Edgar Alexandre Martins Valente

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Advogado Associado na sociedade Dantas Rodrigues & Associados – Sociedade de Advogados, RL, com escritório em Lisboa. Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tendo defendido tese no âmbito do Direito do Arrendamento e Despejo
Principais áreas de investigação: Processo Civil e Direito Civil, com especial incidência na área do Arrendamento e Despejo


Na sequência do anúncio de um novo Estado de Emergência no passado dia 15 de janeiro de 2021 e sua renovação no dia 31 do mesmo mês de forma a produzir efeitos até ao dia 14 de fevereiro, com futuras expetáveis renovações finda essa data, somos motivados a problematizar o atual estado de um ramo tão sensível como o da habitação, mais propriamente do arrendamento urbano e da legislação excecional vigente em sede de combate ao surto epidemiológico Covid-19, cujo número de casos e mortes ultrapassou tudo aquilo que seria imaginável num país como Portugal, demandando medidas de urgência nos mais diversos ramos da economia.

Se é certo que o atual contexto é de incerteza, menos certeza se gera quando procuramos respostas na legislação transitória aplicável ao arrendamento habitacional e não habitacional, sendo que a prática revela que as soluções aventadas pelo legislador no sentido de harmonizar os interesses de senhorios e arrendatários neste mesmo contexto, claramente não se adequam à larga maioria das necessidades sentidas por ambas as partes.

Concretizando em breves linhas: nos contratos habitacionais, à luz do regime excecional resultante da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, vigorou a possibilidade de os arrendatários diferirem o pagamento das rendas relativas aos meses em que foi decretado o primeiro estado de emergência, referentes a abril, maio e junho, devendo o arrendatário proceder ao pagamento das mesmas, no prazo de doze meses, a partir de julho, em duodécimos, juntamente com a renda respetiva devida em cada um desses meses, repercutindo-se assim no pagamento, durante esse período de doze meses, de uma renda acrescida de um quarto de renda por cada mês.

Já no que concerne aos contratos não-habitacionais, referentes a estabelecimentos abertos ao público destinados a atividades de comércio a retalho e de prestação de serviços encerrados ou que tenham as respetivas atividades suspensas por determinação legislativa ou administrativa e estabelecimentos de restauração e similares, incluindo os exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio, tendo iniciado com um regime em tudo semelhante ao aplicável aos contratos habitacionais, igualmente resultante da redação inicial da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, rapidamente sofreu uma cadeia de sucessivas extensões que tornam atualmente complexa a respetiva análise, mas que podemos simplificar da seguinte forma:

1. Lei n.º 17/2020, de 29 de maio – Em estabelecimentos encerrados ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa, o arrendatário poderia deferir as rendas compreendidas entre abril a agosto de 2020, iniciando a respetiva regularização dos valores diferidos entre setembro de 2020 e junho de 2021, sendo que juntamente com a renda devida em cada um desses meses, deveria ser pago o respeitante a 1/10 de renda.

2. Lei nº 45/2020, de 21  de agosto – Em estabelecimentos encerrados ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa, o arrendatário poderia deferir as rendas dos meses em que se mantivesse encerrado, não podendo o diferimento aplicar-se a rendas vencidas depois de 31 de dezembro de 2020, sendo que a regularização dos valores relativos a essas rendas deveria ocorrer entre 1 de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2022, isto é, em 24 prestações sucessivas, juntamente com a renda vencida em cada um desses meses.

3. Lei nº 75-A/2020, de 30 de dezembro – Em estabelecimentos encerrados ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa desde março de 2020 e que permaneçam ainda encerrados em 1 de janeiro de 2021 e a par do regime referido no número anterior, o arrendatário pode voltar a deferir o pagamento das rendas iniciando a regularização em 1 de janeiro de 2022 e terminando em 31 de dezembro de 2023, devendo o valor das rendas deferidas ser pago igualmente em 24 prestações sucessivas, juntamente com a renda vencida em cada um desses meses.

Paralelamente e a fim de salvaguardar a manutenção dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, ainda que cessados no entretanto, a redação inicial da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, estabelecia a suspensão da produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio e a execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado, que a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril viria a alargar a outras situações de cessação do contrato de arrendamento como a caducidade, revogação, oposição à renovação e a desocupação a que se refere o artigo 1053.º do Código Civil, no período de 6 meses após caducidade, que a Lei n.º 14/2020, de 9 de maio, por sua vez, viria a manter suspensos até 30 de setembro de 2020, prazo este alargado a 31 de dezembro de 2020 pela Lei n.º 45/2020, de 20 de agosto e, mais recentemente, novamente alargado até 31 de junho, pela Lei n.º 75-A/2020, de 30 de dezembro, desde que o pagamento dos meses objeto de extensão seja devidamente salvaguardado, de forma pontual, pelo arrendatário.

