Edgar Valles

Advogado e autor de vasta obra jurídica.


Nacionalidade e Estrangeiros corresponde a uma das obras de sua autoria.

Consulte a obra neste link.


IMIGRAÇÃO: NA HORA DAS OPÇÕES

Não o era, mas passou a ser. A imigração é hoje tema de debate nacional, com posições divergentes, muitas vezes apaixonadas e também virulentas.

O fim da manifestação de interesse, em junho de 2024, e a intenção governamental de regular a imigração, estão na origem do debate, em que o maior partido da oposição se apresenta claramente dividido.

Muitos opinam, mas poucos comentadores sabem qual a evolução legislativa sobre esta matéria, que nos ajuda a tomar posição sobre a questão central: justifica-se regular a imigração ou tal contraria a tradição humanista e solidária de Portugal?

AS QUOTAS

Na versão inicial da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, conhecida por Lei dos Estrangeiros,a entrada e permanência no nosso país de trabalhadores estrangeiros era fortemente restringida. O Conselho de Ministros aprovava anualmente, sob proposta do Conselho Económico e Social, uma resolução definindo o número previsível de trabalhadores estrangeiros suscetível de ocupar postos de trabalho que não fossem preenchidos por nacionais portugueses, trabalhadores nacionais de Estados membros da União Europeia, do Espaço Económico Europeu, de Estado terceiro com o qual a Comunidade Europeia tinha celebrado um acordo de livre circulação de pessoas. O número de trabalhadores estrangeiros admitidos em Portugal não podia exceder essa quota anual.

      O empregador disponibilizava uma oferta de trabalho junto do Instituto do Emprego e da Formação Profissional, por um período de 30 dias. Este instituto mantinha uma lista de postos de trabalho no seu site, divulgada nas embaixadas e postos consulares. O trabalhador estrangeiro poderia pedir visto de entrada em Portugal desde que apresentasse contrato de trabalho ou promessa de contrato com um empregador que tivesse disponibilizado a oferta de trabalho, constante da lista do Instituto do Emprego e Formação Profissional.

      Em termos práticos, apenas era concedida autorização de residência se o trabalhador tivesse entrado legalmente em Portugal e a sua contratação estivesse dentro da quota anual definida. Poderia também ser concedida autorização, a título excecional, se o trabalhador tivesse entrado e permanecido legalmente em Portugal, com um contrato de trabalho e descontos para a segurança social.

     Ninguém se insurgia contra o regime das quotas, designadamente não era considerado uma prática incorreta ou pouco solidária. Aliás, curiosamente, a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, foi aprovado pela Assembleia da República um período em que o Partido Socialista detinha maioria parlamentar.

A MANIFESTAÇÃO DE INTERESSE

Face às necessidades crescentes de mão de obra estrangeira, o XX Governo Constitucional, de António Costa, promoveu, de forma engenhosa, a criação da “manifestação de interesse”, em 2017.

        Assim, a Lei n.º 59/2017, introduziu uma alteração ao artigo 88.º, n.º, da Lei n.º 23/2027, pela qual uma mera comunicação ao SEF, denominada manifestação de interesse), acompanhada de contrato de trabalho ou promessa de contrato, proporcionava autorização de residência.

       Ainda que se mantivesse formalmente o regime das quotas anuais, a manifestação de interesse permitiu “furar” as regras de controlo da imigração. Assim, bastava entrar legalmente em Portugal, com um visto de turista, e conseguir uma promessa de emprego (que poderia não se concretizar) para poder efetuar a manifestação de interesse e, por essa via, passar a residir em Portugal.

        O número de autorizações de residência no ano de 2018 foi o maior de sempre (cerca de 165.000, com regularização de 13.000 trabalhadores estrangeiros). O Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo”, relativo ao ano de 2018, elaborado pelo SEF, constata:

“Verificou-se, pelo terceiro ano consecutivo, um acréscimo da população estrangeira residente, com um aumento de 13,9% face a 2017, totalizando 480.300 cidadãos estrangeiros os titulares de autorização de residência, valor mais elevado registado pelo SEF, desde o seu surgimento em 1976. A concessão de novos ơ tulos de residência registou um acréscimo de 51,7%, totalizando 93.154 novos residentes, o que confirma o retomar a atratividade de Portugal como destino da imigração”.

