José Pedro Teixeira Fernandes

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José Pedro Teixeira Fernandes é docente do ensino superior e investigador, lecionando nas áreas de Relações Internacionais e de Estudos Europeus. Tem diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais e vários livros nas suas áreas de especialização. Integra o painel de analistas e comentadores de política internacional do Jornal 2 da RTP. É autor de diversos artigos de opinião e análise de questões internacionais na imprensa escrita, nomeadamente, no jornal Público.


1. A covid-19 infectou a Comissão Europeia danificando seriamente a sua boa imagem. Esta é uma descrição metafórica, mas capta o problema que aqui vai ser analisado. Talvez excessivamente entusiasmada pelo desempenho nas negociações do Brexit, onde houve uma assinalável coesão e eficácia europeia, a Comissão quis lançar o embrião de uma política comum na área da saúde pública. Com a pandemia da covid-19 instalada, o timing parecia perfeito para mostrar as vantagens de uma acção europeia conjunta. Nessa altura (meados de 2020), a Comissão tinha também proposto um ambicioso programa de ajuda às economias europeias — o Plano de Recuperação para a Europa — que, apesar de algumas resistências da Europa rica do Norte, foi aprovado pelos Estados-Membros em Conselho Europeu com uma dotação global superior a 1,8 mil milhões de Euros. Essa iniciativa valeu-lhe generalizados elogios na imprensa e opinião pública europeia.

2. O facto de todos os Estados-Membros estarem com sérias dificuldades para enfrentar a pandemia da covid-19 deu um compreensível motivo à Comissão para propor uma “Estratégia da União Europeia para as vacinas contra a covid-19” / COM(2020) 245 de 17 de Junho. Nesse documento elaborado pela Comissão foram traçados os seguintes objectivos: “(i) garantir a qualidade, a segurança e a eficácia das vacinas; (ii) assegurar um acesso atempado às vacinas por parte dos Estados-Membros e das suas populações, liderando simultaneamente o esforço global de solidariedade; garantir, o mais rapidamente possível, o acesso equitativo de todos os habitantes da União a uma vacina a preços acessíveis”. Para atingir esses objectivos foram apontadas duas vias: (i) assegurar uma produção suficiente de vacinas na União e, por conseguinte, um aprovisionamento aos Estados-Membros graças a acordos prévios de aquisição celebrados com os produtores de vacinas através do Instrumento de Apoio de Emergência; (ii) adaptar o quadro regulamentar da UE à situação de urgência tirando partido da flexibilidade regulamentar existente para acelerar o desenvolvimento, a autorização e a disponibilização de vacinas.

3. Todavia, o que no papel parecia uma boa ideia, está a mostrar, na prática, múltiplos e complexos problemas difíceis de ultrapassar. A questão necessita de ser analisada sob vários ângulos para se perceberem os apuros que a Comissão está a enfrentar. O primeiro ângulo do problema é jurídico e leva-nos à repartição de competências entre os Estados-Membros e a União. É um aspecto fundamental para percebermos os constrangimentos da Comissão em matéria de vacinas contra a covid-19. É necessário deixar claro que os problemas de saúde pública, enquanto competência da União Europeia, estão circunscritos às limitadas facetas previstas no artigo 168º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Em termos simples, a competência europeia é apenas numa base de complementaridade das políticas nacionais na saúde e de incentivar a cooperação dos Estados-Membros. Não estamos, por isso, perante uma matéria onde os Tratados conferiram à União uma competência exclusiva (longe disso). Assim, a Comissão não tem nesta área os poderes que dispõe na política comercial comum, o que facilitou, como já notado, a negociação com o Reino Unido, feita sem brechas entre os Estados-Membros. Essa é uma grande diferença jurídica que condiciona a acção política. Em matéria de comércio internacional — precisamente por ter uma competência exclusiva já prevista no Tratado de Roma de 1957 —, a Comissão tem grande experiência e provas dadas. Em matéria de gestão de problemas de saúde pública, pelo contrário, tem pouca experiência e menos ainda numa tarefa desta envergadura. A aposta foi arriscada logo à partida.

