Nuno Coelho

Juiz Conselheiro, no Tribunal de Contas.
Juiz de carreira, exerceu anteriormente funções como Juiz de Direito e como Juiz Desembargador.


Organização do Sistema Judicial e Jurisdição – Para uma Sistemática Alargada da Realização do Direito pelo Juiz é a mais recente obra do Autor, publicada pelo Grupo Almedina, e disponibilizada no mercado a partir de 9 de Maio de 2024.

Consulte a obra neste link.


Enunciado temático

O tema apresentado convoca uma analogia com a condição humana, tal como ela é tratada por Hanna Arendt[1], lembrando a complementaridade que pode ser estabelecida entre a natureza humana e a sua condição.

É que também a justiça, incluindo aqui os juízes que a administram, não escapa às condições organizativas que acompanham essa realidade humana e social. Trata-se, aliás, de uma evidência, mas que o afã teórico, formal e autorreferencial do jurídico parece esquecer muitas vezes.

A justiça e os juízes fazem parte integrante da vida humana e social e estão, eles próprios, radicalmente sujeitos à prossecução das finalidades e às contingências próprias dessa mesma vivência.

Na verdade, trata-se de uma premissa fácil de articular, mas difícil de compreender em todo o seu alcance quando se procura elucidar das implicações que têm para a concretização do direito, e sobretudo, para o direito dito pelos juízes, a forma e o modo como o sistema judicial está organizado e se estrutura com o seu ambiente envolvente.

Isto é, as dificuldades de perceção avolumam-se quando se pretende perceber como a justiça e os juízes dependem da organização da atividade e do espaço judiciários, da estruturação das instituições e dos atores envolvidos, da tecnologia e dos meios de gestão dos procedimentos e do seu trabalho, na conjugação com as inerentes e as múltiplas atividades e tarefas judiciárias, desde o plano mais global ao mais restrito, para o desempenho da sua atividade e do fulcro da sua função. Englobando nesse universo, como está bom de ver, o ato de julgar e fazer justiça, isto é, de dizer e realizar o direito mediante o exercício das capacidades e das funções profissionais que são apodíticas do juiz.

Este tema foi também o mote para um projeto de investigação académica e para um livro, agora publicado pela Almedina, com o título Organização do Sistema Judicial e Jurisdição[2], que procuraram desbravar, de uma forma mais alargada, o tema da organização do sistema judicial no seu relacionamento com a jurisdição, segundo um prisma decisório e uma preocupação analítica de cariz sistemático.

A abordagem foi circunscrita ao universo da atividade judicial, mais especificamente à jurisdição respeitante aos juízes e aos tribunais do Estado, nunca olvidando, no entanto, que aquela mesma atividade se insere num processo de produção do direito que se encontra muito dependente da dinâmica das outras fontes de direito, maxime da produção normativa legal, e que ao lado dos tribunais do Estado também existem órgãos de cariz jurisdicional, nomeadamente os tribunais arbitrais, que necessariamente também se organizam e estruturam para desempenhar essa atividade. Não se desconsiderou o pluralismo das fontes e das manifestações do direito e até o sistema multi-portas de resolução de litígios[3], os quais, aliás, vieram merecer referências essenciais no livro em causa, a propósito da atualidade do direito e das suas conexões sistémicas com o ambiente envolvente ou, até, na vertente distintiva da dualidade hard law /soft law.

Mas, a certeza dessa riqueza plural das manifestações do direito, quanto a nós, não faz retirar a pertinência do apuramento do relacionamento entre a jurisdição e a organização do sistema judicial, no território mais clássico das fontes do direito e da administração da justiça do Estado, até porque muitas das propostas e conclusões de análise podem servir um campo interpretativo de maior escala.

A perspetiva metodológica de base convocou uma pluralidade de saberes disciplinares em torno do tema, também por via do que se pretende evidenciar, que não é mais do que o papel que assume a organização e o modus operandi do sistema judicial para a realização do direito.

Evidenciando de uma forma mais alargada a riqueza multidimensional dos tribunais e da realização do direito pelos juízes, isto é, na jurisdição enquanto:

. (1) resolução de controvérsias,

. (2) prática judicativa, ou

. (3) organização ou estrutura.

Uma distinção que podemos encontrar nas lições de Castanheira Neves e Aroso Linhares[4] e que se assumiu como problematização inicial, nos moldes indicados.

Essa definição de jurisdição veio, depois, a ser aprofundada e densificada nos seus diversos níveis de apreciação, também no que respeita à capacidade desse mesmo sistema de realização do direito, a cargo dos juízes, de se abrir ou fechar aos componentes externos à disciplina normativa do direito, de se legitimar e fortalecer no seu próprio contexto de realização (enquanto espaço organizativo, institucional ou tecnológico), mas, também, na virtualidade de reponderação  dessa mesma atividade judicativa (apta a justificar a decisão jurisdicional) de acordo com a moldura[5]  que é delineada pelas exigências metodológicas,  principiológicas e, do mesmo modo, institucionais, que marcam a identidade do direito[6].

 História e razões da proposta

Como se referiu, o livro agora publicado, nasce de uma pesquisa académica do autor em torno das condicionantes organizativas da jurisdição. Uma investigação que se estendeu do mestrado ao doutoramento, mas que passou, do mesmo modo, pela própria pragmática da governação dos tribunais, num período agora contabilizado de mais de vinte anos de duração.

Esse processo investigatório, pela sua própria cambiante, estendeu-se por temas e tópicos que ultrapassaram os limites do objeto e do texto que serviram de base daquela primeira tese. Novas perspetivas e abordagens se abriram num contexto propício ao programa académico, no cruzamento com a própria evolução da vida pessoal e profissional. O momento presente pode ser considerado como um desembocar de alterações significativas de grande conteúdo que, não obstante se desenharem nos cenários de há duas décadas atrás, não poderiam ser equacionadas em todas as suas consequências. Mas a verdade é que o contexto atual, quanto a nós, veio reforçar, mais ainda, a pertinência da tese de base que constitui a génese da investigação base do livro.

No campo profissional a temática convergente da organização judiciária e da administração judiciária resultou numa dedicação duradoura, tanto individual como coletiva, refletida em inúmeros seminários, conferências, cursos e projetos, e também em manuais,  guias e relatórios[7] que antecipam e confirmam a pertinência destes temas e abordagens.

Este contexto biográfico explica a lógica circular e a textura sedimentar do trabalho, as quais atravessam a linha de investigação e os seus núcleos tópicos de aprofundamento. Por seu turno, a abordagem hermenêutica pode explicar o porquê destas aproximações sucessivas às diversas distinções que se assumem como pressuposto do conhecimento do tema central em reflexão. Essa circularidade assume-se como inevitável, não só por via da dinâmica entre os diversos contextos, mas também por causa da abordagem multinível e interdisciplinar inerente à natureza complexa do sistema organizativo (ou estrutura da jurisdição) em presença. Seria impossível, a nosso ver, prosseguir uma organização linear e esquemática para o conteúdo abrangido, tal como poderia apontar uma leitura crítica mais apressada ou menos atenta.

O momento de definição conceptual inicial é depois sucedido pelo desenvolvimento descritivo e explicativo das diversas abordagens em questão, devidamente contextualizadas, passando por momentos de nova contraposição e culminando numa síntese mais consistente, a qual nunca poderia ser obtida sem o caminho de circularidade antecedente.

Vários acontecimentos se sucederam, mudanças mais ou menos pronunciadas e uma aceleração do tempo que não para em nos surpreender. A tudo isto se veio juntar a conjuntura atual (pandémica, bélica e tecnológica) que avolumou a necessidade de refletir o tema eleito à luz de um novíssimo ambiente social, económico e tecnológico que ainda se encontra muito em aberto. Na verdade, a realidade veio-nos mostrar, de uma forma assaz dramática, que ela se encontra em contínua e imprevisível mutação. A complexidade deste tema e da envolvente contextual encontra-se bem evidenciada na experiência de duas décadas deste século na investigação sobre o próprio genoma humano, descrita no capítulo introdutório do livro.

Por outro lado, a produção académica e institucional é avassaladora nos domínios aqui tratados, obrigando a um esforço permanente de atualização e referenciação. Um esforço interdisciplinar, que pretendeu ser  elucidativo nas escolhas bibliográficas e documentais, tendo em conta os vários núcleos temáticos percorridos e os tópicos levantados.

A temática apresentada passou pela valorização, numa escala ampla, da organização e do modus operandi do sistema judicial para a realização do direito e, por via da investigação interdisciplinar, contribuir para a obtenção de um sentido mais enriquecido da noção de jurisdição.

Para essa finalidade suscitou-se, desde logo, uma questão, que é a de saber quais os fatores que influenciam e condicionam a tomada de decisão jurisdicional, não surpreendendo que muitos ou que alguns desses fatores a ver com a organização ou a estruturação dos tribunais, sobretudo quando nos aproximamos dos ambientes de litigância massificada e complexa que caracterizam a atual realidade judiciária, ou, até, quando nos deparamos com o crescimento exponencial da digitalização, do trabalho remoto, da automação e da inteligência artificial no domínio dos tribunais.

