Inês Neves

Assistente convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Investigadora do CIJ – Centro de Investigação Jurídica.
Advogada na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados.
Membro da equipa do projeto ‘DigEUCit – A Digital Europe for Citizens. Constitutional and policymaking challenges‘ (Módulo Jean Monnet).


Joana Fraga Nunes

Advogada Estagiária na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados e integra a equipa de Europeu e Concorrência.
Concluiu em 2022 o L.L.M em European Public Law & Governance na Universidade de Maastricht.


Nenhum domínio pode, hoje, considerar-se imune às preocupações ambientais. Trata-se de uma questão que é de todos (gerações presentes e futuras), e que supera as fronteiras e os limites das competências. Naturalmente, e sobretudo quando em causa estão entidades jurídicas sui generis como o é a União Europeia, a vexata quaestio das competências não é inócua. Ao abrigo do princípio da atribuição, a União atua unicamente dentro dos limites das competências que os Estados-membros lhe tenham atribuído (cf. artigo 5.º do Tratado da União Europeia). Atua, naturalmente, através das suas instituições, organismos, serviços interinstitucionais e agências, cujos poderes, responsabilidades e funções se encontram também limitados, desde logo ao que se encontre previsto nos Tratados fundadores da União Europeia. O Banco Central Europeu, em particular, é a instituição central da União Económica e Monetária. Tem como principais objetivos assegurar i) a manutenção da estabilidade dos preços (política monetária), ii) a supervisão dos bancos da área do euro (supervisão bancária) e iii) a identificação e elaboração de recomendações dirigidas à redução dos riscos passíveis de desequilibrar o sistema financeiro (estabilidade financeira).

Questiona-se: poderá o Banco Central Europeu internalizar a “natureza” e o ambiente na prossecução do respetivo mandato? Poderá, na sua qualidade de supervisor dos bancos europeus, assegurar que estes tomam em devida consideração os riscos climáticos, quando adotam decisões comerciais e de crédito? Existe algum tipo de relação entre a política monetária e políticas económicas mais abrangentes? Existe alguma relação entre os setores financeiro e bancário, a sustentabilidade e as questões de ESG – Environmental, Social and Governance? Existem riscos financeiros associados às alterações climáticas?

A(s) resposta(s) é ou são positiva(s) e a presidente do Banco Central Europeu (‘BCE’), Christine Lagarde, deixou-o claro, em discurso na Cimeira para o Novo Pacto Financeiro[1]. A evolução do Direito da União (sobretudo derivado) confirma-o de igual modo. Fá-lo quando vincula as ações e iniciativas políticas da União Europeia à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e cujos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (‘ODS’) se encontram dotados de uma clara dimensão económica, além de social e ambiental.

Este texto visa compreender a(s) resposta(s) positiva(s), à luz das competências do Banco Central Europeu e da mais recente evolução do Direito da União Europeia, em matéria de transição verde. Porque o dinheiro não é só verde no papel. Importa que o seja, na prática.

  1. Política monetária e neutralidade climática: amigos (im)prováveis?

O Pacto Ecológico Europeu traduz um pacote de iniciativas estratégicas da União Europeia (‘UE’ ou ‘União’) com o objetivo de alcançar a neutralidade climática até 2050, através da aceleração da transição em todos os setores industriais[2]. No referido conjunto, encontram-se propostas destinadas a rever e a aprovar legislação em matéria de clima, energia e transportes, alinhando a ação e as políticas da UE e a atuação das respetivas instituições (e dos Estados-membros), com os objetivos climáticos, em particular, do Acordo de Paris, adotado no âmbito da Convenção‐Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas.

Inter alia, logo na sua Comunicação de 8 de março de 2018, intitulada “Plano de ação: Financiar um crescimento sustentável”[3], a Comissão definiu um conjunto de medidas destinadas a i) reorientar os fluxos de capitais para investimentos sustentáveis, a fim de assegurar um crescimento sustentável e inclusivo, ii) gerir os riscos financeiros decorrentes das alterações climáticas, do esgotamento dos recursos, da degradação do ambiente e das questões sociais, e, bem assim, iii) promover a transparência e a visão a longo prazo nas atividades económicas e financeiras.

