longe que a generalidade de figuras semelhantes adaptadas noutros Estados da União Europeia, em especial pela sua abertura a empresa insolventes por força da pandemia (ou melhor: dos efeitos da pandemia, legislativos e económicos).

Porém, dada a gravidade da situação financeira das empresas, aprofundada pela necessidade de se ter tido que recorrer a um novo confinamento, é necessário continuar a procurar os meios mais aptos para elas se restruturarem, em especial no que toca ao passivo acumulado.  

2. Ampliação do âmbito objetivo do PER

I. O que se propõe aqui é a adaptação – temporária – do processo especial de revitalização (PER)[3], permitindo a restauração de empresas, já, insolventes.

O PEVE veio, como se disse, permitir o acesso a um processo de recuperação de empresas insolventes, desde que não o fossem a 31 de dezembro de 2019. Contudo, exige para o efeito que elas negoceiem extrajudicialmente com um número mínimo de credores (na sua maioria menos exigente, 1/3 dos credores elencados na relação apresentada com direito de voto), bem mais elevado do que o previsto no PER, estando – e esse é o aspeto fulcral – durante esse período de tempo sujeitas a penhoras, interrupção dos serviços essenciais e a pedidos de declaração de insolvência. Verificando-se qualquer um destes cenários, a empresa não tem na prática qualquer possibilidade de recuperação.

II. Por conseguinte, torna-se necessário estabelecer um período de proteção dentro do qual a empresa possa negociar com os credores sem estar sujeita a esse tipo de pressões, restruturar a dívida e refinanciar-se. Esse sistema, denominado de “escudos protetores”, existe e faz parte do processo especial revitalização (PER), na sua primeira modalidade. O recurso a este processo permite à empresa iniciar e manter negociações com os credores de uma forma protegida (no âmbito de um safe harbour).

Neste caso, o período necessário para se chegar a acordo e permitir depois às empresas que sejam economicamente viáveis em circunstâncias normais de mercado retomarem a sua atividade no pós-pandemia. Fundamental é que cheguem até lá.

III. O PER tem, para além do mais, a vantagem de ser um instrumento bem conhecido, tanto pelas empresas, como pelos tribunais, o que é do maior relevo para a uniformidade e segurança na sua aplicação.

Dir-se-á que PER, não foi concebido para recuperar empresas insolventes. É verdade, mas situações excecionais exigem medidas excecionais. E, por esse motivo, esta adaptação deveria ser limitada no tempo.

IV. É ainda necessário colmatar uma das principais deficiências do regime do PER no que diz respeito à proteção do financiamento intercalar[4], ou financiamento-ponte, para a empresa poder obter meios que lhe permitam manter-se em atividade durante o período das negociações, sem que essa tutela fique dependente da aprovação e homologação do plano (momento em que produz os seus efeitos, art. 17.º-F n.º 1 CIRE).  De facto, sem eles, não se produzem nenhum dos efeitos protetores do crédito à restituição deste financiamento, seja através das garantias prestadas, seja pelo privilégio mobiliário geral, nos termos do art. 17.º-H, ns. 1 e 2 CIRE.

Mas, como bem se compreende, poucos credores estarão dispostos conceder a financiamento sem que estejam certos da sua proteção na eventualidade de uma posterior declaração de insolvência do devedor. Por isso, o crédito à restituição da liquidez imediata que seja imprescindível para a manutenção em atividade da empresa durante o período das negociações deve poder beneficiar de tutela específica, dependente unicamente da sua aprovação pelo administrador ou pelo tribunal (com o parecer do administrador). Como sucedia no regime do já vetusto CPEREF (art. 65.º, n.º 1) e se verifica na recente lei italiana[5]. Neste ponto, aliás, o regime do PER está mesmo em desconformidade com a Diretiva (art. 17.º da Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019) que impõe a proteção do financiamento intercalar[6]. Tendo a sua disciplina de ser, por essa razão, alterada (independentemente de se alargar ou não, temporariamente, o seu âmbito objetivo), é imperativo fazê-lo quanto antes.

V. Por fim, alterado nos termos expostos o regime do PER – ou mesmo que não o seja -, é de toda a conveniência estender-lhe o regime fiscal mais favorável estatuído para o PEVE.

3. A insolvência de pessoas singulares. A exoneração do passivo restante

I. Um outro aspeto tem a ver com as consequências da insolvência das pessoas singulares. Incluo aqui, tanto os consumidores, como também muitos sócios e gerentes das empresas que prestaram garantias pessoais à banca pelas dívidas da sociedade. O número de insolvências de pessoas singulares vai aumentar muito com a perda de emprego por arrastamento das insolvências das empresas.

Torna-se, por isso, necessário rever todo o regime que as permite libertar das dívidas decorrido um determinado período de tempo, por via da exoneração do passivo restante. Neste momento, são cinco anos. É manifestamente excessivo. Na Alemanha[7], o legislador acabou de o reduzir para três anos, aproveitando e alargando a transposição da diretiva. É imperativo que sigamos rapidamente esse caminho.

De outra forma, vamos ter milhares de concidadãos que, atendendo à difusão do crédito hipotecário, sendo declarados insolventes, perderão a sua casa, manterão parte das dívidas e estarão condenados à penúria por um prazo longuíssimo. Empurrados muitas vezes para a economia informal. Há que cuidar, rapidamente, dos mais fracos e das principais vítimas económicas da pandemia.


[1] Sobre elas, ver PESTANA DE VASCONCELOS, Contratos de crédito bancário e Covid 19. O regime da moratória decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020, Revista de Direito Comercial, 2020 (www.revistadedireitocomercial), pp. 1107-1034.

[2] Sobre ele, ver M. PESTANA DE VASCONCELOS, O novo processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE). Análise e proposta de reforma, Revista de Direito Comercial, 2020 (www.revistadedireitocomercial), pp. 2105-2142.

[3] Sobre ele, ver M. PESTANA DE VASCONCELOS, Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização, Almedina, Coimbra, 2017.

[4] Já há muito tempo que temos vindo a alertar para esta debilidade, de regime, ver M. PESTANA DE VASCONCELOS, Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização, cit., pp. 98, ss..

[5] Art. 100.º, n.º 1 do Codice della crisi d’impresa de 12 de janeiro de 2019.

[6] Art. 17.º, n.º 1: “Os Estados-Membros asseguram que o novo financiamento e o financiamento intercalar sejam devidamente protegidos.”

[7] Ver Regierungsentwurf eines Gesetzes zur weiteren Verkürzung des Restschuldbefreiungsverfahrens, in: www.bmjv.de/SharedDocs/Gesetzgebungsverfahren/Dokumente/RegE_Restschuldbefreiung_FAQ.pdf?__blob=publicationFile&v=1.