Filipa Baeta

Advogada, exercendo a sua atividade essencialmente na área de Contencioso Penal e Contraordenacional.

Licenciada e Mestre em em Direito e Ciência Jurídica – Especialidade de Direito Administrativo, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


Os Princípios de Atuação da Administração Pública Sancionatória – A Fase Administrativa do Processo Contraordenacional é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a partir de 23 de Maio de 2024.

Consulte a obra neste link.


Com a entrada em funções do novo Governo, aguarda-se que se inicie uma discussão tendente a levar a cabo uma revisão do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), nomeadamente harmonizando os regimes contraordenacionais setoriais. A intenção de o fazer foi, aliás, um compromisso deixado no Programa Eleitoral da Aliança Democrática[1], sufragado nas urnas e, por isso, agora a pôr em prática.

Na realidade, o repto de profunda revisão deste Regime – e, na verdade, de todo o edifício do Direito das Contraordenações – não é novo, e vem sendo deixado pela doutrina há demasiado tempo.

Contudo, seja por dificuldades dogmáticas, seja por falta de vontade política, certo é que há mais de 20 anos que o RGCO não é alvo de revisão[2].

Entretanto, nestas duas décadas que passaram, o paradigma sancionatório mudou radicalmente. O Direito contraordenacional encontra-se hoje disperso por todos os setores de atividade, cobrindo todas as realidades da vida empresarial. A isto não é alheia, naturalmente, a necessidade, na sociedade contemporânea, de regulação e orientação de comportamentos de acordo com regras técnicas de setores cada vez mais complexos e especializados, e o aparecimento e desenvolvimento das entidades administrativas independentes com funções de regulação e supervisão. Proliferam, assim, na legislação, os tipos contraordenacionais, sancionados, em determinados domínios (sobretudo, os da regulação económica e financeira), com coimas de valor elevadíssimo, e com sanções acessórias fortemente restritivas dos direitos fundamentais dos arguidos.

Definitivamente, o Direito Contraordenacional perdeu a sua (suposta) natureza bagatelar.

Esta evolução não teve, porém, o devido acompanhamento da legislação geral. Na verdade, foram proliferando numerosos diplomas setoriais ou especiais entretanto aprovados, em particular no domínio das chamadas “grandes contraordenações[3]. Falamos, por exemplo, dos regimes sancionatórios previstos no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, no Código dos Valores Mobiliários e no Novo Regime Jurídico da Concorrência, bem como do Regime Quadro das Contraordenações do Setor das Comunicações e do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas. Sendo certo que a disciplina estabelecida em cada um destes regimes setoriais acaba por conceder-lhes uma certa vocação geral, tal é o nível de regulação (por vezes, de forma repetitiva relativamente ao regime geral), e tais são as especificidades aí estabelecidas (por referência, não só ao RGCO, como a outros regimes setoriais do mesmo género), desde logo, ao nível da tramitação processual e dos poderes atribuídos a determinadas autoridades administrativas.

Esta fragmentariedade torna o processo contraordenacional palco de numerosas discussões jurisprudenciais e doutrinárias, dificuldades práticas e incertezas de regime.

A revisão anunciada, é, por isto, essencial.

Mas não será, certamente, tarefa fácil. Desde logo, porque, embora a matéria contraordenacional esteja, em parte, subtraída à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, a matéria em questão não o está. Com efeito, a matéria relativa ao regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo terá de ser feita através de lei ou decreto-lei autorizado, não podendo o governo legislar de forma completamente autónoma sobre a matéria.

Nesta medida, exigir-se-á um esforço de obtenção de consenso político alargado nesta matéria, que não sendo naturalmente fácil, será certamente proveitoso para uma revisão profunda e coerente do Regime.

Mas não só por isso se requer um consenso alargado. Na verdade, esta matéria importa-nos a todos, seja porque estamos no domínio sancionatório contraordenacional, que, atualmente, adentra em todos os domínios económicos e sociais, seja porque os operadores jurídicos, tal como os cidadãos, necessitam da clareza e certeza jurídica que há muito escasseia nesta matéria (se é que alguma vez existiu).

