Miguel Luís José

Advogado (Abreu Advogados), Licenciado em Direito e Pós-graduado em Ciência da Legislação e Legística e em Corporate Finance pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


O acórdão que nos propomos a analisar neste artigo foi proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no processo nº 613/13.0TVPRT.P1, de 21.02.2018. Para além de julgar várias matérias de carácter processual e substantivo com as quais lidamos no dia-a-dia, aborda com uma clareza pedagógica e assertiva o tema da alegação de situação de força maior como causa excludente da responsabilidade civil contratual, questão da qual nos ocuparemos nos próximos parágrafos por reputarmos ser de maior importância, quer para o presente como para o futuro, atendendo à situação pandémica em que nos encontramos a viver desde o início do ano 2020 e às inerentes consequências que dela derivam para o cumprimento dos contratos.

O litígio em análise tem como facto originário a perda de mercadoria por consequência de roubo durante o transporte desta de Portugal para Polónia.

Da matéria de facto ficou assente que uma empresa, segurada pela Autora, contratou em 2011 com a 1ª Ré o transporte, por camião, de 33 paletes com 2000 peças de consolas de jogos de Portugal para Polónia, ficando estes abrangidos pela Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (adiante CMR) e pela restante legislação portuguesa aplicável. A Autora (ora Recorrente) peticionou ao tribunal recorrido a condenação das Rés, a empresa de transporte subcontrada, a empresa transportadora e a seguradora da transportadora, no pagamento solidário de indemnização à Autora da quantia de EUR 250.000,00 (valor que a Autora teve de pagar à expedidora e proprietária da mercadoria roubada, sua segurada) acrescida de juros de mora vencidos no valor de EUR 8.227,74 e vincendos até efetivo e integral pagamento.  

Dentre vários argumentos, as Rés alegaram na sua defesa a prescrição do direito da Autora, a existência de situação de força maior, excludente da responsabilidade da transportadora, e o limite legalmente imposto à indemnização que fora peticionada.

O Tribunal da 1ª Instância julgou a ação improcedente por considerar que se tinha verificado a prescrição invocada pelas Rés e que estávamos de facto perante um caso que configurava a situação de força maior e que era excludente de responsabilidade civil da transportadora e da seguradora. Insatisfeita com o desfecho que ação tinha tido, a Autora (ora Recorrente) interpôs recurso de apelação que deu lugar ao acórdão em análise.  

Sustentando o recurso interposto, para além da impugnação da matéria de facto, a Recorrente alegou que não tinha decorrido na totalidade o prazo de prescrição, que a sentença recorrida enfermava de nulidade por omissão de pronúncia e por obscuridade ao considerar que ocorreu caso fortuito/força maior, que culminou com a desresponsabilização das Recorridas no pagamento de indemnização à ora Recorrente.

O Tribunal da Relação considerou que a conclusão da Recorrente sobre a nulidade da sentença por obscuridade em relação à existência ou não de caso fortuito/força maior era errada, pois é claro o raciocínio que levou o Tribunal a quo a decidir naquele sentido. Citamos então o acórdão em análise a propósito desta questão inicial:

“A obscuridade enquanto nulidade da sentença terá de entender-se, à semelhança do que se entendia já em face do disposto na alínea a) do nº 1 do art.º 669º do CPC, na redação anterior à lei 41/2013, de 26 de Junho, como o vício de que resulte a ininteligibilidade do raciocínio seguido ou a decisão nela contida. Tal como nas demais nulidades da sentença previstas no art.º 615º do CPC, o que está em causa são irregularidades inerentes a vícios de atividade, erros formais consubstanciados em desvio ou infração às regras que disciplinam a elaboração da sentença, não se confundindo por isso com erros de julgamento, erros substanciais, por se ter interpretado ou aplicado mal a lei, ou apreciado mal os factos.

No caso da sentença recorrida consignou-se o entendimento de que as circunstâncias em que teria ocorrido o furto das mercadorias não permitiam qualquer reação de defesa por parte do motorista que as transportava, consubstanciando por isso uma situação de força maior, integrando-se assim na previsão do disposto no referido art.º 17º, nº 2, da CMR. O raciocínio assim expendido é perfeitamente claro, independentemente de se concordar ou não com ele. Como tal inexiste a imputada nulidade.”

Embora o Tribunal não tenha dado razão à Recorrente quanto à questão da nulidade da sentença por obscuridade da sentença em relação a existência ou não de caso fortuito/força maior, o Tribunal concordou com a Recorrente em relação ao facto de o prazo prescricional não ter decorrido na totalidade, abrindo deste modo lugar a uma reapreciação do litígio no seu todo, particularmente no que concerne ao afastamento da responsabilidade das Rés por existência de situação de força maior que é o tema central deste artigo.

A questão da ocorrência ou não da força maior/ caso fortuito no caso que deu lugar ao litígio e que pode desresponsabilizar ou não o transportador surge associada ao que dispõe o artigo 17º, nºs 1 e 2 da CMR sobre a responsabilidade do transportador, preceitos que ora transcrevemos:

“ 1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadorias e o da entrega, assim como pela demora da entrega.