Bem como nos pareceu igualmente importante discernir qual o grau de influência que esses fatores organizativos podem ter na aplicação jurisdicional do direito, e, mais ainda, saber se o peso da estruturação e da organização dos tribunais se encontra em ascensão ou em regressão no que respeita ao exercício da função jurisdicional de aplicação do direito.

A partir desse núcleo de questões, procurou-se delinear um quadro inicial das múltiplas e distintas abordagens sobre a atividade e o desempenho do sistema judicial, analisando-as ao nível das condições práticas de realização jurisdicional do direito. Suscitando, nesse objeto, uma hipótese de harmonização entre o ponto de vista “interno”, aquele que resulta normalmente do “participante” comprometido com o funcionamento das regras e instituições jurídicas, e o ponto de vista “externo”, fornecido por quem analisa o fenómeno jurídico sem o comprometimento e as compreensões próprias do jurista.  

Neste ponto não se descura que uma sistemática mais alargada e uma perspetiva institucional também enriquecida se enquadraram como as mais adequadas a proceder a esta tentativa de harmonização ou conciliação entre a pluralidade de abordagens em presença e também a assimilar devidamente o universo pluridimensional da justiça atrás referido.

Metodologia e universo teórico de base

O que nos conduziu à metodologia empregue, onde a preocupação mais central foi a de respeitar cada campo disciplinar convocado, aqui em diálogo, fazendo menção ao pensamento mais representativo de cada disciplina em causa e procurando desembocar em sínteses (teóricas e práticas) mais integrativas.

Levantou-se, aqui, a hipótese de encontrar um discurso conciliador dessas visões multiformes e multidisciplinares (ou, ainda, interdisciplinares) que se têm debruçado mais amiúde sobre o sistema judicial (como são o caso da filosofia e da teoria do direito, do direito processual, do direito constitucional, do direito administrativo, da teoria política e constitucional, da sociologia do direito, da análise económica e da ciência política e administrativa), projetando, dessa forma, num quadro que nos parece à partida mais unitário, conciliador e consistente, as dimensões da organização e da gestão do sistema judicial, da realização jurisdicional do direito e do ambiente cultural, social e económico em que se situa esse mesmo sistema e das exigências que lhe são próprias.

Se é certo que os assuntos ligados com o judiciário foram estudados tradicionalmente de dentro do mundo dos juristas e, dessa forma, de um ponto de vista eminentemente legalístico ou normativo, também não é menos verdade que entrámos definitivamente num período em que as várias correntes de análise da justiça se fundam numa base multidisciplinar, em que a abordagem do judiciário se realiza em múltiplas dimensões. O centro de atenção dessas análises é direcionado não apenas nas configurações normativas da justiça, mas também na atividade efetiva da mesma, enquanto questão problemática, designadamente nos seus aspetos operacionais e nas suas considerações políticas, económicas e sociais.

Tal desiderato envolveu, do mesmo modo, a análise e a abordagem, com desenvolvimento, das conceções atuais em torno da atividade e do desempenho dos tribunais e ainda sobre o tema da reforma da justiça, com vista a apurar devidamente qual o enquadramento e o acerto das conclusões a retirar, desse modo, sobre as outras questões centrais colocadas à elucidação.

Dando conta do estado atual da experiência comparada e das variadas abordagens de que tem sido objeto a organização dos tribunais nestes últimos tempos. Atribuindo-se o devido crédito, por via da expressão da racionalidade científica, analítica e institucional possíveis, à centralidade que vêm assumindo os tribunais no debate político, social e económico.

Foi nossa intenção permitir decifrar, dentro da natural proliferação dos discursos aqui envolvidos, uma possível unidade ou identidade nessas leituras sobre os problemas da jurisdição enquanto estrutura ou organização. Quisemos elucidar, a este propósito, a dimensão organizacional da jurisdição e permitir um debate teórico apto a definir uma arquitetura teórica e quanto possível interdisciplinar dessa mesma realidade jurídica e judiciária.

Mas neste trabalho de investigação o alvo da nossa análise não foi especificamente o sistema do direito, tanto enquanto direito (interno) ou do saber sobre o direito (externo). A atenção dirigiu-se, antes, para o nexo estrutural (estrutura do direito) que liga ambas essas perspetivas, onde se surpreende também um sistema “aplicativo” (concretizador) do direito que depende também, reciprocamente, dessa estrutura de produção jurídica ou de atividade de aplicação/realização do direito. Esta distinção é mais ou menos ténue a partir do momento em que se percebe que o direito tal como ele é, enquanto fenómeno, se encontra mais ou menos intimamente conexionado com esta outra estrutura (relativa ao sistema judicial) que o aplica ou, mais intensamente, o realiza, o produz, em moldes institucionais.

Os pressupostos desta abordagem sistémica, ou mais precisamente de uma sistemática, não podem deixar de ser atenuados com a introdução das lógicas próprias conexas com as dinâmicas dos atores em sistema (dualidade ação / estrutura) e dessa estrutura complexa com o ambiente que a influencia.

Um cruzamento dinâmico de perspetivas que não podem deixar de ser históricas (nas abordagens estruturais e de longo prazo), epistemológicas[8], biográficas, ecológico-sociais (Urie Brofenbreenner[9]), multi-dimensionais (no cruzamento entre ambiente e sistema nas suas diversas escalas e magnitudes (micro, meso e macro) – e adequadas a um tempo de “modernidade líquida” (Zygmunt Bauman[10]), da “bio-política” (Roberto Esposito[11]), da “sociedade em rede” (Manuel Castells[12]), da “sociedade do risco e da emergência” ou da “sociedade em metamorfose” (Ulrich Beck[13]).

Como se teve ocasião de aprofundar, o presente é fortemente marcado por uma convergência de crises que entrecruzam os sinais alarmantes das alterações climáticas, os desafios globais da disrupção tecnológica, mas também da saúde pública derivados da pandemia da COVID-19 e de todas as suas repercussões, os fatores de instabilidade geopolítica acentuados por uma guerra em território europeu com sérios riscos atómicos e uma economia que se defronta com uma crónica instabilidade monetária e financeira.

Tratamos, assim, de um sistema de justiça que que se relaciona com um ambiente político social e económico caracterizado pelas diversas crises que convergem na atualidade e pela mencionada sociedade “em rede e do risco e da emergência” que se instalou como paradigma.

A abordagem predita torna claro que, atualmente, só um conhecimento que contemple a diversidade de significados e a multidimensionalidade da atividade jurisdicional se entende como efetivamente satisfatório. A atividade judiciária enquanto poder e enquanto saber[14]; enquanto saber teórico (“saber”) e enquanto saber prático (“saber como” ou “saber fazer”); enquanto atividade política e social estruturada e organizada e enquanto afirmação de um saber jurídico culturalmente diferenciado dos outros saberes; enquanto estrutura organizada e direcionada à realização das finalidades e dos objetivos constitucionalmente consagrados e enquanto cultura e prática assente em pressupostos deontológicos funcionais e profissionais; enquanto instrumento funcionalizado a objetivos sociais, ou, ainda, enquanto pressuposto normativo vinculado a valores e a bens ético-jurídicos consagrados enquanto tais pela comunidade jurídica.

Um enquadramento teórico que permitirá, quem sabe, desbravar categorias numa perspetiva mais sistemática e consolidar noções que são essenciais para futuros trabalhos neste território partilhado pelos vários saberes.

São exemplos particularmente vivos desta discussão, para além da elucidação de determinados conceitos operativos (como “organização”, “sistema”, “decisão”, “jurisdição” e “ato jurisdicional”), o tratamento proposto, nesta dissertação, às dualidades problemáticas sobre a autonomia ou a funcionalização do direito, a gestão jurisdicional e a realização do direito, a eficácia e a qualidade (ou mesmo a excelência) do sistema judicial ou a independência e a accountability na atividade judicial.

Do ponto de vista metodológico centrámos a investigação no estudo de obras e artigos doutrinários e científicos que incidem sobre o objeto em apreço, na inventariação material e comparatística das decisões políticas e administrativas que têm enquadrado e estruturado a organização e a atividade dos vários sistemas judiciais, nalguma jurisprudência internacional e nacional de maior relevância nestes domínios, e, ainda, na análise dos vários enunciados de caracterização da realidade desses sistemas e que têm sido produzidos por instituições conexionadas com o judiciário ou a administração da justiça. No pressuposto de que o que se pretendia era uma abordagem essencialmente teórica e enunciadora do universo da organização do sistema judicial e das suas incidências na tarefa de realização jurisdicional do direito.

Salientam-se no texto variados posicionamentos e correntes académicas de opinião que partem de pressupostos ecléticos ou pluridisciplinares. A aplicação teórica dos vários autores obedeceu a uma vertente conceptual, tópica e pluridisciplinar que pode, porventura, ser mal-entendida – pródiga em “casamentos improváveis” de autores e de famílias de pensamento -, mas que se tornou, quanto a nós, inevitável e necessária. Quanto a nós, não existirá ultrapassagem das diversas crises diagnosticadas ao jurídico se não se conseguir fazer a articulação do pensamento social e jurídico mais relevante, o que obriga a uma conjugação não usual de autores, permitindo-se, assim, ultrapassar o fosso analítico que tem sido cultivado não só pelos vários saberes sociais como até pelas várias escolas jurídicas.  

