Nádia Alberto
Jurista, especialista em temas relacionados à transição ambiental e digital.
Algoritmos e Big Data a partir do Sistema de Justiça Criminal Português – Contributos para uma Justiça Automatizada é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a partir de 22 de Fevereiro de 2024.
À guisa de pórtico, os dourados anos do século XX, centenário berço da consolidação da democracia e da globalização, foram premeditativos do amanhecer do vanguardismo tecnológico com que a hodierna Era da Informação nos brindou. Qual filamento orientador do pensamento jurídico, a Filosofia estuda o Direito como um “contínuo problematicamente constituendo”1, abrindo caminho a que toda a ação jurídica convoque profusos elementos humanos, sociais e científicos, numa união de esforços destinada a reforçar os firmamentos do edifício jurídico. Esta compreensão fez emergir um dos campos que mais instiga os pensadores da atualidade: o da aplicabilidade da Inteligência Artificial (doravante, «IA») na praxis jurídica, mormente no processo judicativo-decisório. É um patamar – saliente-se – há muito conquistado já não no ermo teorético das especulações filosóficas, mas no local palpável da experimentação empírica.
De um enfoque prospetivo, à medida da evolução da IA, irão também progredir o Big Data, a computação quântica e os métodos neurocientíficos, daí que, embora os seus resultados sejam tecnicamente desafiadores, não deixem também de oferecer magníficas oportunidades, na medida em que configuram uma oportunidade única de obter conhecimentos acerca de uma numerosa e emergente tipologia de dados, e uma forma de responder a perguntas que, no passado, estavam completamente fora do alcance da Ciência e da imaginação. Com efeito, estamos neste preciso instante a beneficiar dos seus incomensuráveis proventos para a Humanidade, podendo-se apontar, entre eles, a cura de doenças raras, o controlo de infeções com alta probabilidade epidémica, a previsão de incêndios, a observação da inflação em tempo real, a monitorização das redes sociais e a antecipação do melhor momento para adquirir um bilhete de avião2. Last but not the least, a IA é hoje considerada o verdadeiro veículo daquilo a que a doutrina designa como “justiça antecipatória”, sendo por muitos considerada um instrumento idóneo de prevenção criminológica3, havendo também recentemente granjeado o resultado das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com um grau de precisão de setenta e nove pontos percentuais4. É, sem margem para dúvidas, pungente e inelutável esta urdidura entre Direito e Inteligência Artificial, na qual uma se imiscui no outro numa relação recíproca e colaboracionista.
Todavia, para prosseguirmos este nosso estudo, necessário se torna contextualizar um ponto preliminar histórico-metodológico: qual obra inacabada, o Direito mudou. In veritas, enfrenta-se hoje uma crise institucional, que clama afincadamente por uma «reforma», na senda de um equilíbrio entre as suas estruturas e a constante metamorfose das circunstâncias sociais, pelo que primordial se mostra meditar sobre o estado das coisas que se impõe5. Pari passu com os prodigiosos desenvolvimentos tecnológicos, o século XX registou o instante a partir do qual se inaugurou a crise da atividade judiciária, porquanto os pilares institutivos do século XIX, firmados no Positivismo Jurídico, perderam o seu dinamismo e eficácia, constatando-se ser um modelo alheio à realidade efetivamente vivida6. O século transato, aquando dos flagelos advindos da II Guerra Mundial, voltou-se para a ponderação de questões que ultrapassam o enfoque normativo e a atividade do legislador, típico brocardo do Positivismo Jurídico novecentista, vindo-se a admitir que as doutrinas e teorias formais e sistemáticas eram utópicas, na medida em que o Direito e a Lei não se bastam per si, devendo apoiar-se nas demais erudições que vivem fora da sua esfera e que enriquecem todo o seu edifício. Por outras palavras, indagou alcançar uma consciência mais humanista para o Direito. Ora, jamais nos poderíamos atrever a contestar a importância e a necessidade do apelo judiciário aos parâmetros assentes nas tradicionais fontes normativas de Direito, nem o recurso a elementos da interpretação para desses parâmetros retirar sentidos que se querem racionais. Todavia, “[q]uanto desse sentido não exorbita largamente daquele que é proporcionado pelo recurso a esses elementos? E quanto da (inconfessada) fundamentação e da justificação que é dada pelos doutos magistrados nas decisões que proferem não exorbita também largamente do magro conspecto desse leque de fontes formalmente institucionalizadas?7” Dito de outro modo, logrará uma abstração chamada «lei» moldar a vida e o comportamento da sociedade ou ditar sempre o resultado de cada caso, mesmo que as caraterísticas pessoais do Julgador impendam para uma decisão distinta?8
É nesta incerteza que sobremodo se legitimam os esforços levados a cabo para a aplicação da IA ao Direito. Hodiernamente, de facto, debatem-se amiúde questões relativas à “justiça automatizada” e ao “juiz autómato” e nas vantagens para a sua celeridade9, e, como bem se poderá depreender, para a sua neutralidade, segurança e certeza. Tais suposições advêm da viabilidade de comutação de determinadas ações do intelecto humano, de caráter técnico-jurídico, por modelos tecnológicos inteligentes, utentes de uma logicae comum: o algoritmo de base, cuja fórmula de cálculo corresponde a sequencializações de normas jurídicas, coincide determinados padrões comportamentais a estas últimas, atribuindo silogisticamente o correlato resultado/decisão10.
