Gonçalo de Andrade Fabião é Assistente convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Investigador Assistente no Centro de Investigação de Direito Público.


Têm-se apresentado críticas e argumentos no sentido de o Tribunal Constitucional, no seu recente Acórdão n.º 123/2021, ter extravasado o pedido e, consequentemente, ter incumprido o princípio do pedido, previsto na primeira parte do n.º 5 do artigo 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual (doravante LTC).

Não subscrevo as críticas e penso que não houve nenhuma violação do princípio do pedido. Nas próximas linhas vou procurar topicamente analisar e contrariar os dois principais argumentos aduzidos no sentido da violação do princípio do pedido, mas não sem antes enquadrar a questão.

O Presidente da República requereu a fiscalização preventiva, no que para este propósito releva, das seguintes normas do Decreto no 109/XIV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República, Série II-A, número 76, de 12 de fevereiro de 2021, que regula as condições especiais em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível:

  1. a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que define antecipação da morte medicamente assistida não punível como a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em “situação de sofrimento intolerável”;
  2. a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que integra no conceito de antecipação da morte medicamente assistida não punível o critério “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”.

Entendeu o Presidente da República requerer a fiscalização preventiva não para saber “se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição, mas antes a questão de saber se a concreta regulação da morte medicamente assistida […] se conforma com a Constituição”. Segundo o Presidente da República, uma vez que a definição dos conceitos a que se referem os critérios em i) e ii) “cabe aos clínicos, no âmbito do procedimento [clínico de antecipação da morte]”, a – por si alegada – indeterminabilidade das expressões “situação de sofrimento intolerável” e “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico” seria inconstitucional por violação dos princípios da legalidade e tipicidade criminal.

Não obstante, o Tribunal Constitucional analisou (1) a conformidade da antecipação da morte, nos termos do decreto, com o direito à vida e (2) a conformidade de todos os pressupostos segundo os quais a antecipação da morte não é punível. Foi sobre estes dois elementos da decisão do Tribunal Constitucional que recaíram as críticas a que me refiro e pretendo analisar.

Sobre o Tribunal Constitucional ter analisado (1) a conformidade da antecipação da morte, nos termos do decreto, com o direito à vida.

O Presidente da República, no seu requerimento, procede ao que o Tribunal Constitucional batizou de delimitação negativa do seu pedido. Essa delimitação fez-se dizendo não se pretender saber “se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição”. Diga-se, desde já, que o Tribunal Constitucional não analisa a conformidade de conceitos com a Constituição, analisa a conformidade de normas.

Com esta delimitação negativa, pareceu resultar, para alguns Autores e órgãos de comunicação social, que o Presidente da República apenas pretendeu saber se a norma era determinável em conformidade com os mandatos constitucionais, excluindo a questão de saber se a norma seria ou não compatível com o direito à vida, previsto no artigo 24.º da Constituição.

Não há nada de ilegítimo nesta delimitação do Presidente da República, já que o n.º 1 do artigo 51.º da LTC, além de exigir que, no requerimento, se identifique a norma jurídica objeto do pedido, se identifique igualmente as normas constitucionais violadas. Assim, o Presidente da República definiu positivamente e negativamente as normas constitucionais que entendeu estarem violadas.

Contudo, o Tribunal Constitucional, especificamente nos pontos 23 a 33, dedica-se à compatibilidade da antecipação da morte medicamente assistida com a inviolabilidade da vida humana (n.º 1 do artigo 24.º da Constituição). Ora, não há nenhuma proibição jurídica que impedisse o Tribunal Constitucional de ter analisado a conformidade da norma objeto do requerimento com outras normas constitucionais não identificadas no requerimento – ou até, alegadamente, expressamente excluídas do requerimento.

Assim é, desde logo, devido à parte final do n.º 5 da LTC, que permite o Tribunal Constitucional fundamentar as suas decisões na violação de normas constitucionais diversas daquelas cuja violação foi invocada, no caso, pelo Presidente da República.

Trata-se do princípio iura novit curia, corolário do princípio da legalidade das decisões dos tribunais. Segundo esse princípio, os tribunais apenas podem decidir segundo normas jurídicas válidas no ordenamento jurídico. O conhecimento das normas jurídicas relevantes para decidir é oficioso, ou seja, não está dependente das normas que sejam alegadas; os tribunais são livres de selecionar as normas jurídicas que entendam por relevantes para resolver o caso. Foi isso que o Tribunal Constitucional fez, tendo concluído – ainda que “timidamente”, como sugere o juiz conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, na sua declaração de voto – que o direito à vida não implica em absoluto a proibição da antecipação da morte medicamente assistida.

