Vitalino Canas
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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- Universo de observação
2024 é considerado ano de todos os perigos para as democracias liberais, em várias zonas do globo, em virtude da realização de eleições em muitas delas. Muitos mostraram apreensão, quando olharam para o mapa e viram pins de alerta sobre os EUA, a India, a União Europeia, a África do Sul, a Coreia do Sul, Taiwan e muitos outros de que falaremos de seguida.
Passado o primeiro semestre, é tempo de realizar um midterm review.
Incluímos Polónia, Argentina e Holanda, não obstante os respetivos atos eleitorais terem sido realizados no último trimestre de 2023. Eles constituíram, de certo modo, a antecâmara que gerou dúvidas e incertezas sobre as tendências que iriam verificar-se em 2024. Por outro lado, contemplamos também as eleições presidenciais iranianas. Apesar da subordinação e filtração dos atos eleitorais pelo poder de base teocrática, é relevante olhar para o sentido popular eleitoralmente manifestado.
As eleições do Reino Unido realizaram-se a 4 de julho de 2024; as segundas voltas das iranianas e das francesas realizaram-se a 5 e 7 de julho de 2024, respetivamente. Por isso não respeitamos escrupulosamente o fim do primeiro semestre de 2024 como o exato limite da observação.
Assim, consideraremos os seguintes quinze casos de escrutínios:
( i ) Polónia, eleições legislativas, 15 de outubro de 2023;
( ii )Argentina, presidenciais, 22 de outubro 2023;
( iii ) Holanda, legislativas, 22 de novembro de 2023;
( iv ) Taiwan, presidenciais e legislativas, 13 de janeiro 2024;
( v ) El Salvador, presidenciais e legislativas, 4 de fevereiro de 2024;
( vi ) Portugal, legislativas, 9 de março de 2024;
( vii ) Coreia do Sul, legislativas, 10 de abril de 2024;
( viii ) União Europeia, Parlamento Europeu, 9 de maio de 2024;
( ix ) Bélgica, legislativas, 9 de maio 2024;
( x ) África do Sul, legislativas, 29 de maio de 2024;
( xi ) India, eleições legislativas, 19 de abril a 1 de junho;
( xii ) México, presidenciais e legislativas, 2 de junho de 2024;
( xiii ) Irão, eleições presidenciais, 1.ª volta, 28 de junho de 2024, 2.ª volta 5 de junho de 2024.
( xiv ) França, legislativas, 1.ª volta, 29-30 de junho de 2024, 2.ª volta 6-7 de julho de 2024;
( xv ) Reino Unido, legislativas, 4 de julho de 2024.
Começaremos por uma breve análise dos resultados em cada um deles, para, de seguida, extrair tendências de caráter geral ou universal.
- Caso a caso
a) Polónia, legislativas de 15 de outubro de 2023
O Partido Lei e Justiça (PiS, direita conservadora), do Primeiro Ministro Mateusz Morawiecki, procurava garantir um terceiro mandato. Ficou em primeiro lugar, com 35,4%, mas o Partido da Plataforma Cívica, que ficou em segundo, com 30,7%, assegurou uma coligação maioritária pós-eleitoral com outros partidos que evitou a investidura parlamentar do terceiro governo de Morawiecki, formando um Governo liderado por Donald Tusk. O centro direita moderado regressou ao poder depois de governos de maioria do PiS (oito anos).
b) Argentina, presidenciais, 22 de outubro 2023 (e legislativas, semanas antes)
Javier Milei foi eleito Presidente em 22 de outubro de 2023, na segunda volta da eleição presidencial, com 56% dos votos. A eleição de Milei, com o apoio massivo da direita clássica naquela segunda volta – sinalizado pelo apoio do anterior presidente Mauricio Macri e da candidata derrotada na primeira volta, Bullrich –, que preferiu a ultradireita ao centro esquerda[1], constitui uma radical alteração do panorama político. Todavia o apoio partidário no Parlamento é muito escasso. Não obstante a possibilidade – e tradição – de os presidentes do hiperpresidencialismo argentino governarem através dos chamados “decretos por razones de necesidad y urgência” (DNU), advinha-se um mandato presidencial tumultuoso e possivelmente em choque com as Câmaras parlamentares. Isso ficou patente nos primeiros seis meses de mandato.
c) Holanda, legislativas, 22 de novembro de 2023
O Party for Freedom (PVV), Partido de ultradireita liderado por Geert Wilders, foi o mais votado. Foi a primeira vez na história que um Partido com semelhante orientação venceu as eleições legislativas. Conseguiu 36 dos 150 lugares da Câmara baixa do Parlamento, longe dos 76 necessários para uma maioria absoluta.