Hoje, podem já afirmar-se como concretizações do referido compromisso (com maior proximidade face aos setores financeiro e bancário), quer o Sistema de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia (‘CELE’) – o primeiro mercado de carbono do mundo[4] -, quer o famigerado Mecanismo de Recuperação e Resiliência[5], este, pela atenção e preponderância votada(s) ao contributo dos planos de recuperação e resiliência para a transição ecológica e a resposta aos respetivos desafios[6].

Acrescem vários instrumentos de Direito secundário. A Diretiva 2014/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2014, referente à divulgação de informações não financeiras e de informações sobre a diversidade por parte de certas grandes empresas e grupos[7], impõe às empresas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação a obrigação de comunicarem informações sobre, no mínimo, as questões ambientais, sociais e relativas aos trabalhadores, ao respeito dos direitos humanos, ao combate à corrupção e às tentativas de suborno. Estas “informações”, ainda que primeiramente descritas como “não financeiras”, viriam, depois, a ser (re)catalogadas como “informações sobre sustentabilidade”. Como alerta o considerando 8 da Diretiva (UE) 2022/2464 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de dezembro de 2022, no que diz respeito ao relato de sustentabilidade das empresas[8], “a expressão «não financeiras» é inexata, nomeadamente por implicar que as informações em questão não revestem importância financeira”, quando “tais informações assumem cada vez maior importância financeira.” Por seu turno, e como recorda esta mesma Diretiva no seu considerando 11, “Nos últimos anos, registou-se um aumento muito significativo da procura de informações sobre a sustentabilidade das empresas, especialmente por parte da comunidade de investimento. Esse aumento da procura é impulsionado pela natureza variável dos riscos para as empresas e pela crescente sensibilização dos investidores para as implicações financeiras desses riscos. Em particular, é o caso dos riscos financeiros relacionados com o clima. Assiste-se também a uma crescente sensibilização para os riscos e as oportunidades para as empresas e para os investimentos resultantes de outras questões ambientais, como a perda de biodiversidade, e de questões de saúde e sociais, incluindo o trabalho infantil e o trabalho forçado. O aumento da procura de informações sobre sustentabilidade é também impulsionado pelo crescimento dos produtos de investimento que procuram explicitamente cumprir determinadas normas de sustentabilidade ou alcançar determinados objetivos de sustentabilidade e assegurar a coerência com a ambição do Acordo de Paris”. Nesta senda, a Diretiva (UE) 2022/2464 vem exigir que as grandes empresas e as pequenas e médias empresas, com exceção das microempresas que sejam entidades de interesse público, incluam no seu relatório de gestão as informações necessárias para a compreensão do respetivo impacto e para a forma como as questões de sustentabilidade afetam a evolução, o desempenho e a posição da empresa. A comunicação destas informações deverá obedecer às normas europeias de relato de sustentabilidade (European Sustainability Reporting Standards ou ‘ESRS’), adotadas pela Comissão Europeia através de atos delegados[9].

No setor dos serviços financeiros em particular, destacam-se o Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de novembro de 2019 relativo à divulgação de informações relacionadas com a sustentabilidade no setor dos serviços financeiros (‘Regulamento SFD’)[10], estabelecendo “regras harmonizadas de transparência aplicáveis aos intervenientes no mercado financeiro e aos consultores financeiros no que se refere à integração dos riscos em matéria de sustentabilidade e à consideração dos impactos negativos para a sustentabilidade nos seus processos, e à prestação de informações relacionadas com a sustentabilidade em relação a produtos financeiros.” (cf. artigo 1.º). Por outras palavras, o Regulamento rege a forma como os participantes no mercado financeiro e os consultores financeiros devem divulgar informações sobre sustentabilidade aos investidores finais e aos proprietários de ativos.

