Joana Campos Carvalho

Professora convidada na NOVA School of Law, desde 2016, tendo atualmente a seu cargo a regência das disciplinas de Direito dos Contratos e Mediação – Técnicas e Processo.

Coordenadora no NOVA Dispute Resolution Forum e investigadora do CEDIS – Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade e do NOVA Consumer Lab.

Pós-graduada em Arbitragem (2010) e Mediadora certificada pelo Ministério de Justiça, trabalhando como árbitra e mediadora no CASA – Centro de Arbitragem do Setor Automóvel.   


Os Contratos Celebrados Através de Plataformas Digitais é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 12 de Outubro de 2023.

Consulte a obra neste link.


O DL 84/2021, de 18 de outubro, que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens e no fornecimento de conteúdos e serviços digitais, transpondo as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, inclui uma norma que prevê a responsabilidade solidária do operador do mercado em linha – artigo 44.º.

Trata-se de uma solução inovadora e, até à data, única no contexto europeu[1].

O artigo 44.º-1 do DL 84/2021 determina que “o prestador de mercado em linha que, atuando para fins relacionados com a sua atividade, seja parceiro contratual do profissional que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital é solidariamente responsável, perante o consumidor, pela falta de conformidade daqueles nos termos do presente decreto-lei.”

O n.º 2 do artigo 44.º esclarece que se considera que o operador do mercado em linha é parceiro contratual do profissional sempre que exerça influência predominante na celebração do contrato.

A utilização da expressão influência predominante remete-nos para as Model Rules on Online Platforms do European Law Institute, que, no artigo 20.º, incluem também uma proposta de norma sobre a responsabilidade das plataformas.

Embora seja claro que a lei portuguesa encontra aí a sua inspiração, a lei portuguesa distancia-se substancialmente das Model Rules.

Tivemos já oportunidade de escrever sobre a interpretação destas normas e dos requisitos portugueses para a responsabilidade dos operadores destas estruturas no livro Contratos Celebrados Através de Plataformas Digitais, publicado pela Almedina.

Queremos aqui deixar apenas algumas reflexões sobre a opção inovadora da nossa lei.

O modelo de negócio das plataformas tem sido reconhecido como benéfico para a sociedade[2].

Além disso, é importante assinalar que as plataformas digitais não são todas iguais[3]. Pelo contrário, trata-se de um modelo de negócio que é adotado por empresas muito diferentes, com dimensões muito diferentes. Além disso, a própria estrutura de receitas varia muito, havendo empresas que ficam com uma parte substancial da margem de lucro do fornecedor e outras com uma pequena parte ou nada, baseando os seus lucros apenas em publicidade de terceiros alojada no site.

Daqui decorre que a regulação deve ser cautelosa, garantindo que se protege os interesses necessários, sem, contudo, colocar em causa o modelo de negócio como um todo. Além disso, uma solução que trata todas as plataformas digitais como iguais dificilmente será adequada[4].

E é precisamente isso que a lei portuguesa faz – adotar uma solução unitária para um problema que tem diferentes vertentes.

Praticamente todos os mercados em linha preenchem, pelo menos, uma das pouco exigentes alíneas do artigo 44.º do DL 84/2021, o que significa que praticamente todos os mercados em linha são responsáveis nos termos desta norma[5].

Mesmo comparando com a solução das Model Rules do ELI, a solução portuguesa vai mais longe. Embora a lei portuguesa utilize igualmente a expressão “influência predominante”, fá-lo com um conteúdo diferente. Utilizado como um conceito classificatório na lei portuguesa e como conceito tipo na lei modelo vai abranger um número muito superior de situações no direito português. Mais do que isso, perde-se a razão de ser por trás do conceito das Model Rules. A ideia aí é garantir que, se o operador cria no cliente a expetativa de que controla o fornecedor, responde pela (má) atuação do fornecedor – porque o cliente acreditou que o operador do mercado teria “mão” nessa atuação.

A solução portuguesa tem a vantagem de ser inovadora e irá certamente servir como exemplo a discutir noutros países europeus.

Contudo, se for efetivamente aplicada, pode ter como indesejado efeito colateral prejudicar os consumidores portugueses porque implicará o fim de alguns mercados nacionais[6], que não têm capacidade financeira para assumir as obrigações que lhes são impostas, e poderá levar alguns mercados estrangeiros a deixar de operar em Portugal por não compensar o risco[7].

