Daniel Bessa de Melo

Advogado do Departamento de Civil da Cerejeira Namora, Marinho Falcão.

Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto.


Do Trespasse de Estabelecimento Comercial é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde de 11 de Julho de 2024.

Consulte a obra neste link.


A recusa do legislador em consignar ao contrato de trespasse um regime legal próprio, salvas certas normas avulsas, atribuiu à doutrina e jurisprudência a tarefa de esboçar este edifício jurídico. Superado um inicial estado de indefinição, formaram-se bases dogmáticas sólidas acerca do trespasse de estabelecimento comercial. Subsistem, contudo, divergências significativas em aspetos individuais do regime jurídico – expetáveis num domínio onde a intervenção legislativa é rarefeita e a atividade jurisprudencial é, na sua essência, mais criativa do que interpretativa.

A especificidade do contrato de trespasse reside no seu objeto: ser um negócio jurídico de transmissão definitiva da propriedade do estabelecimento comercial (ou industrial). Mais que isso, o trespasse assegura o subingresso de um novo sujeito no exercício da atividade empresarial, garantindo a continuidade da exploração dos valores económicos e produtivos do estabelecimento.

A orientação teleológica deste negócio é, de resto, evidente: pretende-se preservar a organização de fatores produtivos diante o risco de dispersão que a sua circulação negocial potenciaria. A ilustrar tal teleologia surge o art. 1112.º, n.º 1, do Código Civil, que permite a cessão desautorizada da posição contratual de arrendatário em caso de trespasse de estabelecimento sito em imóvel arrendado. Caso se aplicassem as regras gerais, a manutenção de um dos ativos mais significativos do estabelecimento – o direito ao arrendamento – submeter-se-ia à eventual rapina do senhorio. Se existe ou não um princípio geral de transmissão dos vínculos contratuais afetos à exploração empresarial é assunto de acesa discussão.

A definição dos restantes aspetos da disciplina do contrato de trespasse, como se referiu, foi deixada sob a chancela da doutrina e da jurisprudência.

O problema do âmbito de entrega é, porventura, a questão que mais tem ocupado a literatura portuguesa, sem ainda se terem alcançado soluções universalmente acreditadas. Se é certo que as partes, ao celebrarem o contrato de trespasse, pretendem a transmissão unitária do estabelecimento, o intérprete-aplicador sempre terá de apurar quais são os concretos elementos empresariais que compõem esse âmbito de entrega; e, se embora existam elementos que se transmitem supletivamente, como os instrumentos de trabalho e a generalidade dos bens móveis, outros tantos exigirão uma concertação expressa de vontades entre o trespassante e o trespassário. A autonomia privada reconhecida às partes permite-lhes ainda excluir do âmbito transmissivo determinados elementos pertencentes ao estabelecimento. No entanto, essa faculdade não pode conduzir à descaracterização funcional do estabelecimento – sob pena de o convencionalmente denominado contrato de trespasse deixar de merecer legalmente tal qualificativo. 

Em matéria de forma, se é certo que o art. 1112.º, n.º 3, do Código Civil, determina a redução a escrito do contrato de trespasse, debate-se se tal norma derroga as acrescidas exigências formais para a transmissão singular de certos bens que componham o estabelecimento. O problema é o de saber se o trespasse, naquele identificado ensejo de evitar a dispersão da organização, observa ou não uma lei de circulação própria. A responder-se afirmativamente, normas como as do art. 878.º do Código Civil seriam afastadas, pelo que o direito de propriedade sobre o imóvel poder-se-ia transmitir para o trespassário sem a necessidade de se exarar escritura pública ou documento particular autenticado.

O núcleo obrigacional do contrato de trespasse recebe, em primeiro plano, a configuração dada pelos contraentes. Nos aspetos que estes não tenham regulado aplicam-se as regras supletivas do tipo contratual elegido para se concretizar a transmissão do estabelecimento. Com efeito, o trespasse não encerra um modelo contratual único. O vocativo trespasse apenas nos dá nota que o objeto da alienação foi um estabelecimento, nada adiantando a que título essa alienação se realizou. Embora o veículo contratual mais comum seja a compra e venda, nada impede que o trespasse se materialize numa doação, numa permuta, numa dação em cumprimento, etc. Incumbe ao intérprete analisar as obrigações principais gizadas pelas partes, reconduzindo-as a um eventual modelo contratual tipificado na lei.

Existem, em todo o caso, especificidades a ter em consideração. A obrigação de entrega do estabelecimento, longe de se resumir numa simples traditio da coisa, envolve um elevado leque de prestações secundárias: a transmissão dos contactos dos clientes e fornecedores, o acesso ao know-how, o auxílio inicial na produção, etc. Igualmente funcional a assegurar a sucessão na posição de empresário é a obrigação de não-concorrência que incide sobre o trespassante. Mesmo que nada se tenha expressamente convencionado, o trespassante deve, durante certo período, abster-se de realizar uma concorrência diferencial, praticando atos suscetíveis de desviar a clientela do estabelecimento trespassado.

Estas são algumas das idiossincrasias que permeiam pelo regime do contrato de trespasse. Outras tantas existem que atribuem a este negócio jurídico, mesmo na ausência de soluções legais expressas, uma feição própria. O interesse no seu estudo decorre não apenas do facto de ser um instrumento económico ainda vulgar na economia portuguesa, cujo tecido empresarial se compõe na sua quase exclusividade de pequenas e médias empresas, mas de colocar o estudioso (e o decisor jurídico) sob o resguardo dos pilares fundacionais do Direito Comercial.