Jorge Bacelar Gouveia


Licenciado em Direito, na menção de Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1989). Mestre em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1993). Doutor em Direito, na especialidade de Direito Público, pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (1999). Agregado em Direito, na especialidade de Direito Público, pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (2007).

Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa (desde 2009) e Professor Catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa (desde 2008). Coordenador dos Cursos de Doutoramento em Direito e Segurança e de Mestrado em Direito, Segurança e Inteligência da ACITE – Academia de Ciências e Tecnologias de Angola (desde 2019). Coordenador do Programa de Doutoramento em Direito da Universidade Católica de Moçambique (desde 2019).

Advogado, Jurisconsulto e Árbitro.

Autor de mais de 300 títulos, com manuais, monografias e artigos científicos em diversos domínios científicos, jurídicos e extrajurídicos, de que se evidencia o Direito Constitucional (incluindo os Direitos Fundamentais, o Direito Regional e o Direito Eleitoral), o Direito Internacional Público (incluindo os Direitos Humanos, o Direito do Mar e o Direito do Espaço), o Direito Fiscal, o Direito da Segurança, o Direito da Religião e o Direito Comparado de Língua Portuguesa.


O que o levou à escolha do curso de Direito?

Não sei precisar porquê, talvez com base numa motivação religiosa e moral, mas achei que seria no Direito que poderia encontrar duas coisas que, no tempo de juventude, entendia serem as minhas inquietações, as quais a maturidade veio demonstrar estarem certas, e que continuam a ser hoje: encontrar o caminho da Justiça e obter os instrumentos adequados para percorrer esse itinerário.

Julgo que o Direito correspondeu, na perfeição, a essa dupla busca: por um lado, o Direito, mais do que um sistema lógico no raciocínio, tem subjacente soluções que propendem para se alcançar um resultado justo; por outro lado, o Direito deve ser visto como aquilo que “deve-ser”, e não apenas como o “dever-ser que é”, pelo que oferece institutos aptos a manter a rota desse caminho quando a “viagem” dela se desvia, ou quando se torna mais lenta ou até tem momentos de regressão.

De que forma a frequência no ensino superior o moldou para a vida?

Posso hoje dizer, com 60 anos, e tendo entrado na licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em outubro de 1984, que acertei em cheio na minha vocação académica, “apaixonando-me” pelo Direito logo no 1.º ano, com todas as suas agruras e as violências, na altura num ambiente muito agreste quanto ao relacionamento entre os docentes e os estudantes, que atualmente seria insuportável e mais não era senão o chamado “bullying”, havendo em abundância, mas então sem ter essa bonita designação inglesa.

Ora, esse gosto possibilitou-me ter boas notas, que, por sua vez, abriram as portas da docência académica, num momento em que o acesso a esta estava “bloqueado” por múltiplos fatores, como, por exemplo, as influências de grupos políticos, os apadrinhamentos das linhagens familiares, ou as vantagens de uma alta posição social.

Não beneficiando de nenhum desses “ventos”, superei aqueles obstáculos e, com orgulho, fiz bem a minha carreira até chegar a professor catedrático em 1 de julho de 2009, não sendo “filho ou afilhado de professor”, sem “pagar tributo” a organizações secretas, ou sem reivindicar os “favores de qualquer pensamento ideológico ou político” que pudesse conferir proteção.

Digo isto, por um lado, com alegria, dada a posição de êxito em que agora me encontro, mas também o digo com tristeza, por ter visto muitas injustiças para com colegas da minha geração que foram bloqueados pelo “sistema académico”, que, na verdade, noutros moldes, ainda persiste, embora menos forte, conquanto mais subtil, tendo tido a sorte de dele ter escapado…

Foi uma carreira que fiz por minha conta, contando com o meu esforço, abnegação, sacrifício e às vezes sofrimento, tendo encontrado os professores justos que reconheceram o meu mérito, de que cumpre destacar tanto o Professor Doutor Jorge Miranda e o Professor Doutor Sérvulo Correia (meu patrono de advocacia, que muitos bons conselhos me deu para a vida, que jamais esquecerei) na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa como o Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, quando esta foi mais recentemente criada, exemplos de inteligência, dedicação e nobreza de caráter que raramente encontrei na academia e na vida em geral, política, judicial, desportiva ou pessoal.