Não se descurou, todavia, a recolha de dados documentais (suporte papel e on line) que servem para ilustrar e sustentar os propósitos da análise e as conclusões retiradas, assim como o recurso a metodologias tais como a observação participante[15], com vista a dilucidar e a caracterizar a realidade judiciária nacional e internacional no alinhamento com as questões precípuas.

Estrutura de desenvolvimento

O livro aqui apresentado encontra-se dividido em quatro partes e cada uma das três primeiras partes desdobra-se em vários capítulos.

A primeira parte (Parte I) é assumida pelo enquadramento disciplinar e de conteúdo, na qual o capítulo 1 apresenta as bases teóricas desta reflexão, numa procura de equilíbrio entre as dimensões do sistema e do ator e na demarcação dos conceitos considerados como mais pertinentes para prosseguir com os objetivos delineados (como acontece com os conceitos operativos, atrás aludidos, de “organização”, de “decisão”, de “sistema judicial”, de “jurisdição” e de “ato jurisdicional”).

No capítulo seguinte (capítulo 2) dessa mesma Parte I passa-se a elucidar o posicionamento multidisciplinar ou interdisciplinar assumido, tanto do direito com os demais saberes sociais convergentes como também das várias disciplinas do direito aqui convocadas. Um plano em que se descobrem vários discursos, uns mais integradores do que outros, mas em que a perspetiva estrutural sobre a jurisdição e a sua organização sistémica se oferecem como horizontes comuns.  

 Não é indiferente a forma como se encontra estruturado e organizado o sistema judicial, assim como não se pode prescindir de uma análise institucional de grande latitude (profunda e rigorosa) sobre o Estado e o Estado de direito, de uma atenção ponderada sobre a relação destes pressupostos com o seu contexto social, económico e tecnológico, e, do mesmo modo, com as garantias procedimentais e da independência judicial, de uma visão sobre a reforma do sistema judicial e das políticas públicas da sua governação e de adequada abordagem sobre o processo (nas suas plúrimas incidências), o modelo profissional dos juízes e a gestão dos tribunais. Tarefa essa a que procurou responder na Parte II do livro, nos seus inúmeros (e desenvolvidos) capítulos. 

Perspetivar a jurisdição na organização do sistema judicial implica compreender o que é decidir, tanto por via explicativa como justificativa, e decidir enquanto juiz inserido num sistema judicial organizado de uma forma específica. Na Parte III desta obra, que passa a abordar a jurisdição no nexo relevante entre decisão e organização (nos seus dois capítulos), trata-se, precisamente, de decifrar a dinâmica da tomada de decisão judicial, os fatores organizativos e as condições organizativas na jurisdição, com especial relevância para a independência jurisdicional, a governação da justiça, a gestão dos tribunais, a gestão processual e o ato jurisdicional enquanto tal.

A discussão, nesta III.ª Parte, pretende servir, também, para corrigir, da melhor maneira possível, as recorrentes ausências de sintonia entre a realidade da administração judiciária e os postulados de exercício da atividade jurisdicional. Para isso, tornou-se necessário e definir e delimitar o ato jurisdicional ou o espaço de independência jurisdicional face às exigências de gestão e de organização do sistema judicial. Um realçar de fronteiras entre, por um lado, o ato jurisdicional e, pelo outro, o ato de gestão e organização dos tribunais ou do sistema judicial (onde pontuam as distinções entre gestão de tribunais e gestão processual), distinção que é imperioso realizar do ponto de vista teórico e prático, não obstante a geometria variável em que se situam os problemas complexos em causa.

Por último, na última parte (Parte IV), procede-se a uma síntese conclusiva sobre o tema central em discussão, numa análise que, num último objetivo, possibilitará clarificar alguma coisa do que muito de disperso e contraditório se tem dito sobre a organização do sistema judicial e a atividade jurisdicional, aqui em relação.

Não se trata de compor uma análise global e definitiva sobre este tema, o que seria no mínimo ambicioso, mas sim de propor uma leitura de síntese, ampliada, sobre as múltiplas abordagens que têm sido realizados sobre a questão organizativa da justiça e, dessa forma, contribuir para aquilatar das incidências dessa temática para a realização do direito.

O contexto tecnológico, em especial

A atualidade está marcada pela dimensão tecnológica, potenciada que ela foi pelo mais vasto contexto crítico económico, pandémico e bélico a que já fizemos alusão.

A atualidade veio reforçar a ideia que nenhuma instituição pública pode ser indiferente às alterações significativas a que estamos a assistir, a diversos os níveis, e que reivindicam um novo olhar sobre o seu modo de atuação e a sua adaptação ao novo ambiente criado, necessariamente mais complexo, acrescidamente mutável e mais exigente com a qualidade e a sustentabilidade das correspondentes respostas políticas, económicas e culturais, mas também legislativas, administrativas e jurisdicionais.

Como também já se teve ocasião de referir, perceber o que podem vir a resultar para os tribunais e para a atividade dos juízes, por exemplo, os impactos da revolução científica e tecnológica em curso (para muitos qualificável como a 4.ª revolução industrial[16]), das rápidas mutações a que se assiste na sociedade da informação e da comunicação (sociedade digital e em rede), das crises ambiental e pandémica ou, mais genericamente, do ambiente crítico intensificado da sociedade do risco e da emergência, não pode ser apenas um exercício de futurologia.

A aludida revolução digital abrange todos os sectores da vida, a uma escala global, exigindo um esforço de adaptação de todas as organizações, na sua gestão e nos seus procedimentos, ao ambiente digital e ao funcionamento dos dispositivos que o proporcionam. O funcionamento em rede da sociedade e a utilização das plataformas eletrónicas é uma evidência a que nenhuma sociedade escapa e às quais as instituições judiciárias nacionais e internacionais se têm de adaptar ou mesmo reconfigurar nos seus diversos níveis de amplitude (do macro ao micro)[17].

O mundo atual, a sua forma de organização, a sua economia e política, o desenvolvimento, o ambiente e a indústria, o Estado e a administração pública, todos se condicionam à disrupção tecnológica, nas suas várias dimensões de mudança. Nos seus agentes ou atores, nos seus diversos dispositivos, na inovação tecnológica, na internet das coisas, nas mutações dos modelos de negócios e dos fluxos financeiros, na exploração da informação e dos dados, na inteligência artificial e na robótica, em todos estes domínios, vamos encontrar os quatro ingredientes principais dessa transformação (digital): dispositivos, conectividade, desmaterialização e disponibilidade emocional[18].

Como se aduz no início do livro, as revoluções tecnológicas implicam em geral assimetrias estruturais entre a esfera tecnológica, a ordem jurídica e a realidade das relações sociopolíticas que depois vão sendo assimiladas numa adaptação mais lenta ou mais rápida, mas sempre com mutações relevantes tanto no mundo do direito como em geral nas relações sociais[19].

Tal como decorre do alinhamento base da nossa reflexão, de cariz interdisciplinar, podemos encontrar vários níveis de discussão em torno da justiça, da tecnologia e do direito, e que podem ser distinguidos, não obstante o seu natural relacionamento e conexões, para sabemos do que falamos num território ainda muito instável e especulativo.

Um terreno propício para a especulação filosófica, para as abordagens sociológicas e para as implicações metodológicas e epistemológicas. Sobre estas últimas basta mencionar as considerações em torno da epistemologia histórica e social e das teses das abordagens cognitivas – mente incorporada, estendida ou amalgamada –, tal como abordadas no capítulo 1 da Parte I do livro em análise. Assim, considera-se que o sistema cognitivo está imerso no mundo social e tecnológico[20], com ele interage e com ele se potencia, sendo que as alterações paradigmáticas na organização social causadas pelas mutações nas redes de comunicação e interações inerentes à revolução tecnológica em curso não deixam de afetar o próprio direito[21], o qual, para além da sua articulação sistémica, não deixa de assentar numa contextualização de práticas instituídas[22].

No sentido de que a tecnologia não pode ser considerada apenas como uma ferramenta pois a mesma integra-se com o direito no conjunto das interações humanas no triplo ponto de vista organizativo, procedimental e institucional, como se encontra devidamente justificado na Parte I do livro, a propósito das definições de organização, de sistema e de decisão[23]. As sobreposições institucionais[24] que resultam das mutações acima identificadas podem ser caracterizadas com recurso às noções de ator, de rede e de agência, pois nelas ocorrem processos de transferência das regulações normativas (e dos respetivos comandos) para os códigos informáticos. Por via deste fenómeno de agência (ou delegação), os componentes processuais definidos pela lei são inscritos na tecnologia. A delegação ou agência para as máquinas é dupla, pois as máquinas realizam ações anteriormente desempenhadas por humanos (automação), ao mesmo tempo que orientam os humanos na execução das suas tarefas[25].   