Este ato normativo foi depois alterado pelo Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de junho de 2020 relativo ao estabelecimento de um regime para a promoção do investimento sustentável[11], e cujo considerando 11 deixa claro que a “disponibilização de produtos financeiros que prosseguem objetivos de sustentabilidade do ponto de vista ambiental é uma forma eficaz de canalizar o investimento privado para atividades sustentáveis”. Acontece que, na ausência de harmonização dos critérios para determinar se uma atividade económica é qualificável como sustentável do ponto de vista ambiental, e se “os intervenientes no mercado financeiro não explicarem aos investidores de que forma as atividades em que investem contribuem para os objetivos ambientais, ou se os intervenientes no mercado financeiro recorrerem a diferentes conceitos nas suas explicações do que é uma atividade económica sustentável do ponto de vista ambiental, a verificação e comparação dos diferentes produtos financeiros tornar-se-ão excessivamente onerosas para os investidores” (considerando 13), criando um desincentivo ao investimento nesses produtos financeiros. Ciente disso mesmo, o Regulamento cria um sistema de classificação das atividades económicas sustentáveis do ponto de vista ambiental com o objetivo de intensificar os investimentos sustentáveis e combater o branqueamento ecológico de produtos financeiros relativamente aos quais se alega (indevidamente) serem sustentáveis.

Estes são apenas exemplos. O elenco poderia continuar…

Serve a menção apenas para ilustrar como a proteção do ambiente e o combate às alterações climáticas não são, hoje, corpo estranho nos domínios da economia, da política monetária, ou no setor financeiro. Como refere Elderson, membro do Executive Board do Banco Central Europeu, “A nossa economia depende da natureza. E, por isso mesmo, destruir a natureza significa destruir, também, a economia. Impedir a destruição da natureza é da competência dos governos eleitos enquanto responsáveis pela política da natureza. Nós, enquanto BCE, temos de ter em conta os riscos relacionados com a natureza na prossecução do nosso mandato[12].

Mas se o verde se internaliza cada vez mais nas lógicas bancária, financeira e de investimento, permanecem as dúvidas. Então e o escopo limitado da política monetária? E as especificidades da cadeia de valor e dos serviços oferecidos pelo setor financeiro? O que é que um banco central – responsável pela supervisão e vigilância das instituições de crédito – terá que ver com a transição verde? Em que medida é que isto se relaciona com a missão dos bancos centrais, com a política monetária e, em particular, com aquele que é o objetivo primário do BCE – assegurar a estabilidade dos preços? Como ou por que motivo deverá o mandato do BCE ser interpretado, de forma a conciliar aquele que é o seu objetivo primário – de manutenção da estabilidade dos preços – com os seus objetivos secundários, atinentes ao apoio às políticas económicas gerais da UE? Não deverá ser esta uma missão das instituições da UE e dos Estados-membros, responsáveis por adotar o enquadramento regulatório no qual o setor privado se deverá mover?

Apesar do ceticismo ou da improbabilidade da relação, a amizade é, hoje, evidente e bidirecional. Por um lado, as alterações climáticas afiguram-se suscetíveis de impactar nos processos produtivos, afetando a idoneidade creditícia das empresas, com efeitos que incluem i) prejuízos para a eficácia da política monetária, ii) a afetação do crescimento, e iii) o aumento dos preços e da instabilidade macroeconómica[13]. Por outro lado, a política monetária e os mercados financeiros assumem-se como domínios preponderantes, instrumentais e imprescindíveis para a concretização das ambições ambientais e climáticas da União Europeia. A título meramente ilustrativo, a transição para uma economia de baixo carbono não se pode hoje independentizar de uma aposta séria no investimento sustentável em “obrigações verdes”. E, para isso, é necessário reavaliar as condições de elegibilidade para o investimento em obrigações bancárias e de empresas, incluindo requisitos como a intensidade carbónica da produção e venda desses produtos[14].

Neste contexto, e ao contrário do que uma leitura imediata (e histórica) possa transparecer, são vários os fatores demonstrativos da preponderância assumida pelos bancos centrais em sede de transição climática: i) pela gestão dos riscos que as mudanças climáticas acarretam para o sistema financeiro e para a economia como um todo; ii) pela sua qualidade-condição de intervenientes no mercado, na qual poderão facilitar a canalização de fundos para investimentos sustentáveis, e o financiamento da transição verde e iii) pelo seu papel de “role models” no incentivo a mudanças comportamentais. A expressão “green central banking” vem, pois, assumindo centralidade, enquanto referente tradutor das ações adotadas pelos bancos centrais neste contexto.