4. As competências legais da Agência Europeia de Medicamentos (EMA na sigla em língua inglesa) espelham também as virtudes e as fragilidades europeias nesta área. São ainda uma boa forma de percebermos o terreno pantanoso em que a Comissão se meteu ao ambicionar um sucesso na gestão das vacinas contra a covid-19 que, simultaneamente, aumentasse o seu prestígio na opinião pública e o seu poder na governação europeia. Esse organismo regulador europeu foi criado em 2004 pelo Regulamento (CE) nº 726/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, inicialmente com sede em Londres e agora em Amesterdão, devido à saída do Reino Unido da União Europeia. Pretende actuar na área dos medicamentos como um regulador ao nível geral europeu. Todavia, ao contrário do que poderíamos supor, não tem um grau de competência igual ao da Food and Drug Administration (FDA), a agência federal norte-americana que, na área da saúde, avalia a introdução de novos medicamentos para uso humano. A FDA é a única entidade nos EUA com competência nessa área, mas no caso europeu, a EMA não tem similar competência exclusiva. Esse é um detalhe jurídico que faz toda a diferença na estratégia europeia para as vacinas contra a covid-19.

5. Na União Europeia, que não é uma federação mas uma organização internacional sui generis — designação suficiente ampla e ambígua para evitar as intermináveis discussões sobre a sua natureza jurídica —, quase tudo é mais complexo do que numa federação tradicional. Para além disso, há também muitas zonas cinzentas na repartição de competências entre os Estados-Membros e a União. Assim, com a criação da EMA, surgiu a nível europeu um sistema dual na aprovação de medicamentos para uso humano. Há, então, dois tipos de procedimentos legalmente válidos para a introdução de novos medicamentos na União Europeia e/ ou Estados-Membros. Um é o procedimento centralizado, o qual permite a comercialização de um medicamento com base numa única avaliação e autorização feita pela EMA que é válida em toda a União. No entanto, aspecto importante, esse procedimento só é obrigatório em certos casos específicos (por exemplo, medicamentos que contenham substâncias novas para tratar o cancro, diabetes, ou envolvem manipulação de genes). A outra via passa pela autorização das autoridades nacionais competentes (no caso português pelo Infarmed), sendo a mais usada para a grande maioria dos medicamentos actualmente disponíveis no mercado farmacêutico. Esse sistema dual é uma das causas da quebra da actuação conjunta europeia nas vacinas.

6. É  assim constatável que a Comissão se  aventurou num terreno novo onde tinha três grandes fragilidades internas à partida, as quais foram subestimadas pelo menos na sua envergadura: (i) não tem uma competência exclusiva, mas meramente partilhada e complementar à dos Estados-Membros na área da saúde pública; (ii) a autorização  para o uso de uma vacina contra a covid-19 num Estado-Membro não está legalmente sujeita a uma prévia aprovação da AEM, a não ser para  uma introdução conjunta em toda a União; (iii) nos serviços da Comissão não existia uma experiência anterior, nem jurídica, nem de gestão, na negociação e implementação de contratos tão complexos como estes. A par destas fragilidades internas que limitam a acção da Comissão Europeia, parece ter sido também subestimada a competição externa na investigação, produção e distribuição de vacinas, quer a movida pelo Reino Unido, agora já fora da União Europeia, quer a feita pela Rússia e pela China. Na realidade, o que temos assistido nestes primeiros meses de 2021 é um sucessivo marcar de pontos nesta competição, por britânicos, russos e chineses, ainda que sob diferentes formas. Esses sucessos dos seus competidores e/ ou rivais não ocorrem não apenas no mundo exterior, projectam-se também no seu interior.

7. Para além das falhas imputáveis à Comissão e à sua Presidente Ursula von der Leyen, há aspectos políticos criticáveis relacionados com o comportamento dos Estados-Membros. Importa notar que estes concordaram com a estratégia proposta pela Comissão em meados de 2020, que prometia vantagens significativas. Isso era muito evidente para os Estados de pequena dimensão e com poucos meios, ou sem indústria farmacêutica com capacidade de produzir as vacinas. Todavia, com o falhanço do objectivo de assegurar um acesso rápido às vacinas por parte dos Estados-Membros e das suas populações — e de liderar o esforço global de solidariedade — as brechas na abordagem comum europeia começaram a surgir. Primeiro foram os “suspeitos habituais” do Leste europeu (Hungria, República Checa, Polónia, etc.) a anunciar o recurso às vacinas da China (Sinopharm e outras) e/ ou da Rússia (Sputnik V), abrindo a porta a mais influência desses países no interior da União. Depois, outros Estados como a Áustria e a Dinamarca anunciaram uma parceria com Israel para o desenvolvimento de uma segunda geração de vacinas contra a covid-19. Especialmente a primeira atitude é censurável politicamente, mas não é propriamente uma novidade. Uma política experiente como Ursula von der Leyen podia (e devia) ter antecipado as fragilidades internas e externas da União. Estas não recomendavam assumir tarefas tão ambiciosas nesta matéria sem ter previamente reunido os meios necessários, jurídicos, políticos e de gestão. Mais Europa feita à pressa não serve os europeus.

Artigo originalmente publicado no Público, 12/03/2021