Algumas questões podem ser ponderadas, desde logo, em primeiro lugar, saber o modo como os juristas podem beneficiar e assimilar as componentes desta revolução tecnológica e qual o impacto da mesma na estrutura da jurisdição. Podemos vir a falar de uma artificial judicial decision making[26]? Será que o fator humano virá a estar em risco no momento de julgar, podendo o juízo decisório do juiz, com a sua face humana, ser substituído por uma máquina inteligente[27]? Qual o papel que o direito pode assumir na regulação das áreas de intervenção e de impacto da disrupção tecnológica no tecido social? Qual a capacidade de diálogo e de parceria metodológica do campo jurídico e judicial com o saber científico e tecnológico associado a essa revolução tecnológica? Que papel para a verdade na sociedade, no direito e na justiça digital? Quais são os limites da justiça preditiva na teoria e na prática jurídica? A hibridização do direito torna-se inevitável em face da sua intersecção com práticas sociais muito heterogéneas, desde as tecnologias (códigos digitais) às novas formas de gerar conhecimento, passando pela transformação da subjetividade, pela construção de novos centros de decisão e pelo surgimento de novos meios de comunicação[28]?

 Os capítulos 5 e 12 da Parte II do livro abrem a discussão a esta e a outras abordagens em torno dos sistemas de informação, da justiça digital e da inteligência artificial, compondo os diversos níveis de articulação desses três tópicos, formulando os diversos desenvolvimentos e conclusões que podem ser retiradas em torno deste contexto informativo, digital e de automação. Essas mesmas abordagens, passam pelo nível político-constitucional, pelas respostas normativas e legais, pelas soluções governativas e gestionárias, pela análise económica do digital e da inteligência artificial (aplicados à justiça), pela vertente tecnológica em si (design e inovação), e, sem descurar a sua importância central, pelo tratamento processual e procedimental ligado com a gestão tecnológica e com aquilo que se pode designar pelo processo tecnológico, culminando pela própria decisão judicial (nas suas várias expressões e formas).

Síntese conclusiva. As metáforas da moldura e do organum

Impõe-se realizar uma síntese conclusiva em conformidade com aquilo que se passou, também, no livro em apreciação.

Nesta síntese conclusiva quisemos elencar as proposições de resposta aos inúmeros questionamentos que foram suscitados, desde logo à questão primacial que tem a ver com a valorização da vertente estrutural e organizativa da jurisdição, não só dentro do sistema jurídico, mas também nas suas conexões sistémicas com o seu ambiente envolvente.

Para responder a esses questionamentos procedemos a um estudo  que se pode ser encarado como uma fenomenologia da jurisdição[29], inerente à sistemática alargada, nas dinâmicas e nas latitudes reportadas à estrutura da jurisdição, mas também na sua sincronia e diacronia, nos diversos círculos concêntricos inerentes aos diversos fatores de condicionamento, de composição ou de influência. Um estudo que, por si, não pode deixar de dar uma ideia mais completa, real e integrada sobre a relação que pode e deve ser estabelecida – uma relação de integração – entre a jurisdição e a organização (do sistema judicial). E que tem repercussões no delineamento da jurisdição na teoria e na prática do direito, designadamente no direito realizado pelo juiz.

Esta orientação mais alargada sobre a jurisdição não descura nem pretende menorizar o momento essencialmente jurídico da aplicação ou realização do direito, mas que não pode deixar de estar incluído – sob pena de isolamento sistémico – num horizonte ou estrutura mais vasta, inerente às suas condições estruturais de concretização.

Serão traços fortes, quanto a nós, aqueles deixados pela leitura, no livro aqui apresentado, da história de longo prazo, do ambiente de revolução e tecnológica e de crise pandémica que estamos a viver e que alteram as relações de produção e de definição (Ulrich Beck[30]) em que assenta a economia da nossa sociedade e a própria dinâmica entre os atores (os seus diversos atores) e a sociedade.

A jurisdição não pode prescindir da sua visão contextualizada e sistémica e da necessidade de convocar uma diversidade de saberes e capacidades orientadas para o reconhecimento do direito nas sociedades democráticas atuais, tal como extensamente justificado no texto do livro.

A abordagem sistémica (nomeadamente de Niklas Luhmann que é citado amiúde[31], entre outros autores) que nos acompanhou do ponto de vista descritivo e analítico – depois preferimos assumir apenas uma sistemática alargada (na proposta de Andreas Voßkuhle[32]) – não se pode transformar na prisão do sujeito (juiz) e da dinâmica da sua ação, designadamente no momento de aplicação ou de realização do direito. De modo a que os valores axiológicos e os princípios inerentes a um posicionamento humanista possam prevalecer.

Mas a condição está lá, não pode ser descurada ou incompreendida.

Sob pena de funcionar – e ela funciona talvez vezes de mais – como uma constrição não pressuposta, descurada ou desconhecida.

Lembrando a complementaridade entre natureza humana e condição humana, apontada por Hannah Arendt, evidenciada no início.

A liberdade e autonomia (até criativa) de interpretação e de realização do direito tem como pressuposto uma autonomia e independência nas condições estruturais e organizativas. As garantias constitucionais e procedimentais do direito terão de zelar por esse espaço autónomo da prática jurisdicional.

Daí se compreende o cuidado tomado pelo direito público e constitucional sobre essa dimensão organizativa, como se depreende dos esforços em torno da defesa e garantia do Estado de direito, tanto na compreensão material ou substantiva do direito organizatório[33] e da teoria da direção do assim designado Novo Direito Administrativo[34] como no desenvolvimento jurisprudencial e recomendatório a nível internacional e nacional.

Também comprova esta alusão, a definição dos estados sucessivos de apreciação e controlo da jurisdição advogados por Benoît Frydman[35], que desde a apreciação da legalidade (nomofilaquia), desembocam numa sindicância sobre a qualidade ou a excelência da administração da justiça, ou a superação para um modelo recursivo que incremente o desenvolvimento criativo do direito, tal como salientado por Michele Taruffo[36].

Além da reversabilidade da operação de aplicação do direito no pressuposto de reflexibilidade do juízo normativo e da importância deste para o sentido de governação política e comunitária.

Em que outra visão pode caber a discussão em torno dos modelos de juiz, desde o juiz “boca da lei” ao juiz Hermes dos nossos dias, ao qual se terão de exigir as características que também se procuram e exigem dos atuais sistemas judiciais?

A teoria interpretativa do direito que prevaleceu tem-se situado entre os opostos do formalismo silogístico e o ceticismo do realismo. Numa proliferação de discursos e práticas de que esta época pós-moderna faz desembocar na reflexão sobre a jurisdição (podemos evocar a imagem de Gary Minda[37] do delta dos vários braços de rio que correm para o mar), ganha sentido o ponto mediano em que se assume que o juiz dispõe de um real poder normativo e que a sua atividade não é o resultado nem de um conceptualismo e literalismo rígido nem de um puro funcionalismo teleológico e sociológico.

O modus operandi do direito não é apenas lógico-dedutivo, procedimental, argumentativo, sistémico-funcional ou organizativo. Tem necessariamente aquele pendor jurisprudencialista fundado em raízes substancialmente axiológicas. Está, assim, muito para além de uma visão puramente estrutural da jurisdição e de uma decisão apenas determinada por um fundamento teleológico ou consequencial. Mas sem essa estrutura e sem esse pendor organizativo a jurisdição não poderia subsistir nem pode ser devidamente compreendida e acionada.

A linha de base jurisprudencial pode ser revigorada caso as suas condições de exercício e de estruturação sejam bem pensadas, otimizadas e adequadas às novas e radicais exigências sociais, económicas, tecnológicas e ambientais, e devidamente integradas, num comprometimento com a incondicionalidade da concretização do Estado de direito e com a democracia. A afirmação do direito enquanto síntese tridimensional: social, institucional e ética.

As razões explicativas e as razões justificativas da decisão jurisdicional estão na divisada relação de integração, até porque os contextos organizativos e institucionais implicam uma variação no tipo de fundamentação e nos modelos de argumentação utilizados (v.g. civil law e common law).

  Por isso a jurisdição, pela sua própria natureza, não pode também prescindir do seu pendor institucional, tónica que se deixou bem reforçada nos pontos antecedentes.

Daí a defesa de uma perspetiva institucionalista na leitura do direito que atua no seio da sociedade enquanto “medida e forma da vida coletiva”, na ponderação de Gomes Canotilho[38], ou, enquanto matéria respeitante à diversidade institucional ínsita à sociedade e da realidade subjacente ao próprio Estado de direito, como advoga Brian Z. Tamanaha[39]

As condições de possibilidade da jurisdição não podem, assim, deixar de tocar e influenciar o núcleo essencial desta última, como realidade construída e emergente da vida institucional e social, numa interpenetração entre o contexto do mundo da vida e os sentidos axiológicos e dogmáticos do direito. Nesse pressuposto, a perspetiva sistémica articula-se com o mundo da vida (Jürgen Habermas[40]).

A operação de aplicação do direito – de realização do direito – coloca, dessa forma, a questão relativa às condições de possibilidade dessa operação – condições de cariz pragmático –  através da qual a atividade racional de julgamento produz os efeitos do sentido normativo na realidade, isto é, como se aplica ou se realiza na realidade social.

