José Gonçalves Machado

Natural de Paredes. Doutor em ciências jurídico-privatísticas pela Escola de Direito da Universidade do Minho, em que obteve a classificação máxima. Professor Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona. Advogado, Investigador Integrado no Centro de Estudos Avançados Francisco Suárez, Membro da INSOL Europe e do Instituto Português de Corporate Governance. 


Instrumentos de Recuperação de Empresas Pré-insolventes – Princípios Orientadores, RERE e PER é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 23 de Fevereiro de 2023.

Consulte a obra neste link.


I. A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, procurando ser obediente à Diretiva (UE) 2019/1023, transpôs para o ordenamento jurídico português o regime “cross-class cram-down” que, segundo a versão portuguesa da referida Diretiva, se traduz por “reestruturação forçada da dívida contra categorias de credores”. Trata-se de um importante mecanismo de homologação de planos de recuperação não consensuais (não aprovados por todas as categorias)[1], inspirado na Section 1129 – Confirmation of plan do Chapter 11 (Reorganization) do United States Bankruptcy Code (USBC). Por ser assim, a adequada compreensão (e crítica) da disciplina introduzida no Processo Especial de Revitalização (PER), maxime no art. 17.º-C, n. 3, al. d) e n. 4, no art. 17.º-D, n. 5 e 6, e no art. 17.º-F, n. 5, 7, 8 e 11, ambos do CIRE, não pode estar dissociada do modelo inspirador e do direito europeu.

II. De acordo com Chapter 11 do USBC [2], a homologação de um plano de recuperação não consensual contempla alguns requisitos materiais adicionais[3] face à homologação de um plano consensual. Os requisitos materiais gerais, aplicáveis aos planos de recuperação consensuais e não consensuais, são consubstanciados em dois testes: o teste do melhor interesse dos credores (“best interests of creditors”, também conhecido como “no creditor worse off test”), segundo o qual nenhum credor pode receber menos do que provavelmente receberia se o devedor fosse liquidado[4]; e o teste de viabilidade (“feasibility test”)[5], segundo o qual o devedor deverá ser capaz de cumprir, a médio e a longo prazo, as suas obrigações, incluindo as obrigações previstas no plano, por referência à capacidade de gerar receita para cobrir as despesas e os encargos previstos e à razoabilidade e adequação dessas medidas e previsões consagradas no plano. Estando em causa um plano consensual, aprovado por todas as categorias, aqueles requisitos (do melhor interesse e da viabilidade) visam proteger as partes discordantes dentro de cada classe.

III. Estando em causa um plano não consensual, além de ter de haver um suporte mínimo, a sua homologação depende da verificação de requisitos adicionais, a saber: a proibição da discriminação injusta (“no unfair discrimination”) e a necessidade de o plano ser justo e equitativo (“fair and equitable”)[6]. Acrescenta-se que, em obediência à proibição do enriquecimento sem causa e aos princípios da justiça e equidade, nenhuma categoria (ou membro dessa categoria) poderá receber mais do que o valor total do seu crédito[7]. Daí resulta que o tribunal poderá homologar o plano não consensual que obtenha o apoio de, pelo menos, uma categoria que não seja considerada “out-of-the-money” (que nada receberia em caso de liquidação), se o mesmo não conferir a ninguém mais do que o valor total do seu crédito e, em termos horizontais (isto é, por comparação com categorias pertencentes à mesma ordem de hierarquia segundo a natureza dos créditos), assegurar que a(s) categoria(s) discordante(s) não recebem menos do que outras categorias do mesmo grau de hierarquia ou ordem de preferência (proibição da discriminação injusta); e, em termos verticais (por comparação com outras categorias de hierarquia diferente) garantir que nenhuma categoria inferior recebe qualquer valor se (ou enquanto) as categorias superiores não forem integralmente satisfeitas[8] (necessidade de o plano ser justo e equitativo por respeito à absolute priority rule)[9]. Perante a ausência de consensualidade (rectius, perante um apoio mínimo), estes critérios substantivos, tendo por referência a relação entre categorias em termos horizontais e verticais, visam proteger as categorias discordantes e, reflexamente, os respetivos membros. Sendo assim, estamos perante verdadeiros “class rights” [10].