A coligação verde/esquerda/socialista, de Frans Timmermans, ficou em segundo lugar com 25 lugares. O VVD do anterior Primeiro-Ministro Rutte obteve 24. Há vários outros Partidos, incluindo o novo NSC (20 lugares) com mandatos.
Foi anunciada uma coligação de governo do PVV, do VVD, do NSC e de um outro Partido de extrema direita (BBB). Preço da coligação: Wilders não é o Primeiro-Ministro.
d) Taiwan, presidenciais e legislativas, 13 de janeiro 2024
Entre 2016 e 2024, período dos dois mandatos da Presidente Tsai Ing-wen, o seu Partido Democrático (PDP) assegurou maioria absoluta dos lugares no Parlamento.
Nas eleições de 2024, o candidato presidencial do PDP, Lai Ching-te, com cerca de 40%, suplantou os seus rivais, Hou Yu-ih do Kuomintang, com 33.49% e Ko Wen-je do Partido Popular de Taiwan (PPT, centrista, formado apenas em 2019) com 26.46%, tendo sido eleito. Porém, o PDP elegeu apenas 51 deputados, contra 52 do Kuomintang e 8 do Partido Popular de Taiwan. Nenhum Partido tem a maioria dos 113 deputados do Yuan Legislativo; o Partido com mais lugares é o principal partido da oposição, o Kuomintang; para obter a viabilização da agenda legislativa e até para assegurar a estabilidade governativa, o Presidente carece de negociar com um – ou mais – dos Partidos representados no Parlamento além do Partido do Presidente. Entrou no Parlamento um típico Partido charneira. Não é improvável uma situação de bloqueio como o que se verificou entre 2000 e 2008, quando o Presidente Chen Shui-bian (PDP) conviveu com uma maioria da oposição do Kuomintang e de outros partidos no Parlamento. O efeito conjugado do sistema eleitoral e do limiar de 5% continua a evitar a fragmentação das representações partidárias no Parlamento.
e) El Salvador, presidenciais e legislativas, 4 de fevereiro de 2024
Nayib Bukele foi eleito para um mandato de 5 anos em 2019 e, apesar de a Constituição vedar a reeleição, recandidatou-se e foi reeleito em fevereiro de 2024[2], alicerçado numa decisão de setembro de 2021 da secção constitucional do Supremo Tribunal, a mesma que em 2014 tinha decidido que os presidentes eleitos têm de esperar 10 anos antes de poderem candidatar-se de novo[3].
f) Portugal, legislativas, 9 de março de 2024
As eleições legislativas em Portugal acentuaram a tendência para a evolução do sistema partidário de 1976, com dois dos Partidos estruturantes, CDS-PP e PCP, a quase desaparecerem e o crescimento acentuado ou significativo de Partidos recém chegados (Chega, Iniciativa Liberal, Livre). A fragmentação aumentou, sobretudo à custa dos partidos da esquerda parlamentar. No entanto, os dois principais partidos (PSD e PS) mantiveram uma quota de votos e mandatos parlamentares acima dos 60%, pelo que se pode dizer que, apesar de tudo, a configuração estrutural do sistema de partidos mantém a sua matriz essencial, aliás, confirmada logo de seguida nas eleições europeias, onde a percentagem dos deputados europeus eleitos pelo PS e pela Aliança Democrática (AD, formada por PSD e CDS-PP) foi além dos 71%.