Quando os juízes administram justiça, fazem-no, para além da decisão-julgamento firmada no direito aplicável, também segundo os pressupostos de funcionamento do próprio sistema judicial, com a consciência das possibilidades do mesmo, designadamente das respetivas condições administrativas e organizativas.

Os condicionamentos e as exigências próprias da possibilidade do sistema judicial manifestam-se, assim, tanto no decurso e na preparação da apreciação e julgamento do caso judiciário, como depois na tomada de decisão final e, ainda, no acompanhamento das suas consequências e da sua eficácia executiva.

Salientando-se, também assim, a reversibilidade da operação de aplicação do direito que decorre da própria reflexibilidade do juízo normativo e da importância desta alusão para o plano de governação jurídica da comunidade social. O que torna claro que no momento genético da norma se encontra já presente o seu significado aplicativo e, daí, as próprias condições institucionais e organizativas da sua realização.

Elementos organizativos e administrativos do próprio sistema judicial, no qual é tomada a decisão jurisdicional, e elementos que, por via disso, passaram a complementar a racionalidade dessa decisão e a compõem com o grau de eficácia e adequação que é exigível, podendo ser designados como pressupostos pragmáticos da realização jurisdicional do direito (esta será sempre um pleonasmo).

É que para além do material jurídico-normativo fundamental, para que o operador jurídico possa compor a racionalidade da sua decisão tem de fazer uso de meios aptos que possibilitem essa finalidade, segundo as condições mais adequadas para tanto.

Nesse quadro, o princípio da efetividade da tutela judicial exige a consagração, pelo Estado, logo em primeira linha, de uma organização judiciária e de um regime de processual tais (normas, estatutos, meios e estruturas) que garantam essa tutela efetiva.

 Tal é, em síntese, o jogo dinâmico dos elementos que constituem, na prática, a salientada estrutura comunicativa entre o saber jurídico, numa definição do direito aplicável ou realizado, e o poder que o possibilita, condição da sua realização e que não o deixa de perspetivar com a sua instrumentalidade.

O que é particularmente percetível, como se fez alusão, na análise dos pressupostos de governação e das políticas públicas de reforma do sistema judicial, em que a legislação se manifesta particularmente atenta e deve atender e conformar o momento jurisdicional de realização do direito. E, também, na querela acerca do sentido jurídico-constitucional da função jurisdicional, pela qual se considera que esse sentido contém impressivos elementos orgânicos e formais, tal como tem vindo a ser entendido pela própria jurisprudência constitucional em torno dos temas da reserva da jurisdição e do âmbito dessa mesma função jurisdicional.

Depois, a interdependência entre a estrutura organizacional e programática e a racionalidade do ato de decisão, leva a encarar o direito como um saber e uma atividade que se desenvolve em espaços organizativos, povoados que estão estes de competências organizativas e especializações profissionais, sendo ao mesmo tempo, o direito, condicionado e condicionador dessa ação.

Nesse contexto, o juiz assume uma importância fundamental, enquanto ator no sistema, finalisticamente legitimado e justificado para o momento decisional e para a argumentação encontrada nessa decisão, segundo uma racionalidade juridificada e um fundamento axiológico (moldura do jurídico), mas, também, adstrito às condições de possibilidade desse sistema.

Depois de ouvirmos Juan de la Rubia na catedral de Santo Estevão (Viena), a metáfora do órgão de tubos – o órgão de uma catedral feita de pilares e de simbolismo, na interpretação criativa, mas sempre canonizada, adaptada aos timbres e às dinâmicas do local e do tempo[41] – não tem deixado de nos acompanhar.

Segundo esta aproximação, a estrutura em que assenta a pronúncia do direito, pelo juiz, é a própria organização dos tribunais, com toda a sua amplitude descritiva, incluindo a tecnológica (a máquina); a sua pior ou melhor definição, construção e integração no edifício que é, também, catedral, faz toda a diferença e constitui a noção de espaço e de tempo em que o humano pode ganhar o sentido da sua plenitude.

A solo ou em coletivo, mas sempre integrado e complementado pelo seu contexto e, também, com o seu instrumental (estrutural, organizativo e também tecnológico, na expressividade da máquina em presença) de comunicação, expressão e de conformação, o juiz é convocado a levar a interpretação (jurídica) a uma dimensão criativa e congruente com o texto e o contexto[42], com a dimensão intrinsecamente humana do que se espera ouvir enquanto escolha e decisão; o drama humano que tanta vezes nos transcende exige interpretações que superem as fragilidades e as tentações que nos levam ao conflito, aos dissensos e, até, às guerras, e que resolvam os dilemas que convocam a resolução por um terceiro imparcial. Por seu turno, a axiologia está assente nos pilares góticos seculares, sempre atuais, dos princípios do direito.

Também aqui, tal como no desempenho do organista, para além do domínio da técnica e da condicionante mais ou menos rica da tecnologia (literalmente), existe um limite sempre insuperável: há que interpretar o direito até aos limites quase transcendentes da realidade espessa e desafiante do contexto interpretativo (da vida), mas sem o prostituir… Sendo inevitável, tal como para Juan de la Rubia[43], o retorno a Bach, isto é, no caso da jurisdição, o retorno à moldura jurisprudencial do direito.


[1] “A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual entram em contacto torna-se imediatamente uma condição da sua existência. O mundo no qual transcorre a vida activa consiste em coisas produzidas pelas actividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem a sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens criam constantemente as suas próprias condições que, a despeito da sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. (…) É por isto que os homens, independentemente do que façam, são sempre seres condicionados. A objectividade do mundo – o seu carácter de coisa ou objecto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana. Para evitar erros de interpretação: a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das actividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana não constitui algo que se assemelhe à natureza humana (…)” – assim, Arendt, Hannah, 2001, A Condição Humana, tradução do título original The Human Condition, de 1958, Lisboa: Relógio D’Água Editores, pp. 21-22.

[2] Na referência do livro aqui apresentado, Coelho, Nuno, 2024, Organização do Sistema Judicial e Jurisdição. Para uma sistemática alargada da realização do direito pelo juiz, Coimbra: Almedina. Livro publicado no início de Maio deste ano de 2024, pela editora Almedina, divulgado no sítio eletrónico desta última em https://www.almedina.net/organizacao-do-sistema-judicial-e-jurisdicao-para-uma-sistematica-alargada-da-realizacao-do-direito-pelo-juiz-1713963673.html

[3] Pressupondo, aqui, a pertinência do estudo da jurisdição na dinâmica de órgãos jurisdicionais de outra natureza e, do mesmo modo, a existência de um pluralismo nas fontes do direito e dos mecanismos de resolução dos litígios que se conjugam e dinamizam nos diversos processos de produção e concretização do direito.

[4] Castanheira Neves e Aroso Linhares, num quadro prosseguido no livro, com alguma insistência, descobrem essas três vertentes problemáticas diferenciadas sobre a jurisdição que são de evidenciar e qualificar – assim, consultem-se Neves, António Castanheira, 1998, “Entre o «legislador», a «sociedade» e o «juiz» ou entre «sistema», «função» e «problema» – os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 130.º, pp. 291-292, e Linhares, José M. Aroso, 2002, “A unidade dos problemas da jurisdição ou as exigências e limites de uma pragmática custo/benefício. Um diálogo com a Law & Economics Scholarship”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXXVIII, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 160-177, e 2010, “Jurisdição, Diferendo e «Área Aberta» – A caminho de uma teoria do direito como moldura”, in Ars Ivdicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Volume IV, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 443-444.

[5] A representação da moldura aplicada ao contexto jurídico e judicial, pode assumir uma diversidade de sentidos, desde a amplitude da tarefa interpretativa ou aplicativa do direito (realização do direito), até ao papel do direito na organização social, passando pela ideia de equilíbrio e justiça na ponderação de valores e interesses contrapostos. Neste último sentido, aviva-se o pensamento de Ronald Dworkin, ao estabelecer a moldura como modelo da relação entre os princípios jurídicos e a decisões judiciais, em que aqueles desempenham um papel delimitador da ação do intérprete, imprimindo coerência e significado a estas últimas, e, por último, concedendo ao sistema a pretendida integridade – cfr. Dworkin, Ronald, 1978, Taking Rights Seriously, Cambridge: Harvard University Press, pp. 28-80.

[6] O direito, e, assim, a jurisdição, manifestam-se segundo a metáfora da moldura, entre a abertura e o fechamento, na latente oposição entre os discursos juridicistas e os discursos de área aberta, numa dialética entre problema e sistema. A aludida metáfora da moldura entre a pluralidade de sentidos possíveis, admitida por Kelsen quanto à tarefa do intérprete e o seu ato interpretativo – Kelsen, Hans, 2005, Pure Theory of Law, tradução da segunda edição do original alemão Reine Rechtlehre de 1960, Clark: The Lawbook Exchange, pp. 350-352 -, é aqui assumida como uma caraterística própria do sistema.  Por seu turno, a opção jurisprudencialista assenta nessa conceção do sistema jurídico e em diversas contraposições que marcam a validade comunitária e os contextos de realização do direito – assim, em Linhares, José M. Aroso, 2010, acima citado, e 2012, “Validade comunitária e contextos de realização: anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, Volume 1, Número 1, 2012, pp. 1-42, e 2020, “The Rehabilitation of Pratical Reasoning and the Persistence of Deductivism: An Impossible Challenge” in International Journal for the Semiotics of Law, Volume 33, Issue 1, March 2020, pp. 155-174, com alusão a esta imagem da moldura e aos contrapontos pluralidade/unidade, dogmática/reflexão crítica, sociedade/comunidade e legalidade/moralidade.  