IV. No plano do direito europeu, a homologação dos planos de recuperação de empresas pré-insolventes deve respeitar os requisitos materiais gerais previstos no art. 10.º, n. 2 da Diretiva 2019/1023, a saber: a viabilidade da empresa pré-insolvente, o tratamento igual, proporcional e justo entre credores, e a salvaguarda do melhor interesse dos credores[11]. Estando em causa a homologação de um plano de recuperação não consensual, o art. 11.º da referida Diretiva estabelece que devem ser observados dois requisitos específicos: o apoio mínimo e o respeito pelas regras da prioridade absoluta ou relativa, a que acresce a regra não mais do que a totalidade dos créditos ou interesses”.

V. Quanto ao primeiro, diz-se que o acordo deve ser aprovado “por uma maioria das categorias votantes de partes afetadas, desde que pelo menos uma dessas categorias seja uma categoria de credores garantidos ou tenha precedência sobre a categoria de credores comuns não garantidos” (art. 11.º, n. 1, al. b), i), da Diretiva (UE) 2019/1023). Em alternativa, os Estados-Membros podem exigir que o acordo seja aprovado “por, pelo menos, uma das categorias votantes de partes afetadas ou, se o direito nacional assim o previr, de partes prejudicadas, que não seja uma categoria de detentores de participações nem qualquer outra categoria que, após a avaliação do devedor como empresa em atividade, não recebesse qualquer pagamento nem conservasse qualquer interesse ou, se o direito nacional assim o previr, se possa razoavelmente presumir que não receberia qualquer pagamento nem conservaria qualquer interesse se fosse aplicada a ordem normal das prioridades de liquidação nos termos do direito nacional” (11.º, n. 1, al. b), ii), da Diretiva (UE) 2019/1023).

VI. Daqui resulta que o suporte necessário é um apoio mínimo, mas significativo: o apoio pode ser reduzido a uma categoria, mas não a qualquer categoria; excluem-se as categorias dos detentores de participações sociais e as categorias “out of the money” (que, em caso de liquidação, provavelmente, não preservariam qualquer interesse nem receberiam qualquer pagamento)[12]. Para compensar a menor exigência ao nível das regras de aprovação, o legislador europeu determina que o plano de recuperação não consensual deve ainda respeitar a regra da prioridade absoluta ou a regra da prioridade relativa[13]. Sobre a primeira regra diz-se que os “Estados-Membros poderão proteger uma categoria discordante de credores afetados através da garantia de que essa categoria discordante seja paga na íntegra se o plano de reestruturação previr que uma categoria de grau inferior receba algum pagamento ou conserve algum interesse”[14]. Sobre a segunda regra, o legislador europeu estabelece que “os Estados-Membros deverão poder proteger uma categoria discordante de credores afetados através da garantia de que estes recebam um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior”[15]. A tais requisitos acresce, à semelhança do que sucede na Reorganization, que nenhuma categoria afetada pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos ou interesses[16]. Estamos em crer que este grupo de requisitos visa impedir bloqueios abusivos ou meramente estratégicos[17] à aprovação e homologação de acordos de recuperação que reúnam um apoio mínimo significativo e sejam globalmente justos para todas as categorias afetadas. Por um imperativo de justiça, o legislador europeu, seguindo de perto o modelo norte-americano, convoca o poder judicial para ultrapassar tais bloqueios e sobrepor a sua decisão à vontade daquelas categorias que, de forma irrazoável e sem causa justa, não votaram favoravelmente.[18]

VII. Olhando agora para o regime português, e comparando-o com a transposição feita por outros Estados-Membros, em especial por Espanha, sobressai a ideia de que a transposição feita pelo legislador português (relativamente ao tema em apreço) ficou muito aquém do que seria desejável. Primeiramente, a separação entre regras de formação de categorias, regras de aprovação e regras de homologação não está clara no PER: o art. 17.º-C, que trata do requerimento e formalidades, acolhe também a matéria de formação de categorias (n. 3, al. d) e n. 4); o art. 17.º-F, por seu turno, abarca uma multiplicidade de aspetos relativos à homologação: procedimento, formalidades e prazo de apresentação, conteúdo do plano de recuperação, pedido de não homologação, critérios de aprovação de planos votados por categorias e de planos não votados por categorias, critérios de homologação, efeitos da homologação e da não homologação, custas do processo, incumprimento do acordo de recuperação, e novo pedido de acesso ao PER. Ao invés de consagrar normas excessivamente extensas (o que só por si já dificulta o trabalho do intérprete) e desestruturadas (o que agrava as dificuldades de compreensão), o legislador português deveria ter optado por normas mais concisas, claras e devidamente arrumadas, autonomizando claramente as matérias. Neste aspeto, deve realçar-se o trabalho exemplar feito pelo legislador espanhol.