Todavia, o índice de governabilidade decresceu significativamente. Muitos observadores consideram que por estratégia própria ou por indisponibilidade dos outros Partidos, a AD não parece, à partida, capaz de garantir um governo estável pelo período dos quatro anos da legislatura.
g) Coreia do Sul, legislativas, 10 de abril de 2024
Nas eleições de 10 de abril de 2024, para a Assembleia Nacional com 300 membros, o Partido Democrático (oposição) obteve 171 lugares; o Partido do Poder do Povo (do Presidente Yoon Suk-yeol), 108. O terceiro Partido mais votado, o novo Partido da Reconstrução da Coreia (Rebuilding Korea Party), centro-esquerda, obteve apenas 12 lugares, mas a sua percentagem eleitoral aproximou-se muito da dos dois tradicionais: 24.25%. Isso pode ser visto como indicador de que o sistema bipartidário está em transição: porém, tendo em conta a história e o sistema eleitoral, pode ser difícil que ocorra. Com estes resultados, conhecendo a polarização do debate entre os dois tradicionais partidos rivais, nenhum analista prevê que a situação venha a ser distinta da que ocorreu nos últimos dois anos. O atual Presidente, Yoon Suk-yeol, enfrentou uma forte oposição da maioria da Assembleia Nacional, eleita em 2020 (21.º legislatura). O equilíbrio através do impasse é um cenário provável.
h) União Europeia, Parlamento Europeu, 9 de maio de 2024
Registaram-se pequenos ganhos do Partido Popular Europeu (direita clássica), ligeira queda dos Socialistas e Democratas e dos Liberais (estes passaram a quarta força, muito por culpa dos resultados dececionantes do Partido de Macron, em França); progressão da ultradireita conservadora (European Conservatives, Meloni e outros) e identitária (Identity and Democracy Party, integrando a AfD, a União Nacional de Le Pen, A Liga, de Salvini e outros). Não é previsível que as linhas fundamentais de política se alterem. PPE, SD e Liberais detêm uma maioria confortável de chefes de governo no Conselho Europeu, assegurando o tradicional acordo político para a designação dos titulares dos top jobs (Presidentes da Comissão, do Conselho Europeu e do Parlamento e Alto Representante para a Política Externa.
i) Bélgica, legislativas, 9 de maio 2024
Na Bélgica, as eleições legislativas levaram 11 partidos ao Parlamento. Com uma maioria (não absoluta) de direita nacionalista, tendencialmente independentista, flamenga, o fortalecimento do Vlaams Belang (mais dois deputados), não é possível vislumbrar que tipo de governo pode sair transcorridos os costumados 2 anos ou mais de negociações.
j) África do Sul, legislativas (seguidas pela eleição presidencial pelo Parlamento), 29 de maio de 2024
Nas eleições de 29 de maio de 2024 para os 400 membros da Assembleia Nacional, o African National Congress (ANC) obteve 159 mandatos (menos 71 do que em 2019), faltando-lhe 42 para atingir a maioria de 201 necessária para assegurar a eleição de Cyril Ramaphosa para o segundo (e final) mandato e um governo de maioria. O ANC, que sempre governou sem procura de consensos, viu a sua tradicional maioria absoluta (em alguns casos, super absoluta) esvair-se, designadamente devido à transferência de votos para o uMkhonto we Sizwe (MKP, populista de esquerda), o novo partido de Jacob Zuma, que saiu do ANC em dezembro de 2023. A Democratic Alliance (DA) manteve a sua habitual posição de segundo maior Partido, com perto de 22% e 87 Deputados.
As eleições mostraram que tendências recentes de outras democracias chegaram ao País: baixa participação eleitoral (58,64%, a mais baixa desde que há eleições democráticas); pulverização partidária, com 21 partidos com representação parlamentar (eram 14 em 2019-2024), facilitada pelo sistema proporcional; nenhum com maioria absoluta; 40 lugares do parlamento distribuídos por 13 partidos, alguns dos quais criados há pouco tempo; surgimento do fenómeno do populismo de direita, com o ActionSA, dirigido pelo ex-mayor de Johannesburg (então eleito pela Aliança Democrática), Herman Mashaba, admirador de Donald Trump, que obteve 6 lugares; necessidade de coligações para eleição do presidente e sustentação de um governo; risco de ingovernabilidade.