[7] De que são exemplo as referências Coelho, Nuno 2015, Gestão dos Tribunais e Gestão Processual, Coleção Direção de Comarcas, e-book, 2015, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Gestao_Tribunais_Gestao_Processual.pdf?id=9&username=guest, e  2017, Manual de Organização e Administração Judiciárias no âmbito da criminalidade organizada, corrupção, branqueamento de capitais e tráfico de estupefacientes, Projeto de Apoio à Consolidação do Estado de direito, 2017, Lisboa: Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., disponível em http://www.paced-paloptl.com/uploads/publicacoes_ficheiros/paced_manual_orgegestaojudiciarias_nc_vf.pdf; Coelho, Nuno; Lopes, José Mouraz, 2019, Da Formação à Cooperação – Guia para a formação e cooperação judiciárias na área penal nos países de Língua Portuguesa, 2019, Lisboa: Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, disponível em https://www.paced-paloptl.com/uploads/publicacoes_ficheiros/guia_da-formacao-a-cooperacao.pdf; Coelho, Nuno; Lopes, José Mouraz; Mendes, Luís Azevedo; e Matos, José Igreja, 2015, Manual de Gestão Judicial, Coimbra: Almedina.; Coelho, Nuno; Cabral, Afonso Henrique; Martins, Lara; Correia, José Manuel; e Moura, Sónia, 2021, “Avaliação das práticas instituídas na Gestão e Administração dos Tribunais e Independência Judicial (princípios nacionais e internacionais). Conclusões do Grupo de Reflexão constituído pela ASJP e pelo CSM”, in Boletim Informação & Debate, Dezembro de 2021, IX Série, N.º 9, pp. 30-60, e Coelho, Nuno; Lopes, José Mouraz; Coelho, Ana de Azeredo; Martins, José Joaquim Oliveira; Latas, António João; Moura, Sónia, 2023, 2023, Agenda da Reforma da Justiça. Uma Reflexão Aberta e Alargada do Judiciário, Coimbra: Almedina.

[8] Considerações em torno da epistemologia histórica e social, desde logo nas ponderações cognitivas mais aptas a explicar a virtualidade dos contextos sociais, organizativos e tecnológicos para uma definição mais sustentada da atividade jurisdicional. Assim, segundo a epistemologia histórica e social o conhecimento será altamente dependente de habilidades práticas e aptidões pessoais (sobre o conhecimento tácito ou implícito, consulte-se Polaniy, Michael 1948, “Planning and Spontaneous Order”, in The Manchester School, Volume 16, Issue 3, pp. 237-301, e 2009, The Tacit Dimension, primeiramente publicada em edição de 1966, Chicago/London: The University of Chicago Press, pp. 3-25) e encontra-se distribuído em redes sociais de referência, mas descentralizado da esfera de um sujeito atribuidor de sentido. O próprio direito, nesta abordagem, sem esquecer a sua articulação essencialmente sistémica (ou sistemática), assenta numa contextualização de práticas instituídas – assim, Ladeur, Karl-Heinz 2007, “The Role of Contracts and Netoworks in Public Governance: The Importance of the ‘Social Epistemology’ of Decision Making”, in Indiana Journal of Global Legal Studies, Vol. 14, N.º 2 (Summer 2007), pp. 329-351, e Vesting, Thomas 2017, “Modern law and the crisis of common knowledge”, in Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 54, n.º 214, pp. 11-29, e 2018, Legal Theory and the Media of Law, tradução em inglês dos vários volumes originais em alemão de 2011, 2013 e 2015, da obra intitulada Die Medien des Rechts, Cheltenham/Northampton: Edward Elgar Publishing, pp. 5-28 –  e, por essa via, é objeto de transformações sucessivas e disruptivas causadas pelo funcionamento em rede que é próprio da atual sociedade informativa e tecnológica .

[9] Consultar, aqui, as referências Bronfenbrenner, Urie, 1979, The Ecology of Human Development: Experiments by Nature and Design, Cambridge / London: Harvard University Press, e Bronfenbrenner, Urie; e Morris, Pamela A., 2007, “The Bioecological Model of Human Development”, in Handbook of Child Psychology, Volume I, Theoretical Models of Human Development, Wiley Online Library, pp. 793-828, disponível em https://doi.org/10.1002/9780470147658.chpsy0114.

[10] Se, no contexto da modernidade sólida, era ao Estado que cabia a regulação do medo de origem social a que Freud se referia em Civilization and its Discontents, agora, no quadro da modernidade líquida, “a dissolução da solidariedade assinalou o final da luta contra o medo adoptada pela modernidade sólida” assim, Bauman, Zigmunt 2006, Confiança e Medo na Cidade, tradução do título original de 2005 Fiducia e paura nella cità, uma colectânea de três textos do autor, Lisboa: Relógio D’Água Editores. Consulte-se, também, do mesmo autor, na senda da modernidade líquida, Bauman, Zigmunt, 2000, Liquid Modernity, Malden: Polity Press.

[11] Acompanha-se a leitura, Esposito, Roberto 2004, Bíos: Biopolítica e filosofia, Torino: Giulio Einaudi editore, pp. 101-138.

[12] A propósito do conceito de tempo e da mutação operada pelo paradigma das tecnologias da informação, pelas práticas sociais que lhe estão inerentes e pelo surgimento do espaço de fluxos. “O tempo como repetição da rotina diária (…)” que se encontrava “no âmago do capitalismo industrial e do estadismo (…)” esse “tempo linear, irreversível, mensurável e previsível está a ser fragmentado na sociedade em rede, num movimento de extraordinária importância histórica” – Castells, Manuel 2002, A Sociedade em Rede – A Era da Informação, Volume I, trad. portuguesa da edição inglesa de 2000, The Rise of the Network Society, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 561.

[13] Assim, Beck, Ulrich, 2016, Sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida, tradução do original alemão de 2007, Weltrisikogesellschaft. Auf der Suche nach der verlorenen Sicherheit, Lisboa: Edições 70, e 2017, A metamorfose do mundo: como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade, tradução do original inglês de 2016, The Metamorphosis of the World, Lisboa: Edições 70.

[14] O direito que resulta deste relacionamento entre o saber e o poder, enquanto forma de “saber-poder” que se desdobra em várias formas – “formas jurídicas” -, como se constata na análise de Foucault sobre a prova, o inquérito e o exame enquanto modos de perceção e estabelecimento da verdade, enquanto processos de pesquisa da verdade e que se radicam nas práticas judiciárias remotas da Grécia Antiga ou da Idade Média. Uma forma de saber que é também uma maneira determinada de exercício do poder. Assim, Foucault, Michel, 1994, “La verité et les formes juridiques”, in Dits et écrits, Paris: Éditions Gallimard, aqui consultado na coletânea de 2004, Michel Foucault – Philosophie – anthologie, Paris: Éditions Gallimard, pp. 423-476. Sobre a designada arqueologia dos saberes enquanto uma nova metodologia aplicável à história das ideias e às ciências humanas, consulte-se Foucault, Michel, 2005, As Palavras e as Coisas, tradução do título original Les Mots et les Choses de 1966, Lisboa: Edições 70, pp. 381-422.

[15] Sobre estas noções consultem-se Perrin, Jean-François, 1997, Sociologie empirique du droit, Bâle (Francfort-sur-le-Main): Helbing & Lichtenhahn, pp. 99, e Guibentif, Pierre, 2002, “Questions de méthode en sociologie du droit. À propos de l’entretien en profondeur”, in Jean Kellerhals, Dominique Manaï e Robert Roth (eds.), Por un droit pluriel. Études offertes au professeur Jean-François Perrin, Genebra / Basileia / Munique: Helbing & Lichtenhahn, pp. 311-337. Não é de menosprezar o facto do aqui proponente ter uma experiência profissional (a de juiz) que se coaduna com uma participação efetiva na realidade judiciária em estudo. 

[16] Assinalada assim sintomaticamente, por exemplo, pela plataforma do Fórum Económico Mundial em https://www.weforum.org/centre-for-the-fourth-industrial-revolution/, consultada em 21/5/2021, e reafirmada, para a globalização, nas referências Schwab, Klaus, 2018, Shaping the Fourth Industrial Revolution: A Guide to Building a Better World, Cologny/Geneva: World Economic Forum, e  2019, “Globalization 4.0 – A New Architecture for the Fourth Industrial Revolution”, in Foreign Affairs, January 16, 2019, disponível em https://www.foreignaffairs.com/articles/world/2019-01-16/globalization-40. Numa alusão aos vários elementos definitórios desta 4.ª revolução e de como ela conforma a realidade humana, Floridi, Luciano 2014, The 4th Revolution. How the infosphere is reshaping human reality, Oxford: Oxford University Press.