2.  O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e cujas consequências não podia obviar.”

E no ordenamento jurídico português, a causa através da qual se desresponsabiliza o transportador que está plasmada na parte final do nº 2 do art.º 17º da CRM corresponde às figuras de força maior/caso fortuito.

Como foi acima exposto, o Tribunal de 1ª Instância considerou que o roubo tinha configurado de facto uma situação de caso fortuito, porém concluiu que “Assim sendo, em face das concretas circunstâncias do caso, que se podem considerar extraordinárias, impõe-se eximir o transportador da responsabilidade pela perda da mercadoria, por verificação de uma situação de força maior”. Portanto, atendendo ao facto de o Tribunal da 1ª Instância empregar indistintamente estes dois conceitos e também os conceitos de furto e roubo, entendeu muito bem o Tribunal da Relação, mesmo tendo dado razão à Recorrente quanto à questão da prescrição, clarificar estes conceitos e reapreciar a ocorrência ou não de caso fortuito ou de forma maior que desresponsabiliza o transportador, uma vez que apenas dependendo das circunstâncias do caso concreto se poderá concluir se a situação desresponsabiliza ou não o transportador.

A doutrina na sua generalidade reconhece como caraterística principal de caso de força maior a inevitabilidade e frequentemente a imprevisibilidade (vide, por exemplo, Catarina Monteiro Pires, Cláusulas de Preço Fixo, de Ajustamento de Preço e de Alteração Material Adversa (“MAC”) e Cláusulas de Força Maior — Revisitando problemas de riscos de desequilíbrio e de maiores despesas em tempos virulentos, in Revista da Ordem dos Advogados. Lisboa. A. 80, nº 1/2 (2020), pág. 90). Por sua vez, o Professor Januário Gomes entende que o caso fortuito tem como facto distintivo a imprevisibilidade (vide a este propósito Januário Gomes, Temas de direito do transporte, vol. 1, Edições Almedina, dezembro de 2010, pág. 108). Entendimento que é partilhado pela jurisprudência, em especial no acórdão em análise, e no qual nós também nos revemos. Portanto, o caso de força maior embora tendencialmente previsível é inevitável e o caso fortuito é imprevisível.

Outros dois conceitos a distinguir são os de roubo e de furto que, como tivemos a oportunidade de fazer alusão, o Tribunal de 1ª Instância empregou-os indistintamente. O roubo consiste na subtração de algum bem por meio de coação e o furto apenas consiste na subtração de bens. Segundo o acórdão do Tribunal de Relação, o roubo facilmente reconduz-se à força maior uma vez preenchendo facilmente o requisito da imprevisibilidade e pelo facto de ser tendencialmente inevitável, ao contrário, o furto por natureza não se trata de um evento imprevisível, fator que acaba impossibilitando o preenchimento de todos requisitos que possam configurar este evento como uma situação de força maior.

No caso em análise ficou provado que se tratava de um roubo, uma vez ter sido o motorista abordado por desconhecidos num posto de gasolina que o prenderam e a seguir despareceram com o camião, portanto sendo inevitável que se perdesse a mercadoria. Assim, excluindo a questão da previsibilidade poderia reconduzir-se à figura de força maior. Porém, acresce que no nosso caso ficou provado que o motorista por instruções da transportadora decidiu estacionar naquele posto de gasolina para fazer o descanso entre as viagens. O mesmo posto funcionava numa zona pouco usada pelos outros transportadores, costuma ter pouca iluminação e tratava-se de um posto de gasolina self-service e onde não há nenhuma condição de segurança, aspetos todos do conhecimento da transportadora, pelo que era perfeitamente previsível que poderia ser vítima de um roubo ou furto se fizesse uma longa paragem naquele lugar. Assim, não tendo sido diligentes numa situação previsível, conclui-se que não estava preenchido um dos requisitos para configurar aquele caso como de força maior e excludente de responsabilidade da transportadora.

Acresce ainda que segundo o art.º 18º da CMR o ónus de provar que estavam preenchidos os requisitos de um caso de força maior e excludente da responsabilidade impende sobre transportador, ónus que no caso em análise a Recorrida não logrou satisfazer.

Assim, decidiu muito bem o Tribunal da Relação em corrigir a decisão do Tribunal da 1ª Instância que tinha considerado que tão-somente por ter ocorrido um roubo estávamos perante um caso de força maior excludente da responsabilidade da transportadora.

São três as principais lições que podemos retirar deste acórdão e deste caso sobre o uso de situações de força maior como excludente da responsabilidade do transportador. Primeiro, as situações que possam ser reconduzidas à figura de força maior dependem das circunstâncias do caso concreto. Segundo, que no caso do transporte internacional de mercadorias por estrada não basta apenas provar que se tratou de uma situação inevitável, como é o roubo, mas é também necessário aferir o grau de diligência e atitude do transportador antes do evento, portanto situações que estiveram na origem do roubo. E por último que o ónus probatório recai sobre o transportador.

No contexto pandémico em que nos movemos, é muito importante ter estes requisitos e a particularidade de cada contrato de modo a evitar futuros litígios que derivem do incumprimento de contratos e que se estendam por um lapso temporal expressivo nos tribunais nacionais e acarretem a perda de recursos para as pessoas (singulares e coletivas).