A partir deste raciocínio podemos facilmente cotejar diversos pontos positivos da IA enquanto instrumento auxiliar do jurista, que vão desde os atos administrativos comuns, à pesquisa de situações jurídicas semelhantes pelo advogado11, até ao seu uso, apesar de ainda muito discutido, enquanto mero instrumento analítico de apoio à decisão judicial12. Porém, se bem que numa investigação inicial se haja considerado que nesta tipologia de procedimentos não haveria graves questões a sindicar na utilização de IA, nomeadamente quando apenas estivessem em causa aspetos de natureza rotineira e padronizada13, os quais envolvessem a aplicação direta de regras claras a factos incontroversos, vários estudos contemporâneos comprovaram que um algoritmo que subsuma comportamentos a sequências de regras jurídicas está impossibilitado de modelar, com precisão, uma sentença, porquanto o poder judiciário tem por tarefa produzir soluções que sejam racionais e justas, precisamente naqueles casos em que os factos, as regras, ou a forma como se interligam, são controversos14. De facto, e conforme se constatará, o processo de tomada de decisão judicial é demasiado complexo, multifacetado e valorativo para que possa ser reconduzido a um modelo lógico15.
Ora, vejamos: o julgador tem a obrigação de julgar de acordo com um determinado ordenamento jurídico, de acordo com uma racionalidade ética e sistemática que, além de legitimar a sua atuação, lhe confere o necessário grau de autoridade; porém, “uma decisão judicial, cuja construção e justificação podem, à primeira vista, parecer inelutáveis, conduzindo a um único resultado possível, pode ser exposta como parcial, uma escolha narrativa entre diversas outras, produto de uma perspectiva, de circunstâncias ou de molduras interpretativas”16. É cabal notar, desde logo, que o procedimento judicativo-decisório, composto pela dicotomia juiz-sentença, não se compõe somente de aspetos normativos e lógico-formais, mas também de um vasto conjunto de elementos subjetivos, pelo que tudo isto passa talqualmente por convocar uma perspetiva humana e individual da sentença enquanto aquisição factual necessariamente racionalizada17. Aliás, e como veremos, a convocação da existência desta subjetividade, ancorada nos saberes extrajurídicos, é uma forte premissa de repúdio de um modelo estritamente normativista18.
