João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


Teresa Coelho Moreira

Professa da Escola de Direito da Universidade do Minho.


Milena Silva Rouxinol

Professora da Universidade Católica Portuguesa – Porto.


Joana Nunes Vicente

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


Catarina Gomes Santos

Professora da Universidade Católica Portuguesa – Porto.


Autores da obra Direito do Trabalho – Relação Individual publicada pelo Grupo Almedina.

Consulte a obra neste link.


Foi recentemente (e, dir-se-ia, finalmente) publicada a Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, diploma que contém a chamada Agenda do Trabalho Digno e que veio rever numerosas disposições do nosso Código do Trabalho (CT) e demais legislação laboral. Aprovada depois de um longo e tormentoso processo legislativo, a nova lei contém, como seria de esperar, várias novidades de monta, muitas delas bastante polémicas e cuja interpretação vai dar lugar a um mar de dúvidas e dificuldades.

            Uma das novidades que tem sido alvo de maior contestação, designadamente por parte das confederações patronais e por uma considerável legião de advogados, em grande parte oriundos de grandes escritórios de advocacia, decerto versados em outsourcings, downsizings e quejandos, consiste, sem dúvida, no art. 338.º-A do CT, norma aditada pela Lei n.º 13/2023, na qual, sob a epígrafe “Proibição do recurso à terceirização de serviços”, se estabelece: “Não é permitido recorrer à aquisição de serviços externos a entidade terceira para satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador cujo contrato tenha cessado nos 12 meses anteriores por despedimento coletivo ou despedimento por extinção de posto de trabalho”. A violação desta proibição constituirá contraordenação muito grave, imputável ao beneficiário da aquisição de serviços.

            A nova norma tem estado debaixo de fogo intenso. Alega-se que a mesma constitui um atentado inadmissível à liberdade empresarial, ao direito de propriedade privada e à liberdade de iniciativa económica privada, consagrada no art. 61.º da CRP. A empresa, diz-se, deixará de poder externalizar serviços, deixará de poder terceirizar, deixará de poder recorrer ao outsourcing, deixará de ter a liberdade de se reinventar e reorganizar, o empresário deixará de poder modelar a sua atividade como bem lhe aprouver, máxime concentrando-se no core business e externalizando as demais atividades, despedindo os trabalhadores que as exerciam e recorrendo, para aquele efeito, à terceirização de serviços.

            Em suma, razões de eficiência e de competitividade empresarial imporiam, nesta perspetiva, que a faculdade de recurso ao outsourcing fosse ilimitada e em freios, no seio de uma economia de mercado, baseada no direito de propriedade, na iniciativa económica privada e na busca do lucro, do máximo lucro, pelos investidores.

            Não é nosso propósito, neste curto texto, ensaiar uma qualquer análise interpretativa sobre o sentido e alcance do disposto no novo art. 338.º-A do CT. Nem opinar sobre a conformidade ou não deste preceito com a CRP. Não podemos, ainda assim, deixar de chamar a atenção para que, em rigor, esta nova norma, a despeito da sua epígrafe algo exagerada, não proíbe o recurso à terceirização de serviços, não veda o recurso ao outsourcing. O alcance do preceito é mais limitado: o que se proíbe é que algo, em si mesmo lícito (a terceirização), seja efetuado por meio do recurso ao despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho, nos 12 meses anteriores; o que se veda é que o empregador recorra ao despedimento, eliminando emprego, em ordem a externalizar serviços; o que se pretende evitar, afinal, é que esse meio (o despedimento) seja utilizado para alcançar tal fim (a terceirização) – não porque o fim seja alvo de um juízo de desvalor, mas porque o meio utilizado, esse sim, é tido como desvalioso pela lei.

Ora, este é, a nosso ver, o ponto. É sabido que, quando a perda do emprego ocorre sem ou contra a vontade do trabalhador, as consequências dessa perda, a nível social e humano, podem ser devastadoras, sobretudo quando se trate de trabalhadores pouco qualificados e já não muito jovens. É que, seja ou não um meio de realização pessoal, o emprego representa, tipicamente, a fonte de sustento do trabalhador. A perda daquele implica, portanto, a privação desta. O despedimento consiste, decerto, numa das formas de cessação do contrato de trabalho, numa rutura do vínculo jurídico‑laboral por iniciativa unilateral da entidade empregadora. O despedimento é isso, mas é, note-se, muito mais do que isso. O despedimento, como bem assinalam Baylos Grau e Pérez Rey, é também um ato de violência do poder privado. Com o despedimento, «a empresa, através da privação do trabalho a uma pessoa, procede à expulsão dessa pessoa de uma esfera social e culturalmente decisiva, vale dizer, de uma situação complexa em que, através do trabalho, esta obtém direitos de integração e de participação na sociedade, na cultura, na educação e na família. Cria uma pessoa sem qualidade social, porque a qualidade da mesma e os referentes que lhe dão segurança na sua vida social dependem do trabalho» (El Despido o la Violencia del Poder Privado, Editorial Trotta, Madrid, 2009, p. 44). E, como sublinham os autores, a violência do despedimento constitui um facto que não deixou de ser submetido a um processo de “civilização democrática” por parte do Direito do Trabalho – esse poder foi racionalizado, foi condicionado, foi procedimentalizado, foi formalizado, foi limitado.

A lei rejeita o despedimento ad nutum, não reconhece ao empregador o direito de despedir arbitrariamente, sem explicações, sem justificação, sem indicação de motivo bastante. Entre nós, o despedimento é uma declaração vinculada, porque a validade do ato extintivo está condicionada à verificação de determinados motivos que a lei considera justificativos da cessação da relação de trabalho. A CRP consagra, não por acaso, a garantia da segurança no emprego como um dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, no seu art. 53.º. É certo que a era da nova economia globalizada, dinâmica, inovadora e ferozmente competitiva obedece à lógica do efémero, do volátil e do imprevisível, sendo incompatível com o ideal do job for life que, de algum modo, imperou no século passado. Daí, porém, não se segue inexoravelmente que o ordenamento jurídico tenha de contemporizar com despedimentos arbitrários, dispensando o empregador de justificar (e de justificar de forma bastante, com base em fundamentos ponderosos) a sua decisão extintiva e isentando esta última do escrutínio judicial. Não parece, pois, que se deva remeter a estabilidade no emprego para a arca das velharias inúteis.

É isso que, cremos, importa sublinhar, para recentrar a discussão em torno da bondade ou maldade do novo art. 338.º-A do CT. O despedimento não é coisa de somenos ou banal, não é um mero detalhe sem importância, resultante de decisões gestionárias insindicáveis do empregador. O despedimento é um ato expulsivo que lesa uma garantia constitucional. A CRP salvaguarda o bem jurídico representado pelo emprego, tentando evitar que o mesmo seja sacrificado sem que para tanto existam motivos ponderosos e comprováveis. E isso vale para os motivos económicos, lato sensu, que podem fundar uma decisão de despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho. O despedimento por eliminação de emprego, que se baseia em motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos, não pode ser perspetivado como um ato de gestão virtualmente insindicável pelo tribunal, a coberto da liberdade de iniciativa económica do empresário. A liberdade económica e a propriedade privada, sendo valores constitucionalmente consagrados, têm de se concatenar com outros valores e direitos fundamentais, entre os quais a garantia da segurança no emprego.

Diga‑se, aliás, que, em certo sentido, o Direito do Trabalho não é outra coisa senão um vasto sistema de controlo das decisões gestionárias do empregador, não se percebendo por que razão deveria deixar de sê‑lo em face de uma decisão tão importante (tão destruidora de emprego e tão criadora de desespero) como é a de proceder a um despedimento coletivo ou por extinção de posto de trabalho. E bom será não ter ilusões a este respeito. O objetivo magno da empresa privada capitalista não consiste em criar emprego para os trabalhadores, nem sequer em assegurar a manutenção daquele para estes, mas sim em gerar lucros para os respetivos sócios/acionistas. Ao Direito do Trabalho compete, justamente, evitar que a prossecução deste desígnio lucrativo sacrifique em demasia os interesses dos trabalhadores.

Parece‑nos, por isso, excessivo sustentar a legitimidade do recurso ao despedimento por parte de empresas prósperas e lucrativas, com uma situação económico‑financeira plenamente equilibrada, apenas em ordem a maximizar a eficiência e/ou ao incremento dos lucros. Julga‑se que a tutela constitucional da segurança no emprego impõe – tem de impor – um outro tipo de ponderação, que não menospreze o valor da manutenção do emprego, quer ao empregador quando toma a decisão, quer ao julgador quando chamado a sindicar os motivos da decisão daquele, quer ao próprio legislador, quando se propõe traçar um quadro jurídico-laboral para a terceirização de serviços.

Admitir que um qualquer motivo de mercado, que uma qualquer opção gestionária – máxime, a de terceirizar serviços – possa, sem mais, legitimar o despedimento seria, afinal, hipostasiar a liberdade de iniciativa económica privada e fazer tábua-rasa da segurança no emprego. Seria ver no trabalhador um elemento descartável, seria tratá-lo como uma mercadoria, ignorando a pessoa, o ser humano que existe em cada trabalhador. Vivemos, decerto, numa economia de mercado, mas também vivemos num Estado social e democrático de direito, em que a CRP constitui a lei fundamental. E note-se, a este propósito, que a segurança no emprego não tem menos dignidade constitucional do que a livre iniciativa económica. Aliás, como se lê no n.º 1 do art. 61.º da CRP, «a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral» (itálico nosso). Vale dizer, se a segurança no emprego não é, decerto, um direito aboluto, muito menos o é, convenhamos, a liberdade de iniciativa económica privada.

Reiteramos que o que vem de ser dito não significa que estejamos a tomar posição no debate sobre a bondade ou maldade substantiva do novo art. 338.º-A do CT. Nem sobre a sua conformidade ou desconformidade constitucional. A norma é complexa, terá de ser devidamente interpretada e, no juízo sobre a sua (in)constitucionalidade, o princípio da proporcionalidade terá de ser judiciosamente aplicado. O que nos impressiona e nos revolta é o “argumentário mercadológico” que tem sido mobilizado para contestar esta norma, sem qualquer atenção para com o valor constitucional da segurança no emprego, sem qualquer sensibilidade para com as consequências destrutivas tantas vezes resultantes de uma decisão de despedimento, sem qualquer respeito pela pessoa que há em cada trabalhador atingido pelo despedimento. Tudo secundarizado, tudo olvidado, tudo facilmente sacrificado em nome de alegados ganhos de eficiência e, quiçá, de maiores margens de lucro.

Não é essa, cremos, a ponderação de valores que a CRP obriga a efetuar. Portugal é uma República baseada na dignidade da pessoa humana, em que o trabalhador é titular de direitos fundamentais de primeira grandeza. Portugal não é uma República em que vigorem, sem mais e acima de tudo, as leis do mercado e em que o trabalhador seja livremente descartável, por mera conveniência da entidade empregadora.