VIII. Desde logo, o legislador espanhol consagrou dois regimes, um geral (Livro Segundo da Ley Concursal) e um especial para microempresas (Livro Terceiro da Ley Concursal) [19]. Dentro de cada um deles, as diferentes matérias estão devidamente arrumadas, de forma clara, estruturada e detalhada. Por exemplo, no que respeita ao regime geral dos planos de reestruturação, verifica-se que as matérias da formação de categorias, aprovação e homologação estão ordenadas em Capítulos distintos: a formação de categorias consta no Capítulo III (arts. 622 a 626), as regras de aprovação no Capítulo IV (arts. 627 a 634) e as regras de homologação no Capítulo V (arts. 635 a 664). Dentro de cada um destes Capítulos a organização é clara. Quando a matéria é extensa, o legislador espanhol opta por subdividir os Capítulos em Secções e, dentro de cada Secção, trata de forma individualizada situações distintas. Isto é particularmente visível no Capítulo V (arts. 635 a 664) que trata da homologação: Secção 1ª – Regras gerais; Secção – 2ª Procedimento de homologação; Secção 3ª – Impugnação do auto de homologação; Secção 4ª – Contradição prévia à homologação judicial do plano; e Secção 5ª – Proibição de novos pedidos. Dentro da Secção 1ª o legislador dispõe, em artigos distintos, os requisitos de homologação de planos consensuais (art. 638) e os requisitos de homologação de planos não consensuais (art. 639). A boa técnica legislativa não é estranha ao legislador português noutros domínios, mas no que ao PER diz respeito, a técnica legislativa e o resultado da transposição ficam muito aquém do desejável. Naturalmente que, atenta a relevância económico-social da matéria, a inexistência de um regime suficientemente claro, estruturado e desenvolvido, contribui, de forma determinante, para a incerteza e insegurança jurídicas, com reflexo negativo na recuperação preventiva de empresas pré-insolventes e viáveis.

IX. Em termos substantivos, o legislador português foi parco quanto à formação de categorias e respetivos critérios e não muito rigoroso na definição das regras de aprovação e de homologação de planos consensuais e não consensuais. O art. 17.º-C, n. 3 do CIRE recupera o critério da natureza dos créditos previsto no art. 47.º, n. 4 do CIRE (garantidos, privilegiados, comuns e subordinados), transformando-o em critério mínimo obrigatório para efeitos de formação de categorias no âmbito do PER[20]. Depois, permite-se que aquelas categorias mínimas obrigatórias possam, facultativamente, ser subdivididas em função da existência de “suficientes interesses comuns”, formando designadamente as seguintes categorias: trabalhadores, sem distinção da modalidade do contrato; sócios; entidades bancárias que tenham financiado a empresa; fornecedores de bens e prestadores de serviços; e credores públicos. Este elenco, sendo meramente exemplificativo, permite-nos perceber o conceito de “suficientes interesses comuns” e, a partir daí, encontrar outros critérios que, num caso em concreto, podem justificar uma subdivisão. Poder-se-á atender, por exemplo, à dimensão dos sujeitos (pequenos ou grandes credores), à natureza da sua atividade (financeira ou não financeira), à duração do vínculo (credores antigos e recentes), à essencialidade do tipo de bens ou serviços para a continuidade da empresa devedora (fornecedores de serviços públicos essenciais e de matéria-prima e outros fornecedores não essenciais), ou ao esforço que, à partida, estão dispostos a fazer no âmbito do plano (credores dispostos a perdoar parte de capital e juros, credores dispostos a renegociar montantes e prazos de pagamento e credores totalmente indisponíveis para qualquer tipo de concessão).