Nesta senda, e de um primevo enfoque epistemológico e metodológico – para o qual muito contribuíram a Filosofia, a Neurociência, a Biologia, a Psicologia e a Sociologia -, pondere-se, por um lado, que há, em Tribunal, histórias antagónicas em rivalidade, e cujos factos se reportam a uma realidade passada e na qual a verdade factual já não está presente. Ora, se os factos falassem, bastaria reproduzi-los em juízo; porém, sucede que os factos são «mudos» e isto obriga a que, para que possam ser «ouvidos» processualmente, se devam reconstruir como uma narração19. E quando falamos em histórias em competição, tendo um juíz-árbitro a obrigação de optar pela versão que o convencer, falamos no seu efeito persuasivo e no facto de se imiscuirem com crenças, valores e ideologias da sociedade em questão e permitirem a generalização do significado das relações entre acontecimentos20. O contador dessas histórias não deixa, portanto, de ser um narrador21, o que acrescenta outro problema, na medida em que essa narração é também ela fruto de um preenchimento lógico de lacunas levado a cabo pela mente, e que, com toda a probabilidade, não corresponde a um retrato fiel à realidade22. Ora, toda esta factualidade narrativa reverbera-se num receptor subjetivo – seja um Julgador, seja um perito -, que está a reconstituir plasticamente um momento que não é captado em toda a sua plenitude23. O juiz, como ser humano que é, quadradamente cercado pelas suas crenças e referências, e perante a omissão de todos estes elementos de facto, socorre-se de heurísticas, também elas atalhos mentais cujo destino é preencher vazios cognitivos24. O processo mental de decisão, por sua vez, fornece-nos pistas interessantíssimas quanto a esta parte: no tocante à perceção das ações humanas na tomada de decisão, sabemos hoje que não é possível à estrutura cerebral humana tomar uma decisão sem uma perfeita interdependência entre razão, emoção e organismo, encontrando-se inelutavelmente envolvidos emoções e sentimentos na gestão do sistema neurológico. Veritas, e no trilho dos estudos do neuropsiquiatra António Damásio, no processo de tomada de uma decisão, o indivíduo convoca toda a sua estrutura neuronal, apelando não só à razão, como também às emoções. Daí ao facto de admitirmos que o juiz decide com todo o seu “eu” – repescando na sua base de dados neuronal os veículos necessários para conjeturar sobre as premissas de uma determinada situação -, é um passo, pelo que não é possível tomar decisões – sejam pessoais, sejam judiciais – livres de estímulos emocionais25. É, portanto, evidente que ao ato de julgar – além de resultar, por obviedade, de ilações com base nos conhecimentos técnicos logrados no contexto da formação académica – são imprimidas, com mais ou menos intensidade, as convicções, ideologias e a própria mundividência do Julgador – toda uma urdidura manifestante das suas emoções e dos seus sentimentos, os quais são apelados aquando da presença de qualquer factualidade sobre a qual seja imperioso julgar e decidir. Ou seja, neste aspeto tão humano e tão próprio da demanda judicial, o juiz decide enquanto técnico do Direito, não deixando de aplicar as referências a que está obrigado pelo próprio sistema judiciário em que se inclui, mas também enquanto homem, como pessoa humana, moral e social que é. É, portanto, inelutável que ainda que o modelo processual da atualidade assente numa ideia de procura da verdade, contém apenas uma narração dos factos e não os factos propriamente ditos, sendo, para além do mais, um modelo humano, pelo que é irremediavelmente contaminada a sentença judicial pelas suas diversas origens e intenções26.
Em segundo lugar, e contemplando-se a perspetiva metodológica por um prisma hermenêutico, é relevante que se chame à colação um outro tópico, e que diz respeito à vicissitude da própria linguagem jurídica ser um obstáculo à aplicação destas funcionalidades ao processo judicativo-decisório. Veritas, o vocabulário jurídico, não deixando de ser o mesmo que é empregue na linguagem corrente, assume acepções distintas quando operado no discurso jurídico27, ao que acresce o facto de a linguagem jurídica ser “reflexo de uma específica cultura, dotada de muitos específicos interesses e finalidades”, entre os quais a preservação da ordem jurídica, a partir da “prevenção e resolução de conflitos e altercações sociais”28. Dito de outro modo, a verbis legis, progenitora da indeterminação normativa, representa a derradeira constatação de que a própria sociedade é complexa; porém, opera também em seu amparo, no fito de responder aos constantes desafios que a mesma impõe ao Direito. Não obstante as nominadas técnicas de “processamento de linguagem natural” (vulgo, «PNL») haverem avançado enormemente nos últimos anos, possibilitando a “sistemas especialistas” inteligentes reconhecer, com um razoável grau de precisão, o conteúdo e o significado das questões colocadas pelo operador, a linguagem jurídica tem por correlato a imprecisão e ambiguidade do texto jurídico, o que bloqueia sobremaneira a compreensão das questões propostas a qualquer destinatário29. Por este ponto de vista, se o que se almeja no seio da comunidade – social e científica – é uma maior uniformidade e segurança, restam-nos dúvidas quanto ao sucesso da implementação destes ditos sistemas inteligentes, pois não serão também os mesmos a conquistar esse pódio, perante a elevada possibilidade de uma incorreta interpretação factual e normativa.