     Eduardo Cabrita, então Ministro da Administração Interna, declarou na Assembleia da República, em 11/03/2019, que “as migrações são uma aposta estrutural da sociedade portuguesa. Por isso no ano passado tivemos o maior número de concessão de autorizações de residência de sempre.”

PRESUNÇÃO DE ENTRADA LEGAL

O programa do segundo Governo de António Costa, apresentado  em 2019, realçava que “Portugal precisa, para sustentar o seu desenvolvimento, tanto no plano econômico como no demográfico, da contribuição da imigração”. Nesse pressuposto, foram enunciadas dezenas de ações sob o título “Mudar a forma como a administração se relaciona com os imigrantes”, com uma “abordagem mais humanista e menos burocrática” para combater o problema da redução da população portuguesa e a inserção no mercado de trabalho.

    Entre as medidas propostas constavam:

– permitir o trabalho em regime de tempo parcial dos imigrantes estudantes;

– eliminar o regime de cotas de emprego nas empresas portuguesas;

– prever um título temporário de curta duração para quem procura trabalho, combatendo a ilegalidade;

– aumentar direitos sociais e modernizar a segurança social;

– agilizar mecanismos para regularizar imigrantes que já estejam no mercado de trabalho, mas tenham   problemas para legalizar sua permanência.

      Em 29 de março, foi publicada a Lei n.º 28/2019, de 29 de março (sétima alteração à Lei n.º 23/2007, de 4 de julho), que estabeleceu uma presunção de entrada legal para a concessão da autorização de residência para o exercício da atividade profissional, ao aditar um número 6 ao artigo 88.º.Com esse aditamento, fixou-se a presunção de entrada legal, prevista na alínea b) do n.º 2, sempre que o requerente trabalhe em território nacional e tenha a sua situação regularizada perante a segurança social há pelo menos 12 meses.

      Como regra, uma presunção pode ser elidida mediante prova em contrário. Porém, neste caso, esta presunção de entrada legal foi considerada inelidível, ou seja, tornou-se uma certeza, o que significou que uma entrada ilegal se tornou legal, pelo simples facto do decurso do tempo, o que contraria os mais elementares princípios jurídicos.  

          Foi também revogada a norma que instituía as quotas anuais e que, aliás, já estava em desuso.

          Registou-se uma entrada massiva de imigrantes. Sem prejuízo de se aceitar que a maioria era necessária, para satisfazer necessidades económicas, sobretudo no turismo e a na agricultura, há a registar a desregulação, com realce para a proliferação de redes organizadas de imigração ilegal.

         Na prática, o que aconteceu? A maioria dos estrangeiros que vinha trabalhar para Portugal, em vez de pedir o visto de trabalho, optava pelo visto de curta duração, de turismo, menos exigente na atribuição, já que o turismo é incentivado, por constituir uma parcela importante do rendimento do país.

        Uma vez em Portugal, não se respeita a finalidade do visto e inicia-se a busca de uma relação laboral, tantas vezes desigual, pois há quem se aproveite do estado de necessidade.

       Cumpriam-se alguns formalismos, designadamente a obtenção de número de contribuinte (NIF) e também número de identificação na Segurança Social. Bem fáceis, pois não há qualquer controlo por parte das Finanças ou da Segurança Social na atribuição de tais números, mais exatamente estas entidades não cuidam de saber se o cidadão estrangeiro está autorizado a trabalhar nem há qualquer cruzamento de dados com a AIMA.

      No caso de número de contribuinte, basta apresentar passaporte válido e documento onde conste a morada. As Juntas de Freguesia emitem atestados de residência sem que haja qualquer averiguação, a ponto de numa mesma casa chegarem a ser indicadas mais de cem pessoas. Basta duas assinaturas que atestem a residência do requerente, havendo quem esteja no átrio das próprias Juntas a vender a assinatura por poucos euros!