[17] Em vez de se falar de revolução fará mais sentido, numa melhor ponderação, compreender a transformação muito acelerada com que nos vimos a deparar no seio de um processo social de mudança que pode e deve ser analisado no longo prazo, tal como devidamente justificado no livro em apresentação. Trata-se, na verdade, de um processo complexo e heterogéneo e que não pode ser reduzido a uma uniformidade explicativa ou consequencial (v.g. disrupção v. continuidade) e que deve ser integrado em análises temporais, organizativas, culturais e multimensionais (micro, meso e macro) – neste sentido, Büchner, Stefanie; Hergesell, Jannis; e Kallinikos, Jannis, 2022, “Digital Transformation(s): On the Entanglement of Long-Term Processes and Digital Social Change. An Introduction”, in Historical Social Research, 47(3), 2022, pp. 7-39, disponível em https://doi.org/10.12759/hsr.47.2022.25.

[18] Assim, Carapuça, Rogério, 2018, Revolução Digital: Quando quase tudo é possível, Lisboa: Glaciar / Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, pp. 91-107.

[19] Nessa expressividade, Belov, Martin, 2021, “Introdution”, in Martin Belov (ed.) The IT Revolution and Constitutionalism and Public Law, Oxford/London/New York/New Delhi/Sydney: Hart, pp. 1-2.

[20] Na senda de Clark, Andy; e Chalmers, David, 1998, “The extended mind”, in Analysis, Vol. 58, N.º 1, January 1998, pp. 7-19; Smart, Paul. 2017, “Extended Cognition and the Internet. A Review of Current Issues and Controversies”, in Philosophy & Technology (2017), 30, pp. 357-390, disponível em https://link.springer.com/article/10.1007/s13347-016-0250-2, e Ongaro, Giulio; Hardman, Doug, e Deschenaux, Ivan, 2022, “Why the extended mind is nothing special but is central”, in Phenomenology and the Cognitive Sciences, 2022, disponível em https://doi.org/10.1007/s11097-022-09827-5.

[21] Sendo que a operacionalidade do direito é questionada pela proliferação dos padrões em rede e pela intervenção dos inerentes quasi-atores (mais ou menos complexos e multi-nível) e das plataformas – onde as figuras das conexões e das parcerias contratuais assumem a maior relevância, na fronteira entre a regulação privada e pública -, ao lado dos indivíduos e das organizações, que ultrapassam as inerentes fronteiras organizativas, cognitivas e semânticas – assim, Ladeur, Karl-Heinz, 2007, ob. cit, e 2017, “The transformation of legal semantics in postmodern society. From the ‘subsumption’ of cases to ‘balancing’ and a semantics of networks”, in Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 54, n.º 215, pp. 13-26; Teubner, Gunther, 2006, “The Anonymous Matrix: Human Rights Violations by ‘Private’ Transnational Actors”, in Modern Law Review, 69(3), pp. 338-342; Teubner, Gunther; e Collins, Hugh 2011, Networks as Connected Contracts, Oxford/Portland: Hart Publishing, pp. 113-178; Vesting, Thomas, 2004, “The Autonomy of Law and the Formation of Network Standards”, in German Law Journal, Vol. 05, N.º 06, 2004, pp. 639-668; e Ost, François; e Kerchove, Michel van de, 2002, De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique du droit, Bruxelles: Publications des Facultés universitaires Saint-Louis, pp. 23-32.

[22] Nas referências já anteriormente citadas de  Ladeur, Karl-Heinz (2007), e Vesting, Thomas (2017) e (2018), pp. 5-28, com alusão à epistemologia histórica e social e ao contexto prático-institucional, onde o conhecimento dos fenómenos coletivos e da rede redundaram num novo paradigma da cultura jurídica e científica.

[23] Dinâmica organizacional que se desdobra nas componentes institucional, estrutural e tecnológica, para que aponta Bruno Maggi – assim, Maggi, Bruno, 1984, “Teoria dell’organizzazione e sociologia del diritto”, in Uberto Scarpelli e Vincenzo Tomeo (eds.), Societa, norme e valori. Studi in onore di Renato Treves, Milano: Giuffré, pp. 289-294 -, ou num ajustamento (acoplamento) estrutural entre as realizações técnicas e o sistema social com recurso à redução da complexidade por via da simplificação funcional e do fechamento operacional inerentes à programação e codificação tecnológicas, tal como defendido por Luhmann – assim, Luhmann, Niklas, 1993, Risk: A Sociological Theory, tradução do original alemão Soziologie des Risikos do mesmo ano, Berlin/New York: Walter de Gruyter, pp. 76-100. Neste mesmo sentido, consulte-se Kallinikos, Jannis, 2005, “The order of technology: complexity and control in a connected world”, in LSE Research Online, Available November 2005, disponível em https://eprints.lse.ac.uk/457/, e 2011, Governing through Technology. Information Artefacts and Social Practice, Hampshire/New York: Palgrave Macmillan, pp. 12-33.

[24] A expressão utilizada por Giovan Lanzara é de “assemblages”, no sentido que lhe é dado nas artes enquanto montagem ou colagem, numa estética de sobreposições e acumulação de materiais – assim, Lanzara, Giovan Francesco, 2009, “Building digital institutions: ICT and the rise of assemblages in government”, in Francesco Contini e Giovan Francesco Lanzara (eds.) ICT and Innovation in the Public Sector. European Studies in the Making of E-Governement, New York: Palgrave MacMillan, pp. 9-48.

[25] Sendo que quanto mais a justiça eletrónica é difundida mais a autoridade da lei (entenda-se processual) é delegada para os códigos de software – cfr. Lanzara, Giovan Francesco, 2009, ob. cit., pp. 9-13, e 2014, “The Circulation of Agency in Judicial Proceedings: Designing for Interoperability and Complexity”, in Francesco Contini e Giovan Francesco Lanzara (eds.) The Circulation of Agency in E-Justice. Interoperability and Infrastructures for Euroepan Transborder Judicial Proceedings, Dordrecht/Heidelberg/New York/London: Springer, pp. 4-6; e Contini, Francesco, 2020, “Artificial Intelligence and the Transformation of Humans, Law and Technology Interactions in Judicial Proceedings”, in Law, Technology and Humans, Volume 2 (1), 2020, pp. 4-7.

[26] E o que pode resultar de um processo de cibernetização do modus operandi do direito, que não começou só agora, ressaltando aqui as dúvidas sobre o alcance de um modo apenas lógico-dedutivo, procedimental ou argumentativo do decidir juridicamente ou algo mais, muito mais para além disso, como se salienta, numa linha de base jurisprudencialista, em Pereira, Alexandre Libório Dias, 2008, “Lex Informática, Ius ex Machina e Justiça Artificial”, in J. de Figueiredo Dias, J. J. Gomes Canotilho e J. de Faria Costa (orgs.) Ars Iudicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume I: Filosofia, Teoria e Metodologia, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 817-886. (2008). Nesta mesma linha de distinção do juízo decisório do juiz, em toda a sua amplitude, e distinguindo a padronização obtida pela análise mecânica e generativa dos dados realizada pela IA e a analogia jurídica que é sempre realizada com apelo a princípios e valores, Sunstein, Cass R. 2001, “Of Artifical Intelligence and Legal Reasoning”, in Public Law & Legal Theory, U. Chicago Law School, Working Papers N.º 18, 2001, disponível em https://dash.harvard.edu/handle/1/12795544,; e Cofone, Ignacio N., 2021, “AI and Judicial Decision-Making”, in Florian Martin-Bariteau e Teresa Scassa (eds.) Artificial Intelligence and the Law in Canada, Toronto: LexisNexis, disponível em https://ssrn.com/abstract=3733951, pp. 4-6.

[27] O que no campo especulativo seria a antevisão do grau máximo de constrição dos fatores ambientais e organizativos sobre a realização do direito pelo juiz, no fundo a sua substituição por uma estrutura organizativa inteligente, emulativa (portanto não humana) e generativa de juízos decisórios assumidos como justiça.

[28] Ressalta aqui a abordagem de Ricardo Campos, já referida anteriormente, sobre a adequada determinação das estruturas jurídicas fundamentais na sociedade mundial digitalizada, num conjunto de considerações teóricas sobre o direito, o tempo e a tecnologia, bem como sobre a reorientação dos próprios processos de produção do direito (Estado-nação, organizações transnacionais e plataformas digitais autoreguladas) – Campos, Ricardo, 2022, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a interação entre Direito, tempo e tecnologia, São Paulo: Contracorrente, consultada na versão e-book.- Campos, Ricardo (2022).

[29] A ambição poderia andar perto do que se pode entender como uma teoria geral ou interdisciplinar da jurisdição, na linha do que expressava Lewis Kornhauser, acerca de uma teoria unitária que possibilitasse um desenvolvimento explicativo sobre a estrutura da aplicação da justiça ou da realização jurisdicional do direito – Kornhauser, Lewis A. (1999), 1999, “Judicial Organization and Administration”, in Boudewijn Bouckaert e Gerrit De Geest (eds.) Encyclopedia of Law & Economics, University of Ghent / Edward Elgar Publishing Limited / FindLaw, 7100, pp. 27-44, disponível em http://encyclo.findlaw.com/7100book.pdf.