Além disso, parece-nos que a solução é contrária ao direito europeu[8]. Na Comunicação da Comissão Europeia sobre as plataformas digitais[9] determina-se que uma eventual regulação “deve conduzir à promoção do desenvolvimento sustentável e à melhoria do modelo de negócio das plataformas na Europa”, uma vez que as plataformas “desempenham um papel preponderante na criação do “valor digital” que sustenta o crescimento económico futuro da UE e são, consequentemente, de grande importância para o funcionamento eficaz do mercado único digital” (p. 5).

Incluindo este documento as linhas orientadoras neste tema, é à sua luz que deve ser interpretada a permissão incluída nos considerandos 18 e 23 das Diretivas 2019/770 e 2019/771, respetivamente[10]. Neste sentido, os Estados-membros podem alargar a aplicação das Diretivas a operadores de plataformas, mas têm de o fazer de forma a garantir uma solução equilibrada, que não conduza ao fim da viabilidade do modelo de negócio dos mercados em linha, em especial dos mais pequenos.

Retomando os princípios do direito privado, esta solução parece-nos colocar em causa também o princípio da autonomia privada, sem uma razão suficiente[11].

Não defendemos que os operadores dos mercados em linha se podem escudar sempre atrás da triangularidade. A título de exemplo, são responsáveis se criarem a impressão no utilizador de que são a parte no contrato[12] ou são responsáveis pelo incumprimento do contrato principal, na medida em que assumirem essa obrigação.

Contudo, parece-nos que deve ser possível utilizar um modelo de negócio que se baseia na separação entre três contratos, e na separação de responsabilidades, desde que o utilizador esteja consciente dessa separação[13].

É certo também que a solução portuguesa não coloca o encargo final sobre o operador do mercado. Este responde em primeira linha, podendo exercer direito de regresso contra o fornecedor. Contudo, mesmo essa posição de responsável em primeira linha representa um encargo significativo, que uma pequena empresa pode não conseguir suportar.

Parece-nos que a solução seria mais equilibrada se fosse mais próxima da solução das Model Rules, em que se responsabiliza os operadores de mercados que criam a expectativa de que exercem influência predominante sobre os fornecedores.

Em alternativa, querendo manter-se a solução mais abrangente da lei portuguesa, poderia ser mais equilibrado fazer uma diferenciação em função do tamanho (e capacidade financeira) da empresa[14], seguindo, por exemplo, a distinção proposta no Regulamento dos Serviços Digitais entre plataformas digitais e plataformas digitais muito grandes[15], e impondo esta responsabilidade apenas às últimas.


[1] O acórdão Wathelet, do TJUE, abordou a questão da responsabilidade dos intermediários, embora solucionando uma situação diferente, que é aquela em que o intermediário se apresenta como parte – tendo o tribunal decidido que há responsabilidade por o cliente ter ficado convencido de que o intermediário é parte. A solução do artigo 44.º diz respeito às situações em que o cliente sabe que a sua contraparte não é o operador do mercado. A responsabilidade é baseada na circunstância de o operador, embora não sendo parte e não se apresentando como tal, exercer controlo sobre o contrato.

[2] Isso tem sido reconhecido em diversos documentos da União Europeia. Ver, p. ex., o cons. 1 do Regulamento 1150/2019: “Os serviços de intermediação em linha são facilitadores essenciais do empreendedorismo e de novos modelos de negócio, do comércio e da inovação que podem também melhorar o bem-estar dos consumidores []. Os referidos serviços de intermediação oferecem acesso a novos mercados e oportunidades comerciais que permitem às empresas tirar partido dos benefícios do mercado interno. Estes serviços permitem aos consumidores da União beneficiar dessas vantagens, nomeadamente através de um maior leque de escolha de bens e serviços, bem como da contribuição para a oferta de preços competitivos em linha”. Felix Maultzsch, “Contractual liability of online platform operators: European proposals and established principles”, 2018, p. 212, fala em potencial de inovação e valor acrescentado; Vanessa Mak, “Private law perspectives on platform services: Airbnb – Home rentals between AYOR and NIMBY”, 2016, p. 25.

[3] Joana Campos Carvalho, “Online platforms: concept, role in the conclusion of contracts and current legal framework in Europe”, in Cuadernos de Derecho Transnacional, Vol. 12, No 1, 2020, pp. 863-874; Margarida Lima Rego; Joana Campos Carvalho, “Insurance in Today’s Sharing Economy: New Challenges Ahead or a Return to the Origins of Insurance?”, in P. Marano/ K. Noussia (eds.), InsurTech: A Legal and Regulatory View, Springer, 2020, pp. 27-47.