O Banco Central Europeu não é exceção. Demonstra-o o seu compromisso – firmado em julho de 2021, e concretizado, um ano depois, no seu plano de ação -, no sentido de uma maior integração das alterações climáticas nas suas operações e estratégia de política monetária. Por esta via, o BCE concretiza o âmbito ou a direção da política monetária em termos conformes com os objetivos da UE de sustentabilidade e transição climática[15], atualizando e dando vida aos seus objetivos secundários (do BCE), entre os quais se conta o respeito pelo ambiente e a luta contra as alterações climáticas[16].

Particularizando, a aposta do BCE compreende-se nas seguintes medidas-compromissos: i) a monitorização e a gestão dos riscos relacionados com as alterações climáticas na adoção da política monetária, operações de investimento e gestão do mercado financeiro (sobretudo, na sua atividade de aconselhamento e análise); ii) a transição para uma economia neutra de carbono, através da criação de incentivos para um sistema financeiro mais ecológico; e, por fim, iii) uma política geral de sensibilização sobre os riscos relacionados com as alterações climáticas em colaboração com as instituições europeias, e o fomento da transparência na adoção das medidas da competência do BCE[17].

Segundo o BCE, este conjunto de medidas revela-se essencial para garantir i) a gestão da exposição ao risco derivado das alterações climáticas, ii) a estabilidade da economia europeia através da estabilidade monetária do euro e iii) a robustez dos bancos europeus, com repercussões no equilíbrio dos mercados financeiros[18]. Através delas (medidas), o Banco Central Europeu surge a assumir um papel pioneiro e essencial na garantia da “internalização” das políticas e objetivos climáticos no quomodo dos mercados financeiros, sendo disso exemplo a classificação e aquisição de ativos, em termos que reforçam a sustentabilidade do setor financeiro[19].

  1. Das dúvidas…

Não obstante se trate de ação(ões) e compromisso(s) louváveis (e necessários), a internalização de considerações climáticas na estratégia monetária do BCE implica a problematização e o enquadramento da questão à luz dos limites do respetivo mandato, nos termos do artigo 127.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (‘TFUE’). Ao abrigo do referido preceito, ao BCE é acometida a competência para a manutenção da estabilidade dos preços (enquanto dimensão interna da estabilidade monetária)[20], a par de uma missão secundária de apoio às políticas económicas gerais da União. A amplitude e a relativa indefinição do artigo 127.º do TFUE consentem, porém, dúvidas quanto ao alcance da norma. Em particular, não obstante a referência a objetivos secundários, não é claro o concreto papel que o BCE possa vir a assumir, no apoio à prossecução das políticas gerais e mais abrangentes da UE[21]. Em particular, a adoção, introdução ou inclusão de fatores contendentes com a realização dos objetivos da União definidos no artigo 3.º do Tratado da União Europeia (‘TUE’), incluindo o empenho no “desenvolvimento sustentável da Europa” e num “elevado nível de proteção e de melhoramento da qualidade do ambiente” (cf. n.º 3) na análise estratégica do mercado, poderão mesmo, na ausência de um enquadramento devido, ser lidas como desvios às funções e aos poderes do BCE. Estará este a adotar uma posição sobre a direção que a economia deverá seguir?

Em face das interrogações, é importante refletir sobre a compatibilização do objetivo primário do BCE, nomeadamente a estabilização do fluxo monetário através da manutenção da estabilidade dos preços, com a missão de contribuição para os objetivos da União, conforme estabelecidos no artigo 3.º do TUE. Disso tratamos agora.

  1. interpretação ampla dos respetivos objetivos

Os recentes desenvolvimentos da economia mundial alteraram a interpretação tradicionalmente votada ao escopo da política monetária e aos objetivos dos bancos centrais. Em momento anterior à crise financeira, acreditava-se que os mercados financeiros se adaptariam a qualquer circunstância, segundo os modelos económicos comuns e os seus próprios dispositivos[22]. Neste contexto, a raison d´être da criação dos primeiros bancos centrais, circunscrita à “government finance”, viria a ser substituída[23]. Abandonar-se-ia, em particular, a ‘Tinbergen Rule’ (traduzida na prossecução de um só objetivo – estabilidade monetária – através de um só instrumento – política monetária)[24], em prol da incorporação da estabilidade financeira no contexto de um ‘twin mandate’, também inclusivo das funções de supervisão[25].

