João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


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  1. Menoridade e trabalho: um mero problema de capacidade negocial?

Como é sabido, no contrato de trabalho a pessoa do trabalhador constitui, a um tempo, sujeito e objeto do contrato: enquanto sujeito, aquela pessoa é encarada como vontade jurisgénica, enquanto objeto, ela é vista como corpo performativo. Como há muito escreveu Georges Ripert, “o trabalho é o próprio homem no seu corpo e no seu espírito”. O caráter eminentemente pessoal da relação de trabalho é ponto indiscutível, quem presta atividade laboral a outrem aliena energia muscular e energia mental (o corpo laborioso, essa “mercadoria fictícia”), quem presta trabalho aliena, também, uma porção do seu tempo de vida. Ou seja, no contrato de trabalho, a questão da menoridade coloca-se, não tanto no que toca à sua celebração – à eventual imaturidade e inexperiência do menor para avaliar da conveniência de concluir tal contrato –, mas sobretudo no que toca à sua execução, isto é, ao facto de a execução deste contrato duradouro poder comprometer o normal desenvolvimento físico e psíquico do menor, a sua educação ou a sua formação. 

  1. Como combater o trabalho infantil?

Com base na experiência portuguesa – uma experiência de relativo sucesso –, cremos que a resposta passa aqui, sobretudo, por duas palavras: pobreza e escola. Para combater o trabalho infantil, há que erradicar a pobreza extrema (verdadeira condição sine qua non para tal efeito). Depois, importa alargar a escolaridade obrigatória e garantir o efetivo cumprimento dessa escolaridade, impedindo o abandono escolar precoce.

A questão cultural é, cremos, um obstáculo que se vence com o tempo. Em palavras cruas: a tradição conservadora de alguns pais (“eu trabalhei desde criança e não me fez mal nenhum!”) vai morrendo juntamente com esses pais, ou, antes ainda, quando estes se convertem em avós. Em idade escolar, o lema, para os menores, tem de ser este: “O nosso trabalho é estudar!”. E o menor não tem o dom da ubiquidade: se estiver na escola e enquanto estiver na escola, ele não estará a trabalhar senão no plano escolar.

  1. As indicações da Ordem Jurídica

Aqui chegados, convém sublinhar que, segundo dispõe o artigo 69.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, «é proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar». Na mesma linha, lê-se no n.º 1 do artigo 32.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: «É proibido o trabalho infantil. A idade mínima de admissão ao trabalho não pode ser inferior à idade em que cessa a escolaridade obrigatória, sem prejuízo de disposições mais favoráveis aos jovens e salvo derrogações bem delimitadas». E também a Convenção n.º 138 da Organização Internacional do Trabalho, sobre a idade mínima de admissão ao emprego (adotada pela OIT em 1973 e ratificada por Portugal em 1998), consagra a regra segundo a qual a idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho não deverá ser inferior à idade em que termina a escolaridade obrigatória, nem, em qualquer caso, a 15 anos (artigo 2.º, n.º 3)[1].

  1. O Código do Trabalho

A nossa lei admite, sem rebuço, o trabalho de menores. Com efeito, nos termos do artigo 68.º, n.º 1, do Código do Trabalho, «só pode ser admitido a prestar trabalho o menor que tenha completado a idade mínima de admissão, tenha concluído a escolaridade obrigatória ou esteja matriculado e a frequentar o nível secundário de educação e disponha de capacidades físicas e psíquicas adequadas ao posto de trabalho». E o n.º 2 acrescenta: «A idade mínima de admissão para prestar trabalho é, em regra, de 16 anos». O preceito é complementado pelo n.º 1 do artigo 70.º, segundo o qual «é válido o contrato de trabalho celebrado por menor que tenha completado 16 anos de idade e tenha concluído a escolaridade obrigatória ou esteja matriculado e a frequentar o nível secundário de educação, salvo oposição escrita dos seus representantes legais»[2].

  1. A escolaridade obrigatória em Portugal

Sucede que, nos termos da Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, consideram-se hoje em idade escolar as crianças e jovens com idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos. A escolaridade obrigatória implica, para o encarregado de educação, o dever de proceder à matrícula do seu educando em escolas da rede pública, da rede particular e cooperativa ou em instituições de educação e/ou formação, reconhecidas pelas entidades competentes, determinando para o aluno o dever de frequência. E a escolaridade obrigatória só cessa com a obtenção do diploma de curso conferente de nível secundário da educação, ou, independentemente da obtenção do diploma de qualquer ciclo ou nível de ensino, no momento do ano escolar em que o aluno perfaça 18 anos.

Vale dizer, a escolaridade obrigatória tem vindo gradualmente a ver a sua duração aumentada entre nós: passou a ser de seis anos, a partir de 1964, nos termos do Decreto de 9 de julho de 1964; passou depois a ser de nove anos, a partir de 1986, nos termos da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro; e a escolaridade obrigatória veio a ser alargada para doze anos (dos 6 aos 18), pela Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto.