Em junho de 2024, o ANC, a DA, o Inkatha Freedom Party, a Aliança Patriótica e o Good, firmaram um acordo histórico, lançando as bases para a eleição de Ramaphosa e um governo de unidade nacional. A coligação, envolve ANC e DA, o que era considerado impossível por muitos dentro dos próprios Partidos. Além do mais, os constitucionalistas e politólogos sul-africanos ficam na expetativa de como funciona um governo de coligação na África do Sul, uma vez que coligações anteriores foram forjadas em momentos históricos precisos e/ou foram sempre conduzidos por um ANC muito dominante.
k) India, legislativas, de 19 de abril a 1 de junho
As eleições para os 543 membros do Lok Sabha, (Casa do Povo, Câmara baixa do Parlamento indiano), realizaram-se em sete fases. O Bharatiya Janata Party (BJP, nacionalista hindu), liderado pelo Primeiro-Ministro Narendra Modi, obteve 240lugares (36.56% dos votos). Como habitualmente, o antigamente hegemónico Indian National Congress ficou em segundo, com 99 lugares (21,19%). Em terceiro, o Samajwadi Party (Socialista, com forte implantação em Uttar Pradesh), com 37 (4,58%,). Em termos percentuais, o BJP perdeu pouco mais de 1% dos votos em relação a 2019, mas isso foi suficiente para perder a maioria absoluta de 303 lugares que até aí detinha. Em 2014, o Bharatiya Janata Party obtivera maioria de 282, com apenas 31, 34% dos votos. Os resultados eleitorais de 2024 e a perda da maioria constituíram surpresa. Quer o BJP, quer os analistas esperavam não apenas a manutenção da maioria como, talvez, o seu reforço, até perto de uma maioria qualificada.
Entre 1989 e 2014, nenhum partido governou solitariamente, sendo necessárias coligações. Desde 2014, sob a liderança de Narendra Modi, esse ciclo foi quebrado pelas maiorias absolutas do BJP. As eleições de 2024 forçaram Modi a algo a que não está habituado: um governo de coligação com partidos regionais, alguns seculares e não afetos ao nacionalismo hindu. Nesse contexto, é expectável que parte do programa uniformizador da India de acordo com os preceitos do nacionalismo hindu – não obstante os 200 milhões de muçulmanos e a grande diversidade étnica e regional -, sofra resistência e obstáculos; mas há quem tema que Modi enverede por uma fuga para a frente mais impositiva da sua visão.
l) México, presidenciais e legislativas, 2 de junho de 2024
Capitalizando largamente o descontentamento com o ciclo anterior e com o sistema partidário tradicional, na eleição presidencial de 2018 saiu vitorioso Andrés Manuel López Obrador, que havia sido derrotado nas duas eleições anteriores (sempre com alegação de viciação eleitoral), o primeiro Presidente do México com uma base programática assumidamente de esquerda (crítica do neoliberalismo).
Os mexicanos, porventura saturados por governos divididos, partidos históricos desgastados e décadas de impasse, polarização e conflito e talvez confiantes na consolidação dos novos quadros competitivos e de checks and balances instituídos a partir do final do século XX, escolheram voltar a um sistema presidencial revitalizado, com presidente forte e capaz de governar sem a necessidade de negociações casuísticas ou coligações pós eleitorais para executar os compromissos assumidos perante os eleitores, sendo também, por isso, o único responsável em caso de insucesso.
Reforçando realinhamentos partidários, iniciados em 2021, aquando das eleições para os 500 lugares da Câmara dos Deputados, nas eleições presidenciais de 2024 o PAN, o PRI e o PRD, formaram a aliança pré-eleitoral Fuerza y Corazón por México para apoiar Xóchitl Gálvez, contra a candidata do Sigamos Haciendo Historia (MORENA e aliados), Claudia Sheinbaum. Isto não impediu que esta triunfasse nas eleições presidenciais de 2 de junho de 2024 (quase 60% dos votos, em torno de 36 milhões), deixando a longa distância Xóchitl Gálvez (PRI, PAN, PRD) e tornando-se a primeira presidente feminina em 200 anos de história.
Na Câmara dos Deputados, em 2024, a aliança Sigamos Haciendo Historia, reforçou a maioria da coligação similar que a antecedeu, com 373 deputados, enquanto a Fuerza y Corazón por México, sucessora de Va por Mexico, conseguiu apenas 102, um mínimo recorde dos resultados somados dos três partidos históricos que a integram. No Senado a desproporção, embora não tão cavada, é também muito favorável ao Sigamos.
m) Irão, presidenciais, 1.ª volta, 28 de junho de 2024; 2.ª volta, 5 de junho de 2024
Após a morte do Presidente Ebrahim Raisi num acidente de aviação no Azerbaijão (19 de maio de 2024), tiveram de ser antecipadas as eleições presidenciais. Para isso, os candidatos foram previamente aprovados pelo Conselho de Guardiãos (Shourā-ye Negahbān, também dito Conselho Constitucional). Este é composto por doze membros: seis proeminentes especialistas em Direito islâmico, nomeados pelo Supremo Líder Ayatollah Ali Khamenei e seis juristas civis propostos pelo Supreme Judicial Council e nomeados pelo Majlis (parlamento). O Conselho dispõe de importantes poderes, designadamente o de apreciação da conformidade com a lei islâmica e da constitucionalidade, bem como de veto, das leis, e o de aprovar ou desqualificar candidatos às eleições.