Entende-se que uma revisão do RGCO – ou mesmo a aprovação de um verdadeiro Código das Contraordenações – deve, em primeiro lugar, garantir que a sua regulação seja suficientemente abrangente para abarcar, no seu seio, todo o tipo de processos contraordenacionais (independentemente do setor em causa ou da autoridade administrativa competente para a respetiva tramitação), sem prejuízo da existência de regras especiais previstas em regimes contraordenacionais setoriais. A revisão do RGCO deve, assim, garantir que este tenha uma verdadeira vocação geral, e não que permaneça um instrumento sempre pronto a ser substituído pelos diversos regimes setoriais existentes, perdendo qualquer aplicabilidade prática quando em confronto com estes.

Por outro lado, devem ser consagrados, de forma explícita e inequívoca, os direitos e as garantias dos arguidos em processo contraordenacional, espelhando o labor da jurisprudência e da doutrina nesta matéria, clarificando-se, de uma vez por todas, as regras e princípios aplicáveis, a partir dos comandos constitucionais estabelecidos para o Direito sancionatório público e para a atuação administrativa.

Em concreto, e sem pretensões de exaustão, seria útil, desde logo, clarificar os termos e os limites da aplicação subsidiária, no âmbito do processo contraordenacional, das normas do Código Penal e do Código de Processo Penal. Assim, resolver-se-iam algumas das questões mais discutidas na aplicação prática do regime, como seja a do regime das invalidades dos atos e decisões contraordenacionais ou a dos meios de obtenção de prova admissíveis. Falta ainda no atual regime – e crê-se ser necessária – a densificação do regime dos recursos das medidas administrativas, no decurso da fase administrativa, e dos termos da intervenção do juiz de instrução criminal nessa fase.

Quanto ao julgamento das contraordenações pelos tribunais – i.e., a chamada “fase judicial” do processo – impõe-se igualmente a densificação e clarificação das normas sobre a audiência de julgamento em primeira instância, harmonizando-se os poderes processuais das autoridades administrativas nessa sede, e revogando-se, de uma vez por todas, a caduca e obsoleta norma que determina a aplicação a tal audiência das normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, e que impede a redução da prova a escrito.

Ainda quanto à fase judicial do processo, é premente refletir de forma integrada na matéria dos recursos para o Tribunal da Relação das decisões de primeira instância, e, em particular, quanto ao recurso da matéria de facto. Não sendo ainda despiciendo equacionar o estabelecimento de um terceiro grau de jurisdição no caso de aplicação de coimas a partir de determinado valor.

São apenas alguns exemplos de matérias que têm ocupado a discussão doutrinária e jurisprudencial e que exigem uma profunda reflexão, com vista a obter um necessário consenso que permita uma revisão do RGCO que garanta uma regulação abrangente e coerente aplicável a todos os tipos de processos contraordenacionais, sem prejuízo da existência de regras especiais setoriais.


[1] Cfr. Programa Eleitoral da Aliança Democrática 2024 – “Mudança Segura”.

[2] A última alteração a este Regime decorre do Decreto-Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro.

[3] Aquelas que teriam mais gravidade, seja ao nível das condutas em causa, seja ao nível das respetivas sanções. Sobre a matéria, cfr. Frederico da Costa Pinto, “As codificações sectoriais e o papel das contra-ordenações no direito penal secundário”, Themis, ano III, n.º 5, 2002 (pp. 87-100); Nuno Brandão, “Por um sistema contra-ordenacional a diferentes velocidades”, Scientia Iuridica, Tomo LXVI, n.º 344, maio/agosto 2017 (pp. 277-288); e Cristina Líbano Monteiro, “Natureza e equívocos da sanção contra-ordenacional”, Revista do Ministério Público, Vol. 39, n.º 155, julho/setembro 2018 (pp. 97-107).