Paulo Simões Ramos

Advogado.
Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investigador Colaborador do Lisbon Public Law Research Centre e autor de diversas publicações científicas na área do Direito Público.


O Direito de Proteção Consular no Direito Administrativo da União – Contributo para a Análise da Dimensão Jurídico-administrativa da Cidadania Europeia é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado desde 18 de Abril de 2024.

Consulte a obra neste link.


A proteção consular de cidadãos europeus em Estados terceiros à União é um direito que encontra respaldo na alínea c) do n.º 2 do artigo 20.º e no artigo 23.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia («TFUE»), bem como no artigo 46.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia («CDFUE»), cujo conteúdo normativo se limita a replicar o que já consta do Tratado. Em essência, este direito consiste na possibilidade de os cidadãos europeus presentes em Estados terceiros à União Europeia nos quais o seu próprio país não tenha representação diplomática ou consular recorrerem às missões homólogas de outros Estados-Membros para obter essa proteção, assim evitando sujeitá-los a uma situação de total dependência das autoridades nacionais do Estado terceiro e à capacidade de resposta dos canais diplomáticos do Estado de que são nacionais, que teriam de encetar contactos no sentido de assegurar aquela proteção por intermédio das redes consulares de outros Estados com os quais tenha celebrado acordos de cooperação em matéria consular.

Este direito está hoje sobejamente consolidado na ordem jurídica comunitária, particularmente desde a aprovação da Diretiva (UE) 2015/637 do Conselho, que aprovou as primeiras medidas de coordenação e cooperação para facilitar a proteção consular de cidadãos da União não representados em países terceiros, na sequência do processo legislativo especial previsto na parte final do artigo 23.º do TFUE. A Diretiva prevê um acervo de medidas de coordenação e cooperação entre os Estados-Membros e a União Europeia, designadamente através das delegações da União, enquanto longa manus da União, cuja tarefa fundamental é assistirem os Estados-Membros na execução das suas competências em matéria de proteção consular, como prescreve o artigo 221.º do TFUE.

Contudo, nem sempre foi assim. O direito de proteção consular foi durante muitos anos – particularmente nos tempos que se seguiram à sua positivação no Tratado de Maastricht, em 1993 -, o “parente pobre” dos direitos dos cidadãos europeus, não se lhe conhecendo grandes desenvolvimentos até à aprovação da Diretiva. Em bom rigor, foram aprovadas duas decisões de caráter intergovernamental pós-Maastricht: uma em 1995 – a Decisão 95/553/CE – que estabeleceu algumas medidas de articulação entre os Estados-Membros em matéria de proteção consular, e outra em 1996 – a Decisão 96/409/PESC, que criou um título de viagem provisório para os cidadãos europeus não representados em Estados terceiros. Estas medidas foram, durante duas décadas, o único sustentáculo jurídico da proteção consular de cidadãos europeus – demonstrativo, portanto, da falta de interesse dos Estados-Membros na criação de uma rede consular mais interligada, o que se devia sobretudo a alguma apreensão por parte de Estados-Membros com canais consulares consolidados, que viam nessa integração uma entropia adicional às dificuldades que já experienciavam com as carências financeiras associadas, sobretudo, aos cortes orçamentais na gestão dessas redes.

A aprovação da Diretiva, em 2015, permitiu aos Estados-Membros reforçarem a sua cooperação administrativa em matéria consular, passando a contar com um instrumento jurídico vinculativo mais musculado para darem corpo ao direito previsto no TFUE e na CDFUE. As capacidades edificadas pelos Estados-Membros através da transposição da Diretiva tiveram o seu batismo de fogo em 2020, com o surgimento da crise pandémica da COVID-19. Embora o resultado final tenha sido francamente positivo, na medida em que foi possível repatriar dezenas de milhares de cidadãos europeus presos em Estados terceiros à União, os primeiros momentos, marcados por alguma desarticulação entre os Estados-Membros e pela priorização dada pelos mesmos à evacuação dos seus próprios nacionais em detrimento dos nacionais de outros Estados-Membros, demonstraram que a Diretiva padecia de algumas lacunas conceptuais e estruturais cuja correção seria indispensável à operacionalização e resiliência dos mecanismos de proteção consular. Esses mecanismos dependem largamente da cooperação administrativa multinível que se estabelece entre as administrações nacionais dos Estados-Membros e a administração da União, fundadas num conjunto de princípios norteadores da atividade administrativa, destacando-se, entre eles, o princípio da cooperação leal com a União Europeia, previsto no n.º 3 do artigo 4.º do Tratado da União Europeia («TUE») e essencial para a concretização das competências de apoio atribuídas à União nos termos da alínea g) do artigo 6.º do TFUE.

Tendo-se iniciado os trabalhos de revisão da Diretiva no final de 2023, integradas no Pacote de Cidadania aprovado por ocasião do 30.º aniversário do Tratado de Maastricht, espera-se que a cooperação administrativa entre a União e as administrações nacionais dos Estados-Membros seja progressivamente robustecida, incrementando a capacidade de resposta da União pela integração gradual dos canais consulares. O desafio é grande e encontrará decerto alguma resistência da parte dos Estados-Membros, que poderão ver no reforço do papel das delegações da União – patente da proposta de alteração da Diretiva apresentada pela Comissão – uma tentativa de ingerência naquilo que, tradicionalmente, é território normativo soberano dos Estados. Em todo o caso, é inegável que, embora tenha conhecido o seu potencial normativo bastante tarde, o direito de proteção consular dos cidadãos europeus não representados desempenhará um papel crucial na afirmação política da União fora do seu espaço geográfico e constituirá um marco incontornável no avigoramento da identidade europeia entre os seus cidadãos.