Esta mudança é contexto que contribuiu para que as missões atribuídas ao BCE se não possam resumir ao respetivo objetivo primário. Por outras palavras, uma dimensão instrumental de apoio aos objetivos gerais da União não pode (hoje, sobretudo) ser negligenciada. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (‘TJUE’) relativa ao artigo 11.º do TFUE (sobre a proteção do ambiente) confirma-o, quando aponta para uma obrigação processual de as instituições da UE tomarem em devida consideração outros objetivos transversais, neste caso, as preocupações ambientais, na conceção das suas próprias políticas[26]. E a mesma conclusão é também reconfortada por acórdãos como aqueles proferidos nos casos Gauweiler e Weiss[27]. Chamado a fiscalizar o caráter ultra vires de atos do Banco Central Europeu relativos a programas de compra de dívida pública, ditos “não convencionais”, o TJUE apelou, precisamente ao objetivo de apoio às políticas económicas gerais na União, tendo em vista contribuir para a realização dos seus objetivos tal como definidos no artigo 3.º do TUE, para concluir no sentido da não violação do princípio da atribuição de competências, tal como hipotetizado pelo Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha) – autor dos reenvios prejudiciais. Ainda que não diretamente abrangidos pelo objetivo primordial da política monetária da União (a estabilidade dos preços), os atos sindicados não viram a sua validade posta em causa, desde logo pela inexistência de uma concretização exata (nos Tratados) da forma como aquele objetivo primário deverá (ou poderá) ser concretizado e prosseguido. Destes arestos resulta clara a imbricação entre o objetivo primário do BCE e o seu objetivo secundário de apoio às políticas económicas da União[28]. A ligação deverá ser mediada por um princípio de proporcionalidade, que exige a aferição da compatibilidade de eventuais medidas não convencionais com o princípio da proporcionalidade, nas suas várias dimensões, a saber, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito[29]. Assim, importa aferir i) se a medida em questão é objetivamente adequada a realizar os objetivos de política monetária (objetivo primário); ii) se o meio empregue não é excessivo, comparativamente com alternativas existentes e iii) se as vantagens da medida superam os seus custos.

Mas haverá, no domínio do verde e das alterações climáticas, uma tal relação com o objetivo primário? Parece que sim. Segundo a jurisprudência europeia, os bancos centrais devem ter em consideração o impacto das alterações climáticas na manutenção da estabilidade do euro, por sua vez, conexa com a estabilidade da economia[30]. Porquê? Precisamente porque as alterações climáticas afetam i) a inflação, ii) o balanço e iii) constituem um risco financeiro para os bancos supervisionados. Devem fazê-lo, precisamente porque a natureza e os riscos associados à sua degradação impactam nas empresas e nos bancos. Devem fazê-lo, porque a economia europeia se encontra fortemente dependente dos serviços do ecossistema, cujos riscos não deixam, por isso, de se repercutir no sistema financeiro, redundando em instabilidade[31]. Devem fazê-lo, subordinando as opções que adotem na atuação da sua missão secundária ao princípio da proporcionalidade, balizadas à respetiva necessidade para alcançar o objetivo de estabilidade dos preços[32].

E eis como se logra a interação entre ambas as missões: a atenção aos riscos de sustentabilidade ambiental justifica-se, ainda, pela suscetibilidade de afetação dos objetivos primários dos bancos centrais, assim se assegurando uma comunhão de sentido entre ambos os mandatos. Trata-se de uma comunhão de sentido bidirecional. Tal como as medidas em matéria de sustentabilidade contribuem para promover a realização dos seus objetivos primários, também as medidas monetárias do BCE poderão ajudar a suportar a adaptação e mitigação das consequências das alterações climáticas.