De uma perspetiva jusfundamentalista, é crucial assegurar o princípio da igualdade e o princípio da não discriminação aquando da confrontação dos factos com as previsões de IA30. Com efeito, a «justiça automatizada» não se serve apenas desta tecnologia de uma forma antecipatória: previne tanto o surgimento de novas infrações quanto a repetição de factos ilícitos por um infrator reincidente. Ou seja, pode o recurso a tecnologias inteligentes talqualmente ser usufruído a posteriori no processo (penal), a partir da aplicação de softwares de avaliação de risco a uma dada situação concreta e particular – desde a tomada de decisão de condenação a pena de prisão à supervisão pós-libertação de um criminoso. Ora, tais ferramentas seguem, regra geral, um iter comum: analisam-se dados históricos relativos a taxas de reincidência de amostras de criminosos, o que permite determinar quais os fatores que estão estatisticamente relacionados com a reincidência, sendo que as características apontadas que estão mais comummente associadas à repetição da prática criminosa incluem a idade da pessoa no primeiro crime cometido, a vivência de um passado violento e a sua estabilidade familiar. Estes e outros fatores preditivos – tais como o género, a raça e a classe social – são posteriormente incorporados num algoritmo estatístico que pesa mais fortemente uns fatores em relação a outros. De seguida, a ferramenta categoriza os resultados de acordo com a pontuação total obtida – risco baixo, moderado e alto –, o que oferece uma forma atrativa de extremar os presumíveis infratores e que tende a significar uma punição mais severa para aqueles que representem um maior risco de reincidência31. Isto, como bem se poderá imaginar, levanta uma panóplia de graves questões, e confirma, de forma implacável, a presunção de que o julgamento humano é um ímpar “eufemismo para a arbitrariedade, discricionariedade e preconceito”32. Aplicada no plano do processo penal, esta evolução tecnológica é assim recebida com opiniões paradoxais: se, de um lado, surge sedutora a ideia de utilizar a IA para a prevenção e avaliação do risco criminal, do outro, todo este cenário coloca questões muito discutíveis às autoridades de cada Estado no fomento do bem-estar coletivo, uma vez que são necessárias não apenas formas muito mais sofisticadas ao nível tecnológico no alcance da Justiça, como muito mais invasivas e potencialmente suscetíveis de afetar esferas de direitos de indivíduos, fronteiras intransponíveis para o Estado, e que poderão restringir tragicamente a função da privacidade33, não apenas ao nível do livre desenvolvimento da personalidade individual, como também ao nível da manutenção de uma democracia viva. De facto, poder-se-á correr o risco de a realidade retratada por Philip K. Dick, em Minority Report, corresponder àquela para a qual tendemos atualmente34: a sensação de que a vida privada é constantemente controlada graças ao acesso e à conservação dos dados, o que abre portas a uma vigilância em massa por parte das autoridades – e, de todo o modo, ao chilling effect.