80 candidatos a candidatos manifestaram a vontade de se apresentar às eleições de 28 de junho de 2024; foram admitidos apenas seis, todos do sexo masculino (como sempre sucedeu até ao momento), cinco classificados como conservadores e um como reformista (ou, segundo alguns, centrista). Com a desistência de dois conservadores, apenas quatro candidatos se submeteram ao voto. Na primeira volta, nenhum obteve 50%, mais um, dos votos, pelo que o reformista de origem azeri-curda Masoud Pezeshkian (42,5%) e o conservador Saeed Jalili (38.6%) foram de novo a votos em 5 de julho.
Nesta segunda volta, com uma participação eleitoral de 49.8% dos 61 milhões de eleitores registados, significativamente acima dos menos de 40% da primeira volta (a mais baixa de sempre em eleições presidenciais), Masoud Pezeshkian foi o mais votado com cerca de 16, 3 milhões de votos (53,7%), contra os cerca de 13,5 do seu opositor.
n) França, legislativas, 1.ª volta, 29-30 de junho de 2024; 2.ª volta, 6-7 de julho de 2024
As eleições para os 577 lugares da Assembleia Nacional foram realizadas na sequência da dissolução decretada pelo Presidente Emmanuel Macron, após pesada derrota da sua coligação nas eleições europeias de 9 de junho de 2024. Na primeira volta, a coligação presidencial, Ensemble, não conseguiu reverter totalmente as suas perdas, obtendo 21% dos votos (ainda assim, acima dos 14,6 % das eleições europeias). A Nouveau Front Populaire (NFP), formada pelo Partido Socialista, verdes, comunistas e pela France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, obteve 28,1 % (melhor que a coligação NUPES, formada antes das eleições de 2022, onde tinha obtido 25,7 %). O partido de centro direita clássica, Les Républicains, manteve cerca de 10%, o mesmo que nas últimas, não obstante a clivagem provocada pela aliança de Éric Ciotti com a extrema direita do Rassemblement National (União Nacional, RN), de Marine Le Pen e Jordan Bardella. Esta última obteve uma vitória histórica, com 34%.
Na segunda volta, em 7 de julho, apesar das grandes discrepâncias, as desistências mútuas, sobretudo entre a NFP e o Ensemble, funcionaram acima das expetativas, levando a que os resultados da RN fossem surpreendentemente abaixo de todas as projeções. A RN, com 143 deputados, ficou atrás do Ensemble, com 168 e da vencedora da noite, a NFP, com 182. Os Republicains, do centro direita, ficaram distantes, com 45. As eleições de 2024 consumaram uma revolução copérnica completa. O sistema eleitoral, concebido para gerar maiorias (que a partir do século passado se percebeu que poderiam não ser do partido presidencial), perdeu essa aura. Em 2022, gerou uma maioria simples do bloco presidencial. A circunstância de, ainda assim, este ser o maior bloco e de ser inconcebível uma coligação entre o RN e os outros Partidos que viabilizassem um Governo alternativo ao do Primeiro-Ministro do bloco presidencial, permitiu que este governasse entre 2022 e 2024. Em 2024, o sistema eleitoral não gerou sequer um bloco claramente candidato à formação de Governo, ainda que minoritário. Com as eleições de 7 de julho gerou-se um cenário dramaticamente inédito: (i) o Partido presidencial não tem maioria absoluta; (ii) o Partido presidencial não é, à partida, o maior bloco, mas mantém uma posição de charneira; (iii) há três blocos quase iguais, em peso, no Parlamento (NFP, Ensemble, RN); (iv) o centro direita tradicional, representado pelos Républicains, perde influência, sendo substituído, no espaço político da direita, pela direita radical; (v) os blocos não são todos monolíticos, designadamente a NFP, com quatro Partidos que podem enveredar por um caminho autónomo, quanto à formação de Governo; (vi) há um panorama de fragmentação partidária nunca visto na V República. Finalmente, nada despiciendo (vii) o Presidente vê a sua posição alterar-se substancialmente, sendo remetido à posição de Presidente semipresidencial, sem possibilidade de governar por intermédio do Primeiro-Ministro; mas um presidente semipresidencial com forte posição arbitral, decorrente não apenas dos robustos poderes constitucionais, mas também de ser o líder de um Partido charneira que detém uma das chaves das soluções de governo.