[30] “As relações de definição incluem as regras, instituições e capacidades que determinam a identificação e reconhecimento de riscos em determinados contextos (por exemplo, dentro de Estados-nação, mas também nas relações entre eles). Elas formam a matriz jurídica, epistemológica e cultural de poder na qual a política de risco se organiza” – cfr. Beck, Ulrich, 2016, ob. cit., pp.70-71, numa analogia com a teorização marxista das relações de produção para a sociedade capitalista. Nesta sociedade do risco e da emergência passa a ser o especialista, o cientista ou o perito (ou um colégio desses especialistas) que traduzem os prognósticos e o cálculo dos riscos para as decisões de governação, numa linha que inclui a ponderação sobre a imposição ou a extensão das limitações e condicionamentos de grande repercussão jurídica, social e económica, incluindo nos direitos fundamentais dos cidadãos.

[31] A propósito de vários tópicos, como a  arquitetura sistémica da sociedade – Luhmann, Niklas, 1982, “The World Society as a Social System”, in International Journal of General Systems, 8, pp. 131-138 -, a auto-observação e observação alheia ou heterónoma do direito – . Luhmann, Niklas, 1993, “La observación sociológica del derecho”, tradução do título original “Die soziologische Beobachtung des Rechts”, in Würzburger Vorträge zur Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und Rechtssoziologie, de  1986, aqui referenciado em Crítica Jurídica, 12, Homenaje a Renato Treves, México, pp. 73 e ss., o papel atribuído à legislação e à jurisdição – cfr. Luhmann, Niklas, 1985, A Sociological Theory of Law, tradução em inglês do título original Rechtssoziologie, 2.ª edição de 1983, London: Routledge & Kegan Paul, pp. 25-61 -,  a natureza dos procedimentos judiciais – assim, Luhmann, Niklas, 2001, La légitimation par la procédure, tradução do título original Legitimation durch Verfahren de 1969, Canadá: Les Presses de l’Université Laval, pp. 50. -, a definição de organização e a sua relação com a componente decisória – , Luhmann, Niklas, 2018, Organization and Decision, tradução do título original Organisaation und Eutscheidung de 2000, Cambridge/New York: Cambridge University Press, pp. 36. -, o ajustamento estrutural entre a tecnologia e o sistema social – neste ponto, Luhmann, Niklas, 1993, ob. cit., pp. 76-100 – ou o contexto estrutural e programático da decisão judiciária – Luhmann, Niklas, 2001, ob. cit., pp. 126, nota 1. 

[32] Numa referência, muitas vezes expressa no livro, à proposta de Voßkuhle, Andreas, 2012, “Sobre el Método del Derecho Administrativo”, in Javier Barnes (ed.) Innovación y Reforma en el Derecho Administrativo, 2.ª edición, Sevilha: Global Law Press – Editorial Derecho Global, pp. 185-188, que fala, justamente, de uma perspetiva sistemática ampliada propícia a conjugar vários horizontes disciplinares, alargando e ao mesmo tempo relativizando a forma do pensamento jurídico, numa perspetiva orientada à ação e à resolução dos problemas concretos, sem renúncia à identidade própria do direito e das demais disciplinas convocadas.

[33] Assim, Canotilho, Gomes, 2003, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição Coimbra: Almedina, pp. 542.

[34] Um novo direito administrativo salientado, entre outros, por Andrade, José Carlos Vieira de, 2010, Lições de Direito Administrativo, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 25-26, resultado das transformações do direito administrativo clássico operadas pela sua socialização, pelo novo contexto institucional de poder e pelas transformações do jurídico (soft law, policentralidade, economicização do direito, conectividade multi-nível, desmaterialização e digitalização). Com maior evidência na linha de reforma do direito administrativo encetada, entre outros, por Eberhard  Schmidt-Aßman e pelo já identificado Andreas Voßkuhle – cfr. Voßkuhle, Andreas, 2012, ob. cit.; Schmidt-Aßman, Eberhard, 2003, La Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema. Objeto y fundamentos de la construccíon sistemática, tradução do original alemão de 1998 Das Allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungs Idee, Instituto Nacional de Administración Pública, Madrid: Marcial Pons, pp. 3-26, e Cunha, Ricardo Alexandre Sousa da, 2016, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita: O Direito Administrativo Global entre a Constitucionalização e a Fragmentação, Coimbra: Almedina, pp. 434-445.

[35] Fazendo realçar a evolução dos critérios e os meios de controlo da qualidade das decisões judiciais – assim, Frydman, Benoît, 2007, “L’évolution des critères et des modes de contrôle de la qualité des décisions de justice”, in La qualité des décisions de justice, CEPEJ Studies N.º 4, Actes du colloque de Poitiers, 8-9 mars 2007, pp. 18-29.

[36] Assim, em Taruffo, Michele, 2016, “Las Funciones de las Cortes Supremas”, in Michele Taruffo, Luiz Guilherme Marinoni y Daniel Mitidiero (coords.) La misión de los tribunales supremos, Ensaios, Madrid/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo: Marcial Pons, pp. 231-251.

[37] Ao tratar do mapeamento das teorias pós-modernas do direito, utilizava a imagem do delta do rio que se abre para o mar em vários braços de água, necessariamente menos uniforme, mas não menos estimulante em termos de futuro – assim, em Minda, Gary, 1995, Postmodern Legal Movements – Law and Jurisprudence at Century’s End, New York / London: New York University Press, pp. 257.

[38] Gomes Canotilho faz alusão, na doutrina alemã, a um material-verfahrenmässiges Formprinzip – cfr. Canotilho, Gomes,  2003, ob. cit., pp. 243.

[39] Assim, nas referências Tamanaha, Brian Z., 2017, A Realist Theory of Law, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 77-98, e 2021, “Always imperfectly achieved rule of law: Comments on Jeremy Waldron”, in Global Constitutionalism (2021), 10:1, pp. 112.

[40] Como expõe Habermas em “O discurso filosófico da modernidade”, a propósito da sua teoria do agir comunicacional, o saber básico do mundo da vida é submetido a um teste permanente, reagindo tanto relativamente a pretensões de justeza e validade como a pretensões de verdade e eficiência, em que a reprodução simbólica do mesmo mundo da vida corre a par da sua reprodução material, segundo a condicionante de um paradigma sistémico consentâneo com o conteúdo normativo da modernidade – assim, Habermas, Jürgen, 1998, Discurso Filosófico da Modernidade, tradução do original alemão de 1985, Der Philosophische Diskurs der Modern, Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 296-297 e 339. “Mundo da vida” esse que se perspetiva como o conjunto de sentidos gramaticalmente pré-determinado que forma o pano de fundo comum a partir do qual os indivíduos socializados reúnem os recursos necessários para compreender, interpretar e agir sobre o mundo” – Habermas, Jürgen, 1981, The Theory of Communicative Action: Reason and Rationatization of Society, vol. 1, tradução do título original alemão de 1981, Theorie des kommunikativen Handelns, Band 1-2, Cambridge: Policy Press, e 1981a, The Theory of Communicative Action: The critic of Funcionalist Reason, vol. 2, tradução do título original alemão de 1981, Theorie des kommunikativen Handelns,  Band 1-2, Cambridge: Policy Press. (1981 e 1981ª). Na mesma linha, o seu texto “Tendências da Juridicização”, extraído do tomo 2 da sua “Teoria da Acção Comunicativa”, publicado em tradução portuguesa na revista “Sociologia – Problemas e Práticas”, aqui referenciado como Habermas, Jürgen, 1987, “Tendências da Juridicização”, Sociologia – Problemas e Práticas, n.º 2, 185-204. No reconhecimento do direito enquanto parte integrante desse agir comunicativo, consulte-se, ainda, 1997, Droit et Démocratie – Entre faits et normes, tradução do original alemão de 1992, Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des Demokratischen Rechtsstaats, Paris: Gallimard.

[41] O organista, para além da normal interpretação da peça musical inscrita em partitura, ainda assim com todas as suas opções de dinâmica interpretativa, terá de escolher e ajustar os seus registos, timbres, volumes, intensidades, opções de utilização, técnicas de dedilhado, além de outros pormenores relativos ao desempenho do próprio mecanismo (ou sistema) sonoro ali em presença (organum), de acordo com os aspetos oferecidos pela própria estrutura do órgão em presença (mais ou menos imponente, sofisticado ou apetrechado, de acordo com a sua maior ou menor modernidade e tecnologia correspondente), que é sempre diferenciada pela sua adaptação e integração ao local em presença, também este composto dos seus próprios condicionamentos acústicos.  

[42] As condições de possibilidade da jurisdição, segundo o que agora se conclui, não podem deixar de tocar e influenciar a essência desta última, como realidade construída e emergente da vida institucional e social, numa interpenetração entre o contexto do mundo da vida e os sentidos axiológicos e dogmáticos do direito (de novo, Habermas).

[43] Seguir os passos de uma entrevista notável que é  também o retrato de um organista primoroso, em https://www.youtube.com/watch?v=cVrzrSwIGtE&t=9s.