  1. O papel do BCE na transição climática

Em face do exposto, pode concluir-se que o BCE não só pode como deve assumir um efetivo papel em matéria de transição climática. Isto resulta possível à luz de uma dinâmica integrativa e da aposta numa política monetária estruturada no apoio às políticas económicas da União, conforme disposto no artigo 127.º do TFUE. Mais do que limite, é este mesmo preceito a conferir ao BCE a possibilidade de atuar de forma abrangente no âmbito do seu mandato. Por outras palavras, são as próprias competências a consentir(-exigir) a integração de uma avaliação alicerçada em considerações climáticas e a adoção de uma política monetária (e) sustentável. O que consente afirmar que as considerações climáticas deverão ser constância, mais do que corpo estranho na definição da política monetária.

O que se acaba de afirmar não dilui, naturalmente, o papel de liderança que as instituições da UE e os Estados-membros deverão assumir, na mitigação de riscos de sustentabilidade ambiental e social. A eles cabe nortear a legislação, os enquadramentos regulatórios, as intervenções económicas diretas, a política fiscal e os programas de despesa, em termos garantes da prossecução das metas ínsitas a uma transição verde. Mas nada disto justifica que o BCE possa (ou deva) ficar fora da equação. O processo de integração económica é contínuo e atual-prospetivo, assentando em riscos presentes com expressão futura. Tudo isto é possível sem comprometer a natureza das competências atribuídas pelos Tratados. A divisão entre política(s) monetária e económica não é um estanque “preto no branco”. Precisa definitivamente de ser afirmar


[1] Christine Lagarde, discurso de 23 de junho de 2023, na Cimeira para o Novo Pacto Financeiro, disponível aqui: https://www.ecb.europa.eu/press/key/date/2023/html/ecb.sp230623~3e2a3aaa82.en.html, [último acesso em 04.08.2023].

[2] Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – O Pacto Ecológico Europeu, Bruxelas, COM (2019) 640 final, disponível em https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:b828d165-1c22-11ea-8c1f-01aa75ed71a1.0008.02/DOC_1&format=PDF [último acesso em 16.08.2023].

[3] Comissão Europeia, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Banco Central Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Plano de Ação: Financiar um crescimento sustentável, Bruxelas, COM (2018) 97 final, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018DC0097&from=PT [último acesso em 16.08.2023].

[4] Incluindo um sistema de comércio de licenças de emissão para os setores dos transportes rodoviários e dos edifícios.

[5] Regulamento (UE) 2021/241 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de fevereiro de 2021 que cria o Mecanismo de Recuperação e Resiliência JO L 57, 18.2.2021, p. 17-75, alterado pelo Regulamento (UE) 2023/435 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de fevereiro de 2023 que altera o Regulamento (UE) 2021/241 no que diz respeito aos capítulos REPowerEU dos planos de recuperação e resiliência e que altera os Regulamentos (UE) n.º 1303/2013, (UE) 2021/1060 e (UE) 2021/1755 e a Diretiva 2003/87/CE PE/80/2022/REV/1 JO L 63 de 28.2.2023, p. 1-27.

[6] Impondo, aliás, que as medidas neste domínio correspondam a um montante representativo de, pelo menos, 37% da dotação total do plano. Sobre a questão, A Steinbach, “The Greening of the Economic and Monetary Union” Common Market Law Review (2022) 59(2), 8.

[7] Diretiva 2014/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de outubro de 2014 que altera a Diretiva 2013/34/UE no que se refere à divulgação de informações não financeiras e de informações sobre a diversidade por parte de grandes empresas e grupos JO L 330 de 15.11.2014, p. 1.

[8] Diretiva (UE) 2022/2464 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de dezembro de 2022 que altera o Regulamento (UE) n.º 537/2014, a Diretiva 2004/109/CE a Diretiva 2006/43/CE e a Diretiva 2013/34/UE no que diz respeito ao relato de sustentabilidade das empresas JO L 322 de 16.12.2022, p. 15-80.

[9] O primeiro Regulamento delegado, respeitante às normas de relato de sustentabilidade foi adotado a 31 de julho de 2023, encontrando-se disponível aqui: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=PI_COM:C(2023)5303, [último acesso em 07.08.2023].

[10] Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de novembro de 2019 relativo à divulgação de informações relacionadas com a sustentabilidade no setor dos serviços financeiros PE/87/2019/REV/1 JO L 317, 9.12.2019, p. 1-16. O Regulamento foi alterado pelo Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de junho de 2020 relativo ao estabelecimento de um regime para a promoção do investimento sustentável PE/20/2020/INIT JO L 198 de 22.6.2020, p. 13-43.