o) Reino Unido, legislativas, 4 de julho de 2024
Nas eleições de 4 de julho de 2024 o Labour obteve 412 lugares (33.7% dos votos), os Conservadores 121 (23,7%), os Liberais Democratas 72 (12,2%). O novo Reform UK obteve apenas 5 lugares, apesar dos 14,3% dos votos. Os restantes lugares ficaram repartidos pelo Scottish National Party, Sinn Fein, Democratic Unionist Party, Plaid Cymru, Verdes, vários independentes e outros pequenos partidos.
O sistema eleitoral para a eleição dos 650 deputados da Câmara dos Comuns (maioritário) não permite refletir tão nitidamente quanto o sistema proporcional as tendências mais microscópicas. Todavia, as que se detetam noutros Estados – fragmentação partidária, crescimento de partidos populistas de ultradireita, desalinhamento em relação a partidos tradicionais – não deixam de se fazer sentir, embora amortecidas e camufladas pelo sistema eleitoral.
Apesar de só 13 partidos ou alianças tenham obtido mandatos (mais 6 independentes), houve candidaturas de mais de três dezenas. Tirando as percentagens obtidas pelos dois maiores partidos, Trabalhistas e Conservadores (no conjunto, menos de 58%), os demais partidos representados obtiveram percentagem dos votos totais acima dos 40%. A fragmentação partidária é amortecida pelo sistema eleitoral, mas na realidade do voto ela existe e acentuou-se. E embora só tenha obtido cinco mandatos (incluindo o de Nigel Farage que, depois de oito candidaturas obteve, finalmente, um lugar na Câmara dos Comuns), o Reform Uk foi o terceiro partido mais votado, com uma percentagem acima de 14%, maior do que a dos Liberais Democratas, que se ficaram pelos 12%, embora tenham conseguido 71 lugares.
- Tendências
a) Volatilidade do poder
Sinal de inquietude ou de insatisfação dos eleitorados, independentemente da corrente política que governa, a tendência maioritária é para quem detém o poder executivo o perder ou ficar em posição mais débil. Em oito casos, quem estava no poder foi derrotado: Polónia, Argentina, Holanda, Portugal, Bélgica, Reino Unido, França, Irão (sob reserva). Em Taiwan, África do Sul e Índia, os partidos do poder perderam maiorias no parlamento. Na Coreia do Sul, a posição debilitada do executivo acentuou-se, devido à maioria parlamentar do principal partido da oposição.
b) A surpresa ao virar da esquina
As eleições na Argentina, na India, na França, na África do Sul, no Irão mostram que o exercício democrático continua a ter uma ampla capacidade de surpreender, mesmo quando tudo parece decidido ou imutável, ou até a caminhar para o abismo.
c) Resistência aos populismos de ultradireita
As mais radicais previsões sobre a ascensão dos populismos da ultradireita não se confirmaram. As eleições observadas ficaram longe de mudar radicalmente o mapa político das democracias.
As vitórias de Wilders e Milei, os ecos da pujança de Trump, faziam temer que a onda chegasse à União Europeia e permitisse aos eurocéticos tomar conta das instituições. Todavia, logo a Polónia dava indicação que a tendência não era de sentido único.
É verdade que se registaram episódios de importante subida da extrema direita populista, que além da Holanda e da Argentina, conseguiu o primeiro lugar nas europeias e na primeira volta das legislativas em França e uma significativa progressão na Alemanha, na Bélgica (Vlaams Belang), em Portugal (Chega) e Reino Unido (Farage). Até na África do Sul, um Partido de extrema direita, a Patriotic Aliance conseguiu representação parlamentar (9 deputados).