Destarte, adentrando por um plano axiológico concreto, mais fundo, mais do que uma escolha tecnológica, a decisão de utilização de IA no processo judicativo-decisório deve considerar, prioritariamente, valores éticos35. E isto, no essencial, pelas seguintes razões. Uma questão bastante divulgada por autores da atualidade enquanto premissa para a falência do juiz autómato é o facto de este ainda não estar apto a resolver problemas para os quais não foi pré-determinado ou programado de antemão: o designado problema da anomia ou da falta de precedentes36 – vide, quando deparada com a ausência de um acervo de dados de suporte, a “Máquina” é incapaz de solucionar uma questão não anteriormente contemplada pelo sistema. Contudo, as mais recentes inovações em «machine learning» ultrapassaram este impasse: há agentes de IA autónomos que já vêem a luz do dia e que já tomam decisões sem o recurso a qualquer programação prévia37. Desta sorte, e pressagiando que tais conquistas chegarão ao campo da Iustitia, assombram-nos múltiplas questões, entre elas a de saber, por exemplo, se e como poderá um sistema deste tipo ser responsabilizado pelas suas decisões, ou se, ao invés, beneficiará das prerrogativas especiais de um magistrado. Por esta ordem de ideias, estaríamos a outorgar a uma entidade não humana uma ampla margem de discricionariedade, não levando em linha de conta, a título exemplificativo, a questão da sua aceitação por parte do(s) destinatário(s) da decisão38. Por um outro prisma, se uma decisão judicial, que se pretende como um “veículo do verdadeiro império do Direito”, não pode deixar de ser correta e justa39, como poderão ser incorporados valores humanos num robô? Aliás, e filosoficamente falando, existe algum padrão lógico-normativizado de ética? Poderá vir a existir? Será possível construir robôs “angelicais” que só ambicionem alcançar o bem? E, afinal, o que é o bem? 40
São profusas as razões que diminuem a possibilidade de aplicabilidade da IA no campo judiciário, tornando discutível a validade e a utilidade prática dos seus resultados; porém, a eventualidade de a IA vir a influenciar a forma como o Direito é hoje visto não abafa os desassossegos epistémicos que a sua utilização descomedida convoca. De facto, é axiomático o risco de os resultados deste tipo de tecnologia virem a ser elevados a critério decisivo de verdade, sobrevalorizando-se os resultados produzidos, e colocando-se o juiz, motu proprio, numa condição subordinada aos achados. Inversamente, poderá mesmo acabar por rejeitar o patrocínio desta tecnologia, o que não deixaria de propiciar uma comunicação divergente entre o domínio jurídico e os restantes saberes41.
Toda esta dinâmica e imensidão de conceções e juízos a ter em conta no momento da prática decisória leva-nos a constatar a única causa utópica neste panorama: a ambição de se encontrar uma única resposta no ordenamento jurídico. É impossível alcançar uma solução justa, do ponto de vista axiológico, se nos alhearmos da concernente conjuntura. Para tal, o Julgador tem um labor para lá da norma jurídica – é a chamada «aplicação do direito no momento da aplicação da norma», que corresponde à passagem do direito da norma para o direito do caso42. “Mas essa é, afinal, a natureza própria do Direito, só adquirindo verdadeira densidade normativa, ética e significativa no momento em que é chamado a cumprir as suas concretas intenções. E não passarão essas por um sentido último de justiça jurídica?”
Deste modo, e na senda de ir ao encontro de soluções justas nas incertezas da Justiça contemporânea, a Lei não pode consubstanciar o único parâmetro de decisão na tarefa da jurisprudência e da doutrina – enquanto catarse do pensamento jurídico -,
pois ela não basta ao Direito. Nessa medida, o Julgador poderá fundamentar-se racional e eticamente por recurso a uma “mediação hermenêutica-principialista”, nas palavras de Joana Aguiar e Silva, justificando-se em “parâmetros normativos trans- legais, esses sim verdadeiramente constitutivos do direito”, “[p]arâmetros que – identificados com um determinado conjunto de ideias, valores, princípios e aspirações (e que passam pelas noções de humanidade, justiça, dignidade, proporcionalidade, equidade, solidariedade, etc., que subjazem a uma dada imagem do direito) – constituem, no fundo, a própria instância de legitimação última a que obedecem os conteúdos dos comandos imperativos da lei, transcendendo em si mesmos aquela estrutura normativa positivada. São estes parâmetros que conferem razão de ser a esses comandos oficialmente consagrados, e que conferem validade, racionalidade e autoridade, em última análise, às soluções jurídicas encontradas”. Sendo esta “uma ideia que se projeta num conjunto de princípios fundamentais, de referências normativas, de parâmetros axiológicos, que carecem muito frequentemente de concreta expressão positiva nas diversas fontes em sentido técnico-jurídico”, não serão a razão, a emoção e o próprio organismo – ou seja, os caros sentidos do ser humano – os verdadeiros percetores de tais referências abstratas? A par dos valores, poderão os sentidos humanos vir a ser inculcados a robôs? Esta é uma questão, entre tantas outras, ainda sem resposta científica43.