[4] O caminho da diferenciação tem sido o seguido na União Europeia com a aprovação do Regulamento dos Serviços Digitais (DSA), que distingue entre plataformas digitais e plataformas digitais muito grandes (very large online platforms), que são as que têm mais de 45 milhões de utilizadores (art. 25.º), consagrando deveres diferentes.

[5] Uma solução como esta pode ter o efeito de favorecer os mercados em linha de maior dimensão, prejudicando os mais pequenos, uma vez que aqueles têm mais capacidade para fazer face a custos operativos acrescidos. Ricardo Pazos Castro, “Uber, Airbnb y la llamada “influencia decisiva” de las plataformas digitales”, 2020, p. 10.

[6] Research group on the law of digital services, “Discussion draft of a directive on online intermediary platforms”, 2016, p. 165, “uma abordagem regulamentar pesada cria o risco de asfixiar a inovação e a criatividade”. Luca Belli; Cristiana Sappa, “The intermediary conundrum – Cyber-regulators, cyber-police or both?”, 2017, p. 192, falam do risco de um mercado menos eclético.

[7] Por exemplo, o Research group on the law of digital services, “Discussion draft of a directive on online intermediary platforms”, 2016, p. 164, defendeu que, se se considerar que é necessário regular as plataformas, essa regulação deve ocorrer a nível europeu para evitar obstáculos ao desenvolvimento do mercado único. Há também a hipótese de a solução não vir a ter aplicação prática por desconhecimento, pelos consumidores, da sua existência. No sentido, de uma reduzida consciência acerca dos seus direitos dos consumidores portugueses António Pinto Monteiro, et al., “Enforcement and effectiveness of consumer law in Portugal: Filling the gap between the law on the books and the law in action”, 2018, p. 476.

[8] Research group on the law of digital services, “Discussion draft of a directive on online intermediary platforms”, 2016, p. 165, assinala a abordagem cautelosa da Comissão Europeia neste tema, procurando soluções que permitam um equilíbrio entre a regulação do mercado e a inovação.

[9] Comissão Europeia, As plataformas em linha e o mercado único digital: Oportunidades e desafios para a Europa, 2016.

[10] Christian Twigg-Flesner, “From REFIT to a rethink: Time for fundamental EU consumer law reform?”, 2017, p. 189, defende que o direito europeu do consumo deve ser cada vez mais um conjunto de princípios que orienta a produção legislativa dos EM.

[11] Neste sentido, Felix Maultzsch, “Contractual liability of online platform operators: European proposals and established principles”, 2018, p. 230, defende a propósito da solução da lei-modelo do ELI que “não existem razões convincentes para uma tal restrição da liberdade contratual”. Por maioria de razão o defenderia no direito português em que a solução é ainda mais exigente para os operadores. O autor defende que o “direito liberal dos contratos não deve prescrever responsabilidades obrigatórias e, portanto, necessariamente “duras” apenas com base no facto de uma das partes ter um controlo de risco superior de um ponto de vista objetivo. Pelo contrário, deve deixar espaço para soluções contratuais individuais mais adequadas”. Também Damjan Možina, “Retail business, platform services and information duties”, 2016, p. 29, defende que quaisquer medidas destinadas a manter a confiança dos clientes devem ser deixadas para regulação pelo mercado.

[12] Joana Campos Carvalho, “Enquadramento Jurídico da Atividade da Uber em Portugal”, in Revista de Concorrência e Regulação, n.º 26, Abr/2016 a Jun/2016, 2017, pp. 221-238.

[13] Em termos económicos, o modelo de negócio baseado numa plataforma apresenta vantagens David S. Evans, “Some empirical aspects of multi-sided platform industries”, 2003, p. 192: A plataforma aumenta os lucros possíveis quando 1) existem grupos distintos de clientes; 2) um membro de um grupo beneficia de ter a sua procura coordenada com um ou mais membros de outro grupo; e 3) um intermediário pode facilitar essa coordenação mais eficientemente do que as relações bilaterais entre os membros do grupo”.

[14] Christoph Busch; Gerhard Dannemann; Hans Schulte-Nölke, “Bausteine für ein europäisches Recht der Plattformökonomie”, 2020, p. 671, defendem que a solução das Model Rules permite esta diferenciação.

[15] Art. 33.º do Regulamento dos Serviços Digitais (DSA).