Considero que boa parte daquilo que hoje sou o devo à formação jurídica recebida – por ser uma formação jurídica e por ter sido bem ministrada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – porque aprender Direito me desenvolveu tanto a capacidade de organização, método e resiliência, que não é possível encontrar noutras formações como a perspetiva crítica sobre a solução dos problemas do país, da sociedade e do Mundo, a qual nunca se perde, mesmo que se esteja perante um ordenamento jurídico que tem de ser aplicado e que não permite soluções alternativas.

Ao invés do que muitos dizem, talvez por desconhecimento, o Direito está longe de ser uma aprendizagem meramente formalista e muito menos para decorar leis ou manuais: sendo importante conhecer as soluções jurídicas, elas supõem todo um substrato que nos mergulha nos problemas da vida, nos seus diversos âmbitos, tantos quantos os setores por que se organiza a sociedade humana.

Qual a experiência mais marcante no seu percurso académico?

Como se imagina, tenho tanto a dizer do meu percurso académico, nestes 38 anos de ensino ininterrupto, que comecei quando fui monitor no meu 4.º ano de Direito em 1987/1988, que tudo isso decerto daria para fazer um livro, mas que só posso deixar escrito – em vida claro – para ser publicado, convenientemente, depois da minha morte.

Tendo a minha vida académica repartida pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, são vários os episódios que posso contar, e escolho dois.

Um deles relaciona-se com o meu doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, tendo sido nesta o primeiro doutor em Direito Público (a segunda pessoa a doutorar-se, depois do Professor Doutor Rui Pinto Duarte, que foi o primeiro, mas que há mais de 10 anos saiu da Nova e se transferiu para a Católica…).

Após o convite do Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral para abraçar o novo projeto da Nova Direito (infelizmente hoje progressivamente mais distante do espírito inicial na qualidade do ensino e na seleção dos melhores, “metamorfose” kafkiana que se percebe muito bem até pelo facto de ser designada, ilegalmente, com um certo “novo riquismo” intelectual, apenas por “Nova School of Law”), correu mal a comunicação da decisão de querer fazer o doutoramento nesta Faculdade, o que me obrigava a desistir da admissão que já tinha alcançado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Tendo como orientador o Professor Doutor Jorge Miranda, obviamente era a este mestre que devia dizer, em primeiro lugar, o resultado de uma longa ponderação. Mas não o consegui contactar no dia em que tinha de formalizar essa decisão porque não o encontrei na Faculdade, e queria dizer-lhe pessoalmente; só que ao fazê-lo institucionalmente nesse mesmo dia (uma sexta-feira), outros professores souberam de imediato e a notícia espalhou-se à velocidade da luz, e não havia telemóveis.

Ora, o Professor Doutor Jorge Miranda, logo que soube, levou muito a mal ter tido conhecimento por esses outros professores – no caso, porque sempre muito atento, foi através do Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa – e decidiu que não pretendia mais ser o meu orientador de doutoramento.

Como se compreende, não me coloquei numa situação fácil porque – além de ter de arrostar com as incompreensões várias do costume, segundo as quais a minha transição da Clássica para a Nova se devia a “arrivismo” – iria entrar num mundo desconhecido, com poucos professores, e com a hostilidade do meu mestre de sempre.

Nunca olvidarei o conselho e a intervenção que, neste momento agudo da minha vida académica, recebi do Professor Doutor Sérvulo Correia, de quem era, na altura, colega de escritório e sócio da sua sociedade de advogados, porque me salvou do pior…

O outro episódio relaciona-se com a minha atividade de cooperação nos países lusófonos, que contabiliza, ao longo destes anos, muitos factos, emoções, acontecimentos, alegrias e desaires.