Mas na União Europeia a extrema direita não se reforçou tanto como se chegou a prever. O crescimento verificado não coloca em causa a estabilidade das políticas. E mesmo na Holanda, lugar do primeiro abalo, Wilders foi obrigado a abrir mão do cargo de Primeiro Ministro. Em França, a maioria absoluta anunciada pelos líderes do RN foi afinal substituída por uma vitória da NFP e por uma derrota do bloco presidencial muito menos expressiva do que o vaticinado.
Aparentemente no mesmo sentido, de certa forma inesperadamente, o Primeiro-Ministro indiano Modi viu a sua via semi-autoritária sofrer um revés, com a perda da maioria e a necessidade de promover uma coligação de governo.
As alegadas tentações independentistas em Taiwan viram-se enfraquecidas.
d) Fragmentação
Inequívoco e de sentido único é o incremento da fragmentação: Holanda e Bélgica (aliás, como é tradicional), África do Sul, Argentina, França, Portugal, India, União Europeia. Mesmo países essencialmente fiéis ao bipartidarismo, como Taiwan e Coreia Sul assistem ao surgimento de terceiras forças. No Reino Unido, só o sistema eleitoral mascara a fragmentação real, ao nível das escolhas do voto.
e) Diminuição das condições de governabilidade
A conjugação de vários fatores – entre os quais a referida fragmentação – repercutiu-se na diminuição da governabilidade:
- Na Argentina, o Partido presidencial é muito minoritário na Parlamento;
- Na Holanda, a coligação promovida pelo Partido de Wilders suscita interrogações quanto à sua coesão e estabilidade;
- Na India, voltou-se à necessidade de coligações de governo;
- Na África do Sul, pela primeira vez o ANC perdeu a maioria, sendo forçado à constituição de um governo de unidade nacional;
- Em Taiwan, o Partido do Presidente, Partido Democrático, perdeu a maioria;
- Na Coreia do Sul, o Partido Conservador, do presidente, que era minoritário, ainda mais ficou;
- Em Portugal, um governo de maioria absoluta foi substituído por um governo de maioria relativa com possibilidades de sustentação débeis;
- Na Bélgica, as eleições levaram 11 partidos ao parlamento; com uma maioria (não absoluta) de direita nacionalista flamenga, anuncia-se um horizonte de difícil formação do governo.
De sinal contrário, a sólida maioria dos Trabalhistas no Reino Unido, a consolidação do poder do MORENA, no México (depois de quase duas décadas de governos divididos), e do poder do Presidente no El Salvador (de forma inconstitucional, é certo) e o regresso da direita clássica ao poder na Polónia.
Conclusão
Amontoam-se os sinais contraditórios. Todavia,
a democracia eleitoral funciona e parece ter armas para resistir, mesmo quando
parece que a democracia representativa está à beira do abismo ou pronta a ser
levada pela voragem daqueles que não a apreciam.
[1] Javier Milei, obtivera o primeiro lugar nas primárias obrigatórias (PASO) de 13 de agosto de 2023 com quase 32%, percentagem superior aos das alianças governista (liderada pelos justicialistas) e da oposição. Na primeira volta de eleição, em 22 de outubro de 2023, Massa (peronista), que tinha ficado em terceiro nas PASO, passou em primeiro, com 36,7% (9 645 983 votos); Milei obteve 30% (7 884 336) e Bullrich, de direita, ficou em terceiro lugar, com cerca de 24%.
[2] Em 2019 e 2024, Bukele preencheu o vazio deixado pelos Partidos tadicionais, ARENA e FMLN (Frente de Libertação Farabundo Marti). Em 2024, os candidatos presidenciais destes partidos mantiveram-se abaixo dos 10%.
[3] A mudança tem uma explicação simples. Até 2020, Bukele não tinha maioria no Parlamento, enfrentando resistência, por exemplo, às medidas legislativas e à atribuição de poderes de emergência para fazer face aos gravíssimos problemas de segurança. Nesse ano, aliás, o Presidente entrou no Parlamento com soldados para exercer pressão sobre a oposição. Quando o seu Partido obteve a maioria, em 2021, uma das medidas que o Congresso com nova composição aprovou foi a depuração do Tribunal Constitucional, com a substituição de juízes por outros leais ao Presidente. A nova composição do Tribunal encontrou argumentos para legitimar a candidatura a um segundo mandato de cinco anos.