Os dados estão lançados. Pusemos em evidência que o Direito é de natureza humana, pelo que a sentença, na sua qualidade de baluarte e autêntico ato de comunicação da atividade judiciária, emanada pela pessoa do juiz, é algo natural e perfeitamente humano e não pode ser rendida pela IA. É incontestável, portanto, que o papel do Julgador é insubstituível pelo formato tecnológico, porquanto é até melindrosa, pelos argumentos expostos, uma perceção contrária. Tal significaria, por um lado, o renascimento do Positivismo Jurídico que o pensamento da atualidade muito sensatamente tende, como vimos, a rejeitar, e, por outro, é axiomático que a ausência de consciência não permite a uma Máquina enxergar a multiplicidade de circunstâncias do comportamento humano.
Não deixamos de admitir, contudo, que o neutralismo do Julgador é ilusório, porquanto o mesmo nunca existiu enquanto mero aplicador da lei, distante das partes e da sociedade. Ninguém está apto a julgar uma demanda judicial, qualquer que esta seja, apartado do ser que é. O juiz julga – e deve julgar – com o acervo dos valores da sua própria natureza humana, com base na realização da sua liberdade, enquanto homem que é. Para tal, pondera por entre o seu conceito de justiça, os factos e os valores da sociedade em questão, no fito de ascender a uma sentença que seja substancialmente justa, o que não o impede de decidir de uma forma transformadora, por meio dos seus sentidos e das suas referências abstratas. Nesta senda, “[É] necessário sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”44. De forma refletiva, deverá apartar-se do ser que foi aquando do contacto com os factos, no sentido de não se deixar influenciar por idiossincrasias e externalidades inoportunas – calibrando questões íntrinsecas e emocionais de nem sempre fácil concatenação -, e decidir enquanto ser racional que é. Em boa verdade, o magistrado pode recolher factos sob o efeito da emoção; não pode é decidir sob o seu efeito.
Se, por um lado, a tarefa de fundamentar uma decisão judicial requer uma consciente e acurada extremação, por outro, carece também de um arguto manuseamento dos critérios linguísticos patentes no texto da Lei, sobretudo em termos hermenêuticos, para os quais impera uma necessária revisão dos métodos interpretativos, tendo em conta o hodierno panorama jurídico que renuncia ao alcance de sentenças apenas com recurso a uma trivial relação lógico-dedutiva, assente em princípios genuínos de racionalidade, de subsunção dos factos à norma jurídica45. Por conseguinte, é improtelável a revisão de grande parte do edifício jurídico ensinado nas Faculdades de Direito do ordenamento jurídico português, e a sua adaptação ao cenário que emerge na atualidade, o que passa, sem margem para dúvidas, pela aprovação de um sistema jurídico mais humanista, porquanto as adversidades sociais apelam à legitimação de um protótipo de Julgador mais humano e mais conciliado com a natureza transmutativa da sociedade. Deste modo se atingiria uma mais íntima relação do binómio Justiça-Verdade, não somente no tratamento e tramitação do processo judicial, como talqualmente na decisão a adotar no mesmo.
Perante tudo o que ficou dito, não se procura declinar a necessária presença das tradicionais fontes jurídico-normativas do Direito no processo judicativo-decisório, sem as quais se desaguaria numa anarquia – mas antes, quiçá, suscitar uma reflexão relativa à sua hierarquia. Vivemos num tempo que reclama por uma comunidade jurídica que atente a subjetividade inerente às decisões dos Tribunais, uma vez que é mais do que evidente que um modelo de Justiça que se alicerce em indeterminações normativas e em constantes intervenções legislativas, na busca por uma relativa segurança e certeza, não é o que se deve, por maioria de razão, defender para as infindas mutações que a vida oferece ao Direito.
1 Cfr. NEVES, António Castanheira, Digesta: Escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 39.
2 Cfr., a este respeito, MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor, Big data: a revolution that will transform how we live, work and think. Londres: John Murray, 2013.
3 Cfr. WOOD, Tyler, How Big Data helps to catch criminals. [Consult. 22 set. 2018]. Disponível em https://bit.ly/2KdBVkl.
4 Cfr. MEZA, Daniel, La inteligencia artificial predice juicios de derechos humanos. [Consult. a 22 set. 2018]. Disponível em https://bit.ly/2I5EJkf. Este estudo complementa o que Michele Taruffo extrema entre a impossibilidade de se reduzir o raciocínio do juiz a um modelo lógico computorizado, conforme infra desenvolveremos, e a capacidade, circunstância distinta, de a IA interpretar tal raciocínio. Cfr. TARUFFO, Michele, “Judicial Decisions and Artificial Intelligence”. In Artificial Intelligence and Law. Netherlands: Kluwer Academic Publishers. n.º 6 (1998). p. 317.