Recordo apenas a experiência do ensino, no ano letivo 1993/1994, em Maputo, na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, que aceitei e em relação à qual fui assaltado por todas as angústias.

Todavia, foi uma experiência fascinante, não só pela companhia dos colegas cooperantes – o Dr. José Pedro Ramos Ascensão e o Doutor Paulo Câmara, um “trio” muito bom! – como sobretudo pela avidez de conhecimento que os alunos moçambicanos mostravam, podendo ver como em mais ninguém vi até à data o entusiasmo e a alegria de poderem entrar nos meandros do Direito e das suas subtilezas, contrariando todos os meus mais inconfessáveis preconceitos a respeito da sua prestação, tão boa como de outro aluno em qualquer parte do Mundo. 

Gostaria de deixar algum conselho aos novos estudantes, que entram agora no ensino superior?

Sim, há muitos conselhos, e devem logo tomar nota da desvantagem geral com que partem, que é a de terem um défice de cultura geral, sobretudo a literária e a histórica, não tanto a artístico-desportiva, que se refletirá na mais difícil compreensão das opções que o Direito comporta.

Sei que há muitos modos de estudar e cada um tem o seu e percebo que agora a maioria dos estudantes gosta de estudar de noite, havendo mais silêncio, e até em bibliotecas, muito confortáveis e assim podendo gozar de uma companhia circundante que quebra a solidão do estudo.

Porém, a minha “tática” foi a tática da “solidão trabalhadora e libertadora”: o estudo do Direito, por definição, é um esforço individual – e, por isso, solitário – e funda-se muito na leitura dos elementos de estudo, doutrinários e normativo-jurisprudenciais.

Sempre fui mais de “ler” do que de “escrever”, embora na maior parte dos casos hoje os estudantes gostem de resumir, pelas suas palavras, o que os professores escrevem nos seus manuais.

Só que nunca me dei bem com isso porque esse método representava uma “perda de tempo”, uma vez que era melhor ler o dobro dos livros do que gastar o mesmo tempo em ler e resumir, tal só dando para ler metade…

Claro que este método supõe uma maior capacidade de memorização, ainda que alguns resumos para mim fossem sobremaneira importantes para fazer esquemas e classificações das diferentes matérias, organizando, a meu modo, os assuntos tantas vezes caoticamente apresentados pelos docentes.  

Uma leitura obrigatória para quem estuda Direito? (sem querer condicionar, ficaríamos gratos que pudesse indicar um livro Almedina)…

Há tantos livros e bons, e muitos deles da “Almedina”, em cujo grupo englobo os livros das “Edições 70”.

O meu desejo é que os estudantes – tantas vezes “violentados” na estreiteza dos antolhos de que são vítimas quando não podem estudar senão o “livro único” do professor regente porque têm “medo” de ter má nota se ousarem ler e aderir a opiniões de outros professores, de dentro ou de fora da escola (o que diz tudo sobre a liberdade académica que se vive em Portugal…) – possam ter uma leitura de segundo plano, em paralelo com os livros jurídicos que leem durante as aulas para efeitos de conhecimento e avaliação em cada ano letivo, de natureza mais geral a respeito de temas do Direito, Público e Privado, com projeção na História, na Filosofia, na Sociologia, na Ciência Política e na Economia.

Vou recomendar dois tipos de livros:

– livros de literatura com temas de Direito: George Orwell, “1984” e “Animal Farm”; Franz Kafka, “O processo” e “O castelo”; Michel Foucault, “Vigiar e Punir”; Ulrich Beck, “Sociedade de risco mundial”;

– livros de Direito de ordem geral: Hans Kelsen, “Teoria Pura do Direito” e “Justiça e Direito Natural”; Gustav Radbruck, “Filosofia do Direito”; Giorgio del Vecchio, “Lições de Filosofia do Direito”; Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito.