Letícia Marques Costa

Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Professora Adjunta do ISVOUGA – Instituto Superior Entre o Douro e Vouga.
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito e de Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Investigadora do JUSGOV (Escola de Direito da Universidade do Minho).
Advogada.


Sara Passos

Licenciada em Direito pela ULP – Universidade Lusófona do Porto.
Mestre em Direito na área de Ciências Jurídico Empresariais pela ULP – Universidade Lusófona do Porto.
Assistente jurídica.


A Casa de Morada de Família no Processo Insolvencial de Pessoa Singular é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 13 de Abril de 2023.

Consulte a obra neste link.


Enquanto bem especialmente relevante para o desenvolvimento e para a estabilidade pessoal de cada indivíduo, assim como da própria família enquanto grupo, a casa de morada desta serve essencialmente de meio para a realização e concretização dos mais variados direitos fundamentais, inclusive o direito à habitação.  Contudo, fazendo parte do acervo patrimonial das famílias, este bem assegura – juntamente com o restante património – o cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor (vide artigo 601.º do Código Civil). Uma vez não estando protegida por uma impenhorabilidade ex lege[1], a casa de morada de família poderá ser apreendida e liquidada no âmbito do processo da sua insolvência, provocando consequências nefastas para toda a família que pode em nada ter tido influência no estado económico e financeiro a que aquele chegou.

Importante para a proteção conferida ou a conferir à casa de morada de família parece ser a necessidade de entender qual bem pode ser objeto desta proteção. Ou, por outras palavras: o que é que caberá na noção legal de “casa de morada de família”? Apenas em 2019, com a Lei de Bases da Habitação[2], o legislador se debruçou sobre este assunto, embora que – sob as nossas críticas – tenha ficado aquém daquilo que seria exigível. Por isso, tentamos estudar as caraterísticas de tal bem e apresentá-las na nossa obra, culminando com uma proposta melhorada de uma definição para tal conceito que possa abarcar as mais diversas e mais atuais realidades.

Após a época pandémica provocada pela COVID-19 – altura em que a casa de morada de família revelou toda a sua importância na salvaguarda e na tutela da saúde daqueles que nela habitavam e no cumprimento do dever de recolhimento que sobre aqueles poderia recair – tendo já se esgotado o prazo para as moratórias que permitiram adiar o pagamento do capital requerido a título de crédito à habitação, as famílias portuguesas com o seu rendimento notoriamente afetado pelas consequências daquele período, e face ao aumento das taxas de juro, correm agora o risco de incumprir a maior dívida das suas vidas, ficando sujeitas a cair numa situação de insolvência e a perder aquele que é talvez o bem de valor mais significativo presente no seu património.  

Consciente ou inconscientemente, o legislador português quando criou – apesar de escassos – alguns mecanismos de tutela da casa de morada de família, acabou por conferir uma certa especialidade e importância a este bem. Para não abordarmos exaustivamente a proteção que o Código Civil já anteriormente lhe fazia para a necessidade de consentimento de ambos os cônjuges na pendência do seu matrimónio nos seus artigos 1682.º-A e 1682.º-B, aquando do divórcio nos artigos 1105.º e 1793.º, ou aquando da morte de algum daqueles nos seus artigos 1106.º e 2103.º-A, chamamos à atenção para um preceito mais recente, tendo ficado demonstrado que a proteção da casa de morada de família não é apenas uma preocupação do passado: o art. 244.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário que, com a alteração introduzida pela Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, impôs restrições à sua venda no caso de ser no âmbito de um processo de execução fiscal.

Contudo, tramitando-se uma execução com qualquer outro fim – nomeadamente uma execução hipotecária – assim como um eventual processo de insolvência em que ocorrerá uma execução universal, este bem está despido de qualquer proteção legal. E denotemos que não é a propriedade que se pretende proteger, mas sim o direito à habitação do devedor e da sua família.

Porém, o legislador já teve um especial cuidado com a salvaguarda destes direitos do arrendatário que foi declarado insolvente e consequentemente da sua família: impediu o senhorio de resolver o contrato por rendas vencidas em momento anterior ao da declaração da insolvência (al. a), do n.º 4, do art. 108.º do CIRE)[3] e permitiu que o administrador da insolvência possa declarar que o direito ao pagamento das rendas vencidas após 60 dias da sua comunicação não possa ser exercido no processo (n.º 2, do mesmo preceito). De forma excecional, a entrega do local arrendado poderá ficar suspensa por aplicação da al. c), do n.º 7, do art. 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – preceito que por diversos motivos consideramos ainda em vigor.

Atendendo à especialidade do bem, à importância que o mesmo representa, embora saibamos que esta proteção não poderá ser desmedida, deveria o legislador ter demonstrado mais preocupação com o mesmo, especialmente quando este se trata de um bem da propriedade do devedor insolvente. Isto porque, se não falarmos do regime excecional e transitório da suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, previsto na al. b), do n.º 7, do art. 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o legislador nada deixou pensado para o regime geral.

Desta forma, o devedor insolvente poderá ver a casa que é a sua morada e do seu agregado familiar ser apreendida e liquidada como um qualquer dos seus outros bens. Por todos os valores que estão envolvidos, não deveria a casa de morada de família ser merecedora de um regime totalmente diferenciado do que aquele que é aplicado ao restante património que integra a massa insolvente?

Existem mecanismos previstos na Lei que, embora não pensados especialmente para a proteção deste bem, poderão ser úteis para tal finalidade. Falamos, por exemplo, do recurso à dispensa de liquidação prevista no art. 171.º do CIRE que pode permitir a manutenção deste bem no seio familiar. Contudo, este regime não está pensado para bens com um valor patrimonial tão significativo como é a casa de morada de família, uma vez que existe o depósito do valor que aquele bem geraria com a liquidação no curtíssimo prazo de 8 dias. Ora, se o devedor tivesse como angariar rapidamente esse valor provavelmente não teria caído numa situação de falta de liquidez de tal ordem que tivesse culminado com o desfecho da declaração da sua insolvência. Além disso, coloca o impulso nas mãos do administrador da insolvência. Acresce ainda que a este regime não poderão aderir os devedores que tenham uma empresa para exercício da sua atividade, o que afasta logo do seu campo de aplicação muitos dos insolventes.

Talvez exista um outro caminho alternativo: o recurso ao direito de remição que, apesar de previsto no CPC (arts. 842.º a 845.º), defendemos a sua aplicação no âmbito do processo de insolvência (ex vi art. 17.º do CIRE). Mas será este também um mecanismo eficaz? A proteção da casa de morada de família está mais uma vez nas mãos de terceiros – apenas dos familiares do devedor taxativamente elencados no art. 842-º do CPC – e da disponibilidade dos recursos financeiros daqueles.

Fazendo um estudo comparativo com a proteção que outros ordenamentos jurídicos já conferem a este bem, ressaltamos a figura da Homestead Exemption presente no sistema jurídico dos Estados Unidos da América.Alguns Estados impõem uma isenção total da liquidação da casa de morada de família – medida que nos parece exagerada por colocar em causa a satisfação dos direitos dos credores – tal como acontece no Brasil, embora neste ordenamento jurídico não fique protegida por uma impenhorabilidade absoluta a casa quando esteja em causa o cumprimento do crédito à habitação ou quando o devedor tenha atuado de forma a defraudar a lei[4]. Já os restantes Estados dos Estados Unidos impõem equilibradamente um valor-limite para a isenção de liquidação, com o intuito de assegurar o mínimo para um direito condigno à habitação sem prejudicar incomensuravelmente os credores. Nesta senda da estipulação de um limite a esta proteção e do afastamento da mesma se sobre o imóvel recair uma hipoteca, LETÍCIA MARQUES COSTA propôs a figura da isenção da liquidação da casa de morada de família, acrescentando-lhe o requisito adicional da limitação do passivo global do devedor ao valor de 300.000€[5]. Efetuando um reparo na sugestão da Autora e tendo em conta este último requisito, SARA PASSOS – sem esquecer que o grande objetivo do processo de insolvência é sempre a satisfação dos credores – propõe adicionar-lhe a necessidade de passagem por, pelo menos, uma tentativa de cumprimento de um plano de pagamentos antes de o devedor lhe ver concedida a isenção da liquidação da casa de morada de família. Em alternativa e embora com ajustes, entende como uma hipótese a considerar para o nosso ordenamento jurídico a instituição de um regime idêntico àquele que a Grécia estabelece para proteção dos devedores considerados economicamente vulneráveis, através da compra da casa por uma entidade independente que se compromete a arrendá-la ao devedor e a dar-lhe a opção de recompra no final do prazo, impedindo-se o desalojamento daquela família e possibilitando-se em simultâneo a satisfação dos direitos dos credores[6].

Uma análise mais aprofundada de outros problemas, respostas e sugestões associados à casa de morada de família, especialmente no âmbito do processo de insolvência, encontra-se na nossa obra “A Casa de Morada de Família no Processo Insolvencial de Pessoa Singular”, publicada pela Editora Almedina e que, em grosso modo, é resultado da Dissertação de Mestrado em Direito com especialização em Ciências Jurídico-Empresariais, de Sara Passos, orientada pela Professora Doutora Letícia Marques Costa, embora agora por ambas atualizada face às novas alterações legislativas.

Letícia Marques Costa e Sara Passos


[1] Como o elenco do artigo 736.º do Código do Processo Civil.

[2] Cfr. Lei n.º 83/2019, de 03 de setembro, essencialmente no n.º 3, do seu art. 10.º.

[3] Apesar de, relativamente à falta de pagamento de rendas vencidas em momento anterior ao da declaração de insolvência, poder o senhorio ir ao processo reclamá-las enquanto créditos sobre a insolvência, tal como os restantes credores da insolvência.

[4] Cfr. Lei n.º 8.009/90, de 2 de março.

[5] COSTA, Letícia Marques, A insolvência de pessoas singulares, Coimbra, Almedina,pp. 288-292.

[6] Cfr. Νόμος 4738/2020