      A obtenção do número de identificação na Segurança Social também é fácil. Ana Mendes Godinho, ex-Ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, alardeou a facilidade, numa entrevista publicada no jornal Tempo Livre, do INATEL:

     «Dou-lhe o exemplo do que fizemos com o projeto Segurança Social na Hora. Surgiu      um repto dos problemas que me estavam a ser sinalizados: estrangeiros que não conseguiam obter um número na Segurança Social não conseguiam contribuir para o sistema. O número da Segurança Social para os estrangeiros estava a demorar cerca de oito meses. Durante oito meses estávamos a permitir que essas pessoas não contribuíssem para o sistema de que todos fazemos parte. Qual a razão para não darmos o número na hora? O que temos de verificar: se a pessoa existe; se existe uma entidade empregadora, se há uma empresa já interessada em empregar. O resto já temos tudo.» (jan-fev. 2020, pág. 12).

        Ana Mendes Godinho considerou muito positiva a medida tomada, de atribuição do número de Segurança Social na hora, concluindo que «faz parte desta prioridade de sermos um país aberto e inclusivo para acolher os estrangeiros». Mas a governante não incluiu, entre as questões a verificar, se o interessado estava autorizado a trabalhar. Quem entrou ilegalmente no país ou tem apenas um visto de turismo está legalmente impedido de trabalhar. Limitou-se a considerar muito positiva a medida tomada, ou seja, a atribuição do número de Segurança Social na Hora, concluindo que «faz parte desta prioridade de sermos um país aberto e inclusivo para acolher os estrangeiros».

         A Lei n.º 53/2023, de 31 de agosto, veio facilitar ainda mais, ao acrescentar na alínea a) do referido artigo 77.º (condições gerais de concessão de autorização de residência), a disjuntiva “ou visto para procura de trabalho”, documento relativamente fácil de obter.

         Pretendeu-se premiar a inserção efetiva no mercado de trabalho sem questionar a forma como o cidadão estrangeiro entrou no nosso país, dando-se, assim, guarida às reivindicações das associações de imigrantes, que se batiam pela legalização. «NÃO SOMOS CRIMINOSOS, QUEREMOS DIREITOS, EXPULSÃO NÃO É SOLUÇÃO!» e «QUE JUSTIÇA, 3, 4, 5, 6 OU MAIS ANOS A TRABALHAR SEM DESCONTOS?», eis alguns dos cartazes empunhados nas manifestações que acabaram por pressionar o legislador.

         Ser país aberto não pode significar ter as portas escancaradas, com manifesto prejuízo para todos. Muitos imigrantes ficaram sujeitos a vil exploração, vivendo em condições desumanas. É também inegável que os portugueses foram também afetados com a degradação das condições do Serviço Nacional de Saúde e do ensino público, incapazes de acolher um tão elevado número de imigrantes.

Subversão das normas comunitárias

         A Comissão Europeia questionou Portugal a propósito da aplicação do n.º 2 do artigo 88.º e das autorizações de residência CPLP, tendo chegado a iniciar, em setembro de 2023, um procedimento de infração contra Portugal, pois a regra comunitária é a de que a entrada no mercado de trabalho seja uma entrada legal, com visto de trabalho.

         Havia notoriamente uma subversão das normas comunitárias rígidas nesta matéria.   A manifestação de interesse adotada em Portugal, correspondendo embora a uma necessidade conjuntural, constituía uma forma indireta de contornar a proibição de entrada ilegal de imigrantes, interdita face às normas comunitárias.  Ora, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, pretender receber os fundos comunitários e não cumprir as obrigações comunitárias.

O fim da manifestação de interesse

Uma lei não é boa ou má por provir de um governo de direita ou um governo de esquerda. É boa ou má se corresponde ou não às necessidades do país e dos portugueses. A manifestação de interesses correspondeu, na altura em que foi instituída, às necessidades.

      Porém, é notório que se chegou a um excesso de imigrantes, percebido pela esmagadora maioria dos portugueses. Aliás, as estatísticas oficiais não refletem a realidade. Quem anda de metro, em Lisboa, dá-se facilmente conta.       Por essa razão, o fim da manifestação de interesses tornou-se uma necessidade. Bem esteve, assim, o Governo da AD em proceder à revogação da autorização de residência com fundamento na manifestação de interesse (Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho). Bem também esteve Pedro Nuno Santos nas afirmações que, corajosamente, proferiu e que, longe de constituírem uma cambalhota, se traduziram num passo em frente.        

EDGAR VALLES