5 Cfr. SILVA, Joana Aguiar e, “Tensões hermenêutico-principialistas na construção da decisão judiciária”. In Revista do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários. n.º 1 (2016). p. 295.
6 Cfr. SILVA, Joana Aguiar e, ibid..
7 Cfr. SILVA, Joana Aguiar e, ibid., p. 305.
8 Cfr. D’AMATO, Anthony, “Can/Should Computers Replace Judges”. In Georgia Law Review. Northwestern University School of Law: Faculty Working Papers. n.º 129. (1977). p. 1277.
9 Com o intuito de alcançar o custo de uma total automatização da economia global, Matt Mahoney enuncia uma estimativa comparatística do número de operações que um computador e um cérebro humano estão aptos a realizar por segundo. Cfr. MAHONEY, Matt, “The cost of Artificial Intelligence”. In CURADO, Manuel, GOUVEIA, Steven S., (eds.), Philosophy of Mind: Contemporary Perspectives, Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2017. p. 232.
10 Cfr., a este respeito, SARTOR, G., KARL BRANTING, L., “Introduction: Judicial Applications of Artificial Intelligence”. In Artificial Intelligence and Law. Netherlands: Kluwer Academic Publishers. n.º 6 (1998). pp. 105 a 110.
11 Cfr. MANRIQUE, Jorge, “Breves consideraciones acerca del aterrizaje de la inteligencia artificial en el derecho y sy influencia en la realización de los derechos fundamentales”. In Pensamiento Americano. n.º 110(19) (2017). p. 212.
12 Cfr. TARUFFO, Michele, op. et loc. cit..
13 Cfr. MANRIQUE, Jorge, op. cit., p. 216.
14 Cfr. SARTOR, G., KARL BRANTING, L., op. cit. p. 105.
15 Cfr. TARUFFO, Michele, op. et loc. cit..
16 Cfr. SILVA, Joana Aguiar e, op. cit., p. 300.
17 Cfr. IBÁÑEZ, Perfecto Andrés, “Sobre a formação racional da convicção judicial”. In Revista Julgar. Coimbra: Coimbra Editora. n.º 3 (2011). p. 155.
18 Michele Taruffo, numa abordagem teórica ao «fenómeno empírico» da decisão judicial, enuncia outros fatores influenciadores da tomada de decisões judiciais, nos quais se incluem, a título exemplificativo, a composição, o formato e o tamanho do tribunal, as regras procedimentais, as circunstâncias factuais dos casos, a forma e o conteúdo das regras substantivas que regem o caso, a prova disponível, os métodos usados para decidir os factos de acordo com as provas e os métodos destinados à resolução de questões legais de acordo com as regras e princípios relevantes. Cfr. TARUFFO, Michele, op. cit.. p. 311.
19 Cfr. CALVO GONZÁLEZ, José , “La verdad de la verdad judicial. Construcción y régimen narrativo”. In CALVO GONZÁVEL, José (coord.), Verdade [Narración] Justicia. Málaga: Universidad de Málaga, 1998. p. 10.
20 Cfr. CALHEIROS, Maria Clara, “A prova como experiência interdisciplinar no Direito”. In BORGES, Alexandre Walmott, COELHO, Saulo Pinto (org.), Interconstitucionalidade e Interdisciplinaridade: Desafios, âmbitos e níveis de interação no mundo global. 1.º ed. Uberlândia: Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados PPGD-UFU, 2015. vol. 1. p. 289-291.
21 Cfr. CALHEIROS, Maria Clara, Para uma teoria da prova. – (Estudos CEJUR). Braga: Coimbra Editora, 2015. loc. cit.
22 Vide, no mesmo sentido, PESSOA, Alberto, A Prova Testemunhal (Estudo de Psicologia Judiciária). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1913. p. 44.
23 Cfr. MIRAUT, Laura, “La Sentencia Judicial entre la Recreacíon y la Sustitución de los Hechos”. In Anuario de Filosofia del Derecho. Tomo XVIII (2001). p. 55.