Sobre o Tribunal Constitucional ter analisado (2) a conformidade de todos os pressupostos segundo os quais a antecipação da morte não é punível.

Esta crítica está, desde logo, presente na declaração de voto dos juízes conselheiros Mariana Canotilho, José João Abrantes, Assunção Raimundo e Fernando Vaz Ventura. Lê-se nessa declaração que “[a] não punibilidade da prática da ou da ajuda à antecipação da morte, por profissional de saúde, depende da verificação [de] […] elementos objetivos – e apenas dois segmentos desta dimensão normativa objetiva foram questionados pelo Presidente da República. Ora, […] consideramos que esses elementos são lógica e normologicamente autonomizáveis – cindíveis – do todo que compõe a norma.”

A formulação desta crítica tem como pressuposto a identificação da norma cuja fiscalização preventiva se requereu. Ora, tendo em conta que o requerimento se fez por referência a um enunciado normativo, é necessário interpretá-lo e identificar a norma jurídica completa objeto deste processo de fiscalização.

O Presidente da República refere o n.º 1 do artigo 2.º do decreto, que reza o seguinte: “Para efeitos da presente lei, considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” No requerimento são, contudo, isoladas as expressões em situação de sofrimento intolerável e lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico.

As normas jurídicas têm uma estrutura tripartida cujos elementos são uma previsão, um operador deôntico e uma estatuição. Na previsão são enumerados estados de coisas ou ações humanas que desencadeiam a mecânica normativa, i.e., determinam a sua aplicabilidade. O operador deôntico confere o sentido prescritivo às normas jurídicas, impondo, proibindo ou permitindo condutas humanas. Estas condutas humanas são identificadas na estatuição.

Do enunciado normativo identificam-se como condições da previsão as seguintes (i) decisão da própria pessoa, (ii) maior, (iii) vontade atual, (iv) vontade reiterada, (v) vontade séria, (vi) vontade livre, (vii) vontade esclarecida, (viii) sujeição do declarante a uma situação de sofrimento intolerável, (ix) lesão/doença.

As condições (i) a (ix) são cumulativas, ou seja, é necessário que todas se verifiquem em simultâneo para que a norma seja aplicada. Contudo, a condição (ix) pode ser uma de duas: ou (ix.a) lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico do declarante, ou (ix.b) doença incurável e fatal do declarante.

O operador deôntico é a proibição.

A estatuição é a conduta de punir a antecipação da morte.

Assim, quando se verifiquem as condições elencadas, é proibido – ou seria proibido – punir a antecipação da morte. Esta proibição tem como efeito o reconhecimento de uma permissão, dirigida aos profissionais de saúde, de antecipar a morte nas condições descritas. Esta é a norma objeto do requerimento do Presidente da República.

Ora, uma vez que as condições da previsão da norma estão organizadas de forma cumulativa, não é possível isolá-las, pois apenas a verificação de todas simultaneamente desencadearia a aplicação da proibição. Assim, para efeitos da identificação da norma jurídica objeto do requerimento, não é possível isolar as expressões situação de sofrimento intolerável e lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico.

Disto mesmo dá nota o acórdão do Tribunal Constitucional, apesar de, ao longo de extensas páginas, fazer referência a conceitos supérfluos como unidade teleológica ou a utilização de referências técnicas pouco afinadas, tais como a identificação de várias previsões numa mesma norma jurídica – o que inexiste.

Diga-se, contudo, que expresso este entendimento devido à organização cumulativa das condições da previsão. Fossem essas condições organizadas alternativamente, então a crítica seria procedente, pois é até discutível se uma norma jurídica cuja previsão tem várias condições alternativas seja, efetivamente uma norma jurídica completa ou se, por outro lado, a norma jurídica completa será aquela que isola na previsão apenas uma dessas condições, já que qualquer uma é suficiente para acionar a mecânica normativa.

Parece-me que o Tribunal Constitucional teria sempre de isolar a norma jurídica completa, já que, nos termos do n.º 1 do artigo 51.º da LTC, o requerimento de fiscalização deve indicar a(s) norma(s) que o requerente entende violar(em) a Constituição e é apenas sobre essa(s) norma(s) que o Tribunal Constitucional se pode debruçar na sua análise (primeira parte do n.º 5 do artigo 51.º da LTC). É este o princípio do pedido: a limitação dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional exclusivamente à(s) norma(s) identificada(s) no requerimento. Normas e não segmentos de normas.