Apesar disto, em Portugal, em regra a fasquia etária para trabalhar está colocada nos 16 anos. A lei admite, portanto, o trabalho de menores (distinguindo-o do trabalho infantil), contanto que os pais do menor a tal não se oponham. Isto, note-se, ao invés do que já hoje acontece em sede de emprego público, sendo a nossa Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas inequívoca ao exigir os 18 anos de idade completos como requisito para a constituição do vínculo de emprego público (artigo 17.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho).

  1. Uma situação a rever?

O argumento tradicionalmente mobilizado, para legitimar o trabalho de menores, é conhecido e é compreensível: o trabalho pode ser uma necessidade para alguns menores e uma alternativa à pobreza. O trabalho representa uma fonte de rendimento, para o menor e para a sua família, pelo que talvez deva ser admitido, desde que rodeado de um conjunto de medidas protetivas no que toca às condições em que esse trabalho é prestado[3].

Esta tese era válida, cremos, em tempos em que a escolaridade obrigatória terminava numa idade em que o jovem era ainda menor, com 15 ou 16 anos de idade. Mas hoje isso não acontece. E a pergunta que se coloca é, então, a seguinte: ao ter sido alargada a escolaridade obrigatória, de 9 para 12 anos, terminando esta por volta dos 18 anos de idade do jovem, não deveremos caminhar para a proibição geral do trabalho de menores? Se o legislador considera que o tempo de escola só termina aos 18 anos, se até aí o jovem está a cumprir a sua escolaridade obrigatória, não deverá o legislador do trabalho extrair as necessárias conclusões desse dado, elevando a fasquia etária para trabalhar para esses mesmos 18 anos – e, com isso, passando a proibir, em regra, o trabalho assalariado prestado por menores?

  1. Casos especiais

O que vem de ser dito não prejudica, claro, a existência de exceções para casos especiais, como poderá suceder para os contratos de trabalho com jovens estudantes, em período de férias ou interrupção letiva, a partir de uma determinada idade mínima (por exemplo, 16 anos), na linha do que se encontra previsto no artigo 89.º-A do Código do Trabalho.

Outro grupo de exceções poderá consistir nos casos de participação de menor em espetáculo ou outra atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, regulada em legislação específica, conforme prescreve o artigo 81.º do Código do Trabalho[4].

Um outro caso especial poderá ainda ser representado pela atividade desportiva profissional, sendo aí admissível, atenta a especificidade da mesma, que se mantenha a regra hoje prevista na lei que regula o contrato de trabalho desportivo (Lei n.º 54/2017, de 14 de julho), a qual admite que um menor, a partir dos 16 anos de idade, celebre contrato de trabalho desportivo, o qual, para ser válido, deve ser igualmente subscrito pelos seus representantes legais.

  1. Conclusão

Crê-se, pelo exposto, que, logicamente, é tempo de a nossa lei ser revista (ou, como agora se diz, revisitada), no sentido de passar a consagrar a regra segundo a qual o trabalho assalariado virá depois – e só depois – de ter sido efetuado o percurso e de ter sido respeitado o tempo escolar do jovem, não durante esse período de escolaridade obrigatória. O tempo de escola não deve, em regra, ser tempo de (outro) trabalho para os jovens. O trabalho será algo que virá depois, mais tarde, numa outra fase da vida, quando tanto a escolaridade obrigatória como a menoridade tiverem terminado. Só assim, de resto, se dará cumprimento ao disposto no artigo 69.º, n.º 3, da CRP, segundo a qual, repete-se, é proibido o trabalho de menores em idade escolar. Ao consagrar esta regra proibitiva, «nos termos da lei», a CRP autoriza, decerto, que o legislador ordinário module esta proibição, admitindo que seja prestado trabalho em certos períodos temporais (em período de férias ou de interrupção letiva, por exemplo) ou em certas atividades específicas (atividades de natureza cultural, artística e publicitária, bem como atividades desportivas, por exemplo). Mas, cremos, a regra proibitiva, enquanto regra, deve valer, se quisermos levar a sério este preceito da nossa Lei Fundamental.


[1] Note-se que em Portugal, na viragem do século, o ensino obrigatório tinha a duração de nove anos e a obrigatoriedade de frequência do ensino básico terminava aos 15 anos.

[2] Esse limite etário pode, inclusive, ser inferior, no que toca aos chamados “trabalhos leves”, caso em que a validade do contrato depende de autorização escrita dos representantes legais do menor (artigos 68.º, n.º 3, e 70.º, n.º 2, do Código do Trabalho).

[3] A CRP incumbe o Estado de assegurar a especial proteção do trabalho dos menores, no seu artigo 59.º, n.º 2, al. c), dedicando o atual Código do Trabalho um vasto conjunto de disposições a essa matéria, na subsecção relativa ao trabalho de menores (artigos 66.º a 83.º).

[4] Nos termos da Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, o menor pode participar em espetáculo ou outra atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, designadamente como ator, cantor, dançarino, figurante, músico, modelo ou manequim. Isto, sempre, com necessidade de autorização dos representantes legais do menor, mas também, por vezes, da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Como é sabido, as CPCJ são instituições oficiais não judiciárias que visam promover os direitos da criança e do jovem e prevenir ou pôr termo a situações suscetíveis de afetar a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral.