Ana Mendes Lopes


Advogada e fundadora do Escritório de Advocacia Ana Mendes Lopes Legal.
Nasceu em Coimbra, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e concluiu o Mestrado em Direito e Economia, na Faculdade de Direito de Lisboa.


Muito se tem discutido, nos últimos tempos sobre se deve o crime de violação ser, ou não, integrado na natureza de crime público.

Atualmente, o crime de violação é um crime semipúblico, querendo isto dizer que ao Ministério Público só é possível iniciar um procedimento criminal contra o ofensor, depois da vítima apresentar queixa.

Corre, atualmente, uma petição para tornar o crime de violação num crime público, que conta já com algumas dezenas de milhares de subscrições. Ainda bem que o direito à petição é exercido em Portugal. Mas a questão que coloco é: será por aí o caminho?

Ao contrário do que sucede com os crimes de natureza semipública, nos crimes públicos, o Ministério Público não só deve, como tem, que iniciar um procedimento criminal logo que receba a mera notícia da prática do crime. Significando que qualquer pessoa pode denunciar um crime público que tenha chegado ao seu conhecimento.

Por estes dias, muitos se perguntam se a moldura penal dos crimes semipúblicos é mais leve do que a dos crimes públicos. A resposta é não.

Outros tantos afirmam que o legislador português não atribuiu a devida importância ao crime de violação. Mas não será a natureza semipública do crime de violação um verdadeiro escudo de proteção da importância que o legislador lhe atribuiu?

Quando alguém pratica o crime de violação, ofende não só o direito à liberdade e autodeterminação sexual da vítima, como a sua honra e dignidade, nela criando sentimentos de vergonha e humilhação.

E são estes sentimentos de vergonha e humilhação que paralisam a vítima, demovendo-a de apresentar queixa. Por medo dos agressores. E por medo dos olhares indiscretos e julgadores da sociedade. No fundo, a vítima tem medo de que a verdade a faça perder a sua identidade.

A natureza semipública do crime de violação, em Portugal, não visa (ou pelo menos não foi pensada para tal) diminuir qualquer importância a este crime, mas tão somente – ainda que não seja a situação ideal – de acautelar os interesses da vítima que na maioria das vezes prefere “esquecer” o tema (ignorando-o, na verdade, para se convencer de que o esqueceu)  ou resolver-se junto de um psicólogo ou de um terapeuta, num gabinete a meia-luz, do que ver a sua intimidade discutida em Tribunal, principalmente em localidades pequenas, e onde todos se conhecem. E onde todos falam.

Com efeito, o crime de violação sendo um crime semipúblico assegura que a possibilidade de a vítima ver a sua intimidade discutida em Tribunal depende tão e exclusivamente da sua vontade. Vontade essa que se por um lado a protege, também a prejudica, já que no seu íntimo, a sua vontade pode estar (e muito provavelmente está) enviesada.

Poderá dizer-se que o íntimo é político.  E que a educação pode ensinar a sociedade a não julgar as vítimas. Mas da teoria à prática, a vida mostra-nos que o medo e a vergonha paralisam a ação.

Uma grande (enormíssima) fragilidade do crime de violação ser crime semipúblico é o facto de as vítimas adultas disporem de apenas seis meses para apresentar queixa. Findo este prazo, o direito de queixa extingue-se e nenhum procedimento criminal será iniciado.

À velocidade que a vida corre julgo poder afirmar de que o prazo de seis meses – sendo um prazo geral de apresentação de queixa – está completamente desfasado da realidade dos crimes sexuais, que deixam marcas psicológicas duras e que não saram em seis meses. E com os danos psicológicos chegam os momentos de angústia, as alterações dos padrões de sono e a ansiedade. Conflitos internos que impedem a vítima de sentir motivação ou coragem para proactivamente, procurar a reparação do mal que lhe foi infligido, na Justiça.

Por outro lado, esta proteção da dignidade da vítima que justifica (ou tenta) a opção de o crime de violação ser semipúblico, abona perversamente a favor dos agressores! Tornando-os totalmente impunes a cada seis meses que passam!

E assim, coloco a questão: Qual é o maior problema inerente ao crime de violação? Será a sua natureza semipública? Ou será o prazo geral de extinção do direito de queixa?
Inclino-me para a segunda opção. O prazo de seis meses é um prazo burocrático, desfasado do contexto psicológico da vítima em situação pós-traumática. Em quantos anos se cura um trauma? Aliás, quanto tempo leva a vítima a aceitar que está traumatizada? Faz sentido pressionar a vítima com um prazo tão curto de seis meses, quando o mesmo processo judicial pode levar até dezenas de anos a ser discutido em Tribunal?

Muitos me dirão que a solução passava por submeter todos os processos sobre crimes sexuais ao segredo de justiça. Mas qual? Aquele segredo de justiça que nos é vendido nas primeiras páginas do jornal e é transmitido em horário nobre? Submeter os processos judiciais sobre crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual ao segredo de justiça pode, eventualmente, ser um dos trilhos. Mas ver esta solução como o caminho será ingénuo.

Por outro lado, certo é que as vítimas podem prestar as chamadas “declarações para memória futura”, declarações que são prestadas em antecipação àquelas que se prestariam em Audiência de Julgamento para evitar contactos com os ofensores. Mas esta possibilidade não prejudica em nada, tudo o que atrás se expõe.

Com certeza que é defensável que tornar o crime público pode funcionar como um fator dissuasor para os ofensores, por saberem que qualquer pessoa os pode denunciar.  A natureza pública do crime poderá, por outro lado, naturalizar a ideia de que a culpa não é da vítima porque se insinuou. Porque a liberdade e autodeterminação sexual não se insinuam, existem e merecem proteção penal.  Ideia esta que, aliás, já devia ser inata.

Não obstante, e porque soluções perfeitas não existem, cabe ao legislador português perceber, junto de uma comissão técnica (verdadeiramente) especializada, qual o caminho a trilhar. Talvez, não fosse um mau princípio, começar por alargar consideravelmente o prazo de apresentação de queixa das vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. E daí, partir para o trabalho na mudança de mentalidades, até ao dia em que o crime de violação se torne num crime público, em prol do bem da vítima.  

Mentalidades levam anos a ser modeladas. Mas a lei, se (todos) quisermos muito, pode levar apenas alguns meses.