24 Cfr, quanto ao tema, desenvolvidamente, STERNBERG, Robert, Psicologia Cognitiva. 4.ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.
25 Remetemos, desenvolvidamente, para DAMÁSIO, António, O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano. Lisboa: Publicações Europa-América, 1995.
26 Cfr. CALHEIROS, Maria Clara, “Verdade, Prova e Narração”. In Revista do CEJ. 2.º semestre. n.º 10 (2008). p. 290.
27 Cfr. SILVA, Joana Aguiar e, Para uma Teoria Hermenêutica da Justiça. Repercussões Jusliterárias no Eixo Problemático das Fontes e da Interpretação Jurídicas, Coimbra, Almedina, 2011, p. 44.
28 Cfr. ibid., p. 43.
29 Cfr. MANRIQUE, Jorge, op. cit., p. 219.
30 Cfr. MANRIQUE, Jorge, op. cit., p. 221.
31 Cfr. Caso Eric L. Loomis contra State of Wisconsin, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, processo n.º 16-6-6387, de 16 de maio de 2016. [Consult. 22 set. 2018]. Disponível em https://bit.ly/2M80YqZ.
32 Nas palavras de Anthony D’Amato. Cfr. D’AMATO, Anthony, op. cit.. p. 1281.
33 Cfr. MAHONEY, Matt, op. cit., p. 243.
34 Vide, a propósito, LOUREIRO, Flávia Noversa, “A (I)mutabilidade do Paradigma Processual Penal respeitante aos Direitos Fundamentais em pleno séc. XXI”. In Mário Ferreira Monte [et al.] (coord.) – Que Futuro para o Direito Processual Penal? Simposio em Homenagem a Jorge Figueiredo Dias por ocasião dos 20 anos do Código de Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. pp. 269-273.
35 Cfr., quanto a esta temática, COMMONS, House of, Algorithms in Decision-Making. Fourth Report of Session 2017-2019, 2018.
36 Cfr. MANRIQUE, Jorge, op. cit., p. 223.
37 Cfr. DE LUIS, ÁNGEL, Facebook apaga una inteligencia artificial que había inventado su propio idioma. [Consult. 22 set. 2018]. Disponível em https://bit.ly/2v5wCzq.
38 Com efeito, uma importante ilação dos estudos relativos à temática é a de que um desempenho exímio no processo judicativo- decisório não garante a aceitação do destinatário. Cfr., quanto a esta tese, LEITH, Philip, “The Judge and the Computer: How Best ‘Decision Support’?”. In Artificial Intelligence and Law. Netherlands: Kluwer Academic Publishers. n.º 6 (1998). pp. 289-309.
39 Cfr. Silva, Joana Aguiar e, op. cit., p. 306.
40 Cfr. ÖZKURAL, Eray, “Godseed: Benevolent or Maleficient”. In CURADO, Manuel, GOUVEIA, Steven S., (eds.), Philosophy of Mind: Contemporary Perspectives, Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2017. p. 210.
41 Cfr. CORDA, Alessandro, “Neurociencias y Derecho penal desde el prisma de la dimensión procesal”. In TARUFFO, Michele, FENOLL, Jordi (dirs.), Neurociencia y proceso judicial. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 116.
42 Álvaro Laborinho Lúcio, em ensaio oral, em 7 de dezembro de 2017.
43 Não é discipiciendo apelar a um domínio do Conhecimento que cremos que um computador jamais poderá conhecer: a ciência de ter um corpo humano sensível a estímulos externos. “Ter uma mão, tocar em coisas, experimentar uma emoção cinestésica ao tocá-las, é uma experiência que um computador nunca poderá vir a ter. Como poderia um computador conhecer ou entender o sentimento que dois jovens apaixonados compartilham quando estão de mãos dadas? Como pode um computador conhecer as esperanças e os medos humanos?” Cfr. D’AMATO, Anthony, op. cit.. p. 1284.
44 Cfr. SARAMAGO, José, O Conto da Ilha Desconhecida. Porto: Porto Editora, 2018. p. 60.
45 Cfr., desenvolvidamente, SILVA, Joana Aguiar e, Para uma Teoria Hermenêutica da Justiça. Repercussões Jusliterárias no Eixo Problemático das Fontes e da Interpretação Jurídicas. Coimbra: Almedina, 2011.