Igual suspensão é aplicável aos estabelecimentos comerciais fechados por imposição legislativa ou medida administrativa, sendo que, quanto a estes, o arrendatário, apenas deverá proceder ao pagamento das rendas a partir do momento em que o estabelecimento visado reabre ao público, sob pena de resolução dos respetivos contratos.

Feito em breves linhas o enquadramento geral no que diz respeito ao pagamento das rendas durante o período excecional que atravessamos e a extensão da respetiva duração, ainda que o contrato, habitacional ou não-habitacional, houvesse de cessar durante o período visado, importa agora perceber se o regime que vem sendo adotado praticamente desde abril de 2020 até à presente data, tem efetivamente contribuído para salvaguardar os interesses efetivos das partes envolvidas.

A resposta terá de ser necessariamente negativa, relevando a prática que, na maioria das situações, quer se trate de contratos habitacionais como de contratos não-habitacionais, os intervenientes procuram, pela via do acordo, alcançar soluções que a própria lei deveria prever a priori, de forma a acautelar precisamente a obtenção de acordo entre as partes durante o contexto conturbado que atravessamos, uma vez que, na maioria das situações, quer por inexistência de cedências mútuas das partes na repartição do prejuízo, como por falta de compreensão da posição da contraparte, vêm-se estas obrigadas, especialmente os arrendatários, a socorrer-se da parca proteção conferida pelo legislador que, não dando uma resposta imediata ao problema, se limita, outrossim, a postergar para momento ulterior, a resolução do mesmo, sendo certo que o adiar desse problema, não determina necessariamente que o mesmo obtenha resolução efetiva mais tarde, sendo outrossim expetável que a cessação da proteção transitória e excecional que o manancial legislativo atualmente acoberta ao nível do arrendamento urbano, venha colocar a descoberto a verdadeira instabilidade existente nesta matéria por força do impacto causado pelo surto Covid-19.

Falamos essencialmente da falta de pagamento de rendas, quer por força do diferimento do seu pagamento no caso de estabelecimentos encerrados por imposição legislativa ou medida administrativa, mas também outrossim, por parte de estabelecimentos que não tendo tido qualquer faturação durante o período visado, ainda que permitida a sua abertura ao público, optam por fazer interpretação quiçá demasiado extensiva da letra da lei a fim de encontrarem nesta o consolo de poderem pagar mais tarde as rendas que não conseguem pagar no momento, na esperança de que dias melhores permitam dar guarida ao esforço económico de pagar não apenas a renda que se venha a vencer, mas também parte das rendas diferidas.

Ora, se tal situação é difícil de compaginar num estabelecimento encerrado por imposição legislativa, que naturalmente continua a ter encargos económicos ao final de cada mês, de igual forma não se entende como conseguem superar tal percalço estabelecimentos sem faturação e sem proteção legislativa, uma vez que nestes casos, poderá o senhorio promover a imediata resolução do contrato de arrendamento uma vez verificado o fundamento resolutivo constante do n.º 3 do artigo 1083.º, de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.

O mesmo se diga, por sua vez, quanto aos contratos habitacionais em que quer por redução do salário normal como por motivo de desemprego de um dos membros do casal em caso de arrendamento de casa de morada de família, por exemplo, se vêm estes e outros casos, na completa impossibilidade de proceder ao pagamento pontual da renda devida mensalmente, quanto mais do duodécimo que a este deve acrescer no período compreendido entre julho de 2020 e junho de 2021,

É precisamente neste estado de coisas que nos encontramos, pois se por um lado existem senhorios na expetativa de receber rendas que por concessão legislativa ou por impossibilidade económica dos arrendatários não são pagas, existem, de igual forma, arrendatários sem possibilidade de garantir tal encargo, mesmo que à luz dos apoios ao pagamento de rendas anunciados.

De que forma vêm assim resolvendo as partes os imbróglios que o legislador não permite superar? A prática mostra-nos serem diversas as vias seguidas de forma a minimizar os impactos da pandemia nestes contratos, uma vez que nem sempre a melhor solução passará, como entende o legislador, por diferir o pagamento para momento posterior, quando poderia ser obtida uma solução intermédia que salvaguardasse por um lado o interesse do senhorio, por exemplo, ao receber parcialmente o valor da renda, contra um perdão ou pagamento posterior do remanescente, de forma a que o valor diferido seja inferior, causando menos impacto ao arrendatário que, numa altura de recuperação económica, em especial nos contratos não habitacionais, necessite de fazer face não apenas ao encargo da renda mas também de outros encargos associados a qualquer estabelecimento comercial.

Podemos assim dividir em três as soluções encontradas pelas partes para colmatar as lacunas legislativas, aplicáveis casuisticamente, quer a contratos de arrendamento habitacionais, em regra para habitação permanente e aos contratos não habitacionais, primordialmente destinados à exploração de estabelecimentos comerciais.

A primeira e de utilização mais comum, consiste na redução parcial do valor da renda, contra o pagamento de um valor diferido inferior ao atualmente legislado ou com inerente perdão por parte do senhorio do valor remanescente, tendo esta sido, efetivamente, uma das soluções encontradas e mais utilizadas pelas partes, de forma a garantir que, por um lado, o arrendatário continua a pagar as rendas dentro da sua disponibilidade económica, num valor inferior ao usual e previamente acordado com o senhorio, de 50% ou 75% do valor normalmente pago e, por outro garantindo que o senhorio continua a receber rendimentos prediais dos imóveis que explora, anda que inferiores ao valor que geralmente recebia, na medida em que será porventura mais útil ao senhorio, numa altura de maior instabilidade económica, continuar a receber rendas, ainda que inferiores, que receber, a partir de janeiro de 2022, no que concerne aos contratos não-habitacionais em que é explorado estabelecimento comercial encerrado por imposição legislativa ou medida administrativa, além do valor normal de renda, o valor da renda diferido, em vinte e quatro prestações, numa altura em que porventura poderá ter menor necessidade de tais proventos do que terá precisamente na presente conjuntura. 

Um outra solução também na disponibilidade das partes e não raras vezes utilizada, consiste na celebração de um aditamento ao contrato de arredamento estabelecendo a alteração do valor da renda por período determinado, em geral um, dois ou mais anos, consoante a previsão das partes para a recuperação económica do arrendatário, a qual poderá surgir eventualmente associada ao estabelecimento de escalonamentos no aumento valor da renda para assim permitir, consoante a recuperação progressiva da estabilidade financeira do arrendatário que o mesmo vá procedendo ao pagamento de rendas mais elevadas ao longo dos meses ou dos anos estipulados, para assim colmatar não apenas o seu prejuízo financeiro mas também o do próprio senhorio, sendo comum, neste último tipo de casos, em especial em estabelecimentos de restauração e hotelaria, a estipulação da dilatação do próprio prazo de duração do contrato de arrendamento de forma a aumentar a confiança dos senhorios na estabilidade do vínculo que mantém com o arrendatário mas também para permitir aos próprios arrendatários, num posterior período de maior afluência económica, a recuperação do avultado investimento económico que por regra foi feito no início da execução do contrato de arrendamento e mesmo durante a própria execução, por exemplo na conservação e manutenção, nos estabelecimentos em questão.

Numa última vertente, porventura menos satisfatória para ambas as partes mas não raras vezes necessária, acordam as partes, para fazer cessar, em fase embrionária, o prejuízo que ambas atravessam perante a impossibilidade por parte do arrendatário de fazer face ao encargo mensal de pagar as rendas devidas e não se enquadrando numa das situações dignas de proteção na letra da lei, em proceder à revogação do contrato de arrendamento celebrado, assim fazendo cessar o vinculo existente entre senhorio e arrendatário, geralmente associado a um acordo de pagamentos quanto a eventuais valores em dívida.

Em resposta à pergunta que lança o repto que justifica as presentes considerações (como colmatar a lacuna legislativa e o futuro incumprimento generalizado de contratos de arrendamento?), importa notar que não existe uma resposta exata nem tão pouco precisa para o problema que vivenciamos em sede de arrendamento urbano, situação mais do que natural quando existem interesses conflituantes tão distintos que importa, de alguma forma, compatibilizar entre si e, simultaneamente, harmonizar com as terríveis consequências que o Covid-19 nos trouxe.

Não obstante, não sendo contrárias à lei, qualquer uma das soluções supra elencadas é lícita e como tal suscetível de ser utilizada face à manifesta lacuna legislativa na maior parte dos casos em que o simples diferimento de pagamentos não aproveite nem ao senhorio nem ao arrendatário, sendo assim pertinente e necessária a previsão legal de tais situações de forma a ressalvar a ausência de consenso em parte não despiciente dos casos mas também de forma a evitar o há muito preconizado futuro incumprimento definitivo de muitos destes contratos que apenas de forma artificial,por força dos regimes excecionais vigentes, ainda permanecem válidos e cujas consequências, na ausência de uma real intervenção legislativa, serão devastadoras e opostas aos propósitos que devem presidir a um mercado de arrendamento que se pretende saudável, quer para senhorios como para arrendatários, sobretudo nos tempos que correm.