[11] Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de junho de 2020 relativo ao estabelecimento de um regime para a promoção do investimento sustentável, e que altera o Regulamento (UE) 2019/2088 JO L 198 de 22.6.2020, p.13-43.

[12] F Elderson, “The economy and banks need nature to survive” (2023) The ECB Blog, disponível aqui: https://www.ecb.europa.eu/press/blog/date/2023/html/ecb.blog230608~5cffb7c349.en.html [último acesso em 04.08.2023], tradução livre.

[13] Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2023, sobre o Banco Central Europeu – relatório anual de 2022 (2022/2037(INI)), ponto F.

[14] D Shoenmaker, “Greening monetary policy” (2021) 21(4) Climate Policy 581-592.

[15] Comunicado de imprensa do BCE de 8 de julho de 2021, “BCE apresenta um plano de ação para incluir considerações sobre as alterações climáticas na sua estratégia de política monetária”, disponível em https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2021/html/ecb.pr210708_1~f104919225.en.html [último acesso em 16.08.2023].

[16] Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2023, cit., §28.

[17] Banco Central Europeu, “As alterações climáticas e o BCE”, disponível em https://www.ecb.europa.eu/ecb/climate/our_approach/html/index.pt.html [último acesso em 16.08.2023]..

Em julho de 2022, o BCE definiu as consequências do plano de ação climática, aqui: https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2022/html/ecb.pr220704~4f48a72462.en.html [último acesso em 16.08.2023]..

[18] Banco Central Europeu, “Porque é que as alterações climáticas são importantes para o BCE?”, 7 de novembro de 2022, disponível em https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2021/html/ecb.pr210708_1~f104919225.en.html [último acesso em 16.08.2023]..  

[19] Comunicado de imprensa do BCE de 8 de julho de 2021, cit.

[20] R M Lastra e K Alexander, “The ECB Mandate: Perspectives on Sustainability and Solidarity” (2020) Monetary Dialogue Papers, disponível em: https://www.europarl.europa.eu/cmsdata/207720/Lastra-Alexander_FINAL%20online.pdf [último acesso em 04.08.2023], p. 10. Apesar de o TFUE não definir “estabilidade de preços” – cf. ibidem, p. 11. Esta vem também referida no artigo 119.º (n.os 2 e 3) como objetivo da UE.

[21] Cf. ibidem, p. 11.

[22] N De Boer e J Van’t Klooster “The ECB, the courts and the issue of democratic legitimacy after Weiss “ (2020) 57(6) Common Market Law Review 1689-1724, 1708.

[23] R M Lastra e K Alexander, “The ECB Mandate…”, cit., p. 8.

[24] Cf. ibidem, p. 8.

[25] Cf. ibidem, p. 10.

[26] S Jourdan e W Kalinowski, “Aligning monetary policy with the EU’s climate targets” (2019) Veblen Institute for Economic Reforms, disponível em https://www.veblen-institute.org/IMG/pdf/aligning_monetary_policy_with_eu_s_climate_targets.pdf [último acesso em 16.08.2023].

[27] Processo C-62/14 Gauweiller e outros contra Bundesregierung [2015] ECLI:EU:C:2015:400 (em particular, paras. 46-92) e Processo C-493/17 Weiss e outros contra Bundesregierung [2018], ECLI:EU:C:2018:1000 (em particular, paras. 53-100).

[28] Sobre os casos, O Scarcello, “Proportionality in the PSPP and Weiss judgements: comparing two conceptions of the unity of public law” (2021) 13(1) European Journal of Legal Studies 45-59.

[29] P Nicolaides, “The Application of the Principle of Proportionality to Monetary Policy: an Impossible Task?” (2021) 46 European Law Review 746-764 e R M Lastra e K Alexander, “The ECB Mandate…”, cit., p. 16.

[30] D Shoenmaker, “Greening…”, cit.

[31] F Elderson, “The economy…”, cit.

[32] R M Lastra e K Alexander, “The ECB Mandate…”, cit., p. 19.