X. Note-se que a negociação do acordo por categorias apenas é obrigatória quando o devedor é uma grande empresa. Nestes casos, por haver, tendencialmente, um elevado número de credores, a formação de categorias cumpre dois objetivos:  facilita o processo negocial e promove a cooperação intra e inter categorias. O processo negocial fica, de certo modo, facilitado porque, por um lado, o diálogo tende a ocorrer entre a empresa devedora e as diversas categorias que, naturalmente, poderão eleger um representante (ainda que, por imposição de categorias mínimas obrigatórias, possamos ter categorias com apenas um membro); e, por outro lado, na elaboração do plano, atender-se-á, fundamentalmente, às características e interesses próprios de cada categoria e não às características e interesses próprios de cada um dos seus membros. Dito de outro modo, a negociação por categorias permite que o plano possa ser discutido, dentro de certos limites, por referência a cada categoria e não por referência a cada um dos membros dessa categoria. Esta dinâmica negocial, associada à circunstância de cada categoria ter o poder de reprovar o plano (basta que uma categoria vote desfavoravelmente para que o plano se considere não aprovado), promove a cooperação entrecategorias uma vez que nenhuma delas pode ser desconsiderada (sob pena de o provado não ser aprovado). E porque o apoio de cada categoria é imprescindível para a aprovação do plano, este deverá refletir adequadamente as características e interesses próprios de cada categoria e, reflexamente, dos respetivos membros. Nessa conformidade, a votação por categorias acabará por influenciar o modo como o plano é negociado e a definição do conteúdo do mesmo. Em última análise, a formação de categorias, a que se refere o art. 17.º-C, n. 3 do CIRE, visa estabelecer um critério de justa composição e harmonização dos direitos (e interesses) em jogo.

XI. Olhando para a Ley Concursal, verifica-se que são estabelecidos critérios gerais e específicos para a formação de categorias.  No art. 623, n. 3 diz-se expressamente que os créditos da mesma natureza podem ser separados em diferentes categorias atendendo, nomeadamente, à natureza financeira ou não financeira do crédito, ao conflito de interesses que possa existir entre credores que pertençam a diferentes categorias, ou à forma como os créditos serão afetados pelo plano de reestruturação. Acrescenta ainda que quando os credores forem pequenas ou médias empresas e o plano de reestruturação implique um sacrifício para elas superior a cinquenta por cento do valor do seu crédito, devem constituir uma categoria distinta de credores. Estando em causa créditos com garantia real sobre bens do devedor, o art. 624 determina que os mesmos constituirão uma única categoria, salvo se a heterogeneidade dos bens ou direitos onerados justificar a sua separação em duas ou mais categorias. No art. 625 diz-se que os créditos de direito público formam uma (única) categoria. Como se constata, o legislador espanhol estabelece critérios objetivos de formação de categorias, procurando, assim, evitar que a formação de categorias possa servir de abrigo a situações de fraude à lei[21].

XII. No que às regras de aprovação diz respeito, verifica-se que a falta de rigor do legislador português tem dado azo a interpretações, no mínimo, criativas. Diz-se, por exemplo, que “se olharmos para o corpo no art. 17.°-F, 5, vemos que dele parece resultar que a al. c) surge como mais uma das alternativas para se considerar aprovado qualquer plano de recuperação: quer nos casos em que houve classificação dos credores em categorias distintas, quer nos demais casos. E é assim que lemos o preceito. A Diretiva 2019/1023 obriga a adotar um regime com o do art. 17.°-F, 5, a), mas não parece afastar a possibilidade de acolher outros”[22]. Salvo o devido respeito, mas não partilhamos desta visão. Desde logo, tendo sido apresentada e aprovada a formação de categorias, seria estranho que, perto do final do jogo, se alterassem as regras para aprovar o plano de recuperação, como se tais categorias não tivessem sido formadas ou fossem insignificantes no contexto da negociação, aprovação e homologação de planos consensuais e não consensuais. Aquela solução interpretativa (de aprovação de um plano por contagem de votos como se não existissem categorias e como se não existissem regras especificas de aprovação e homologação de planos votados por categorias) não consta no Chapter 11, não consta na Diretiva 2019/1023 nem em qualquer outro regime europeu que a transpôs, por uma simples razão: a votação por categorias está intimamente ligada aos critérios de homologação de planos consensuais e não consensuais, no sentido em que determinados critérios funcionam (devem funcionar) inter categorias e outros funcionam (devem funcionar) intra categorias. Como se compreende, tais critérios só fazem sentido em sede de homologação se as categorias não forem desfeitas apenas para que o plano se considere aprovado. Quando o plano votado por categorias não é aprovado, não há lugar a critérios alternativos de aprovação, mas sim a critérios alternativos de homologação de um plano não aprovado (também designado não consensual).  Mas, como oportunamente advertiu Catarina Serra[23], parece “que o art. 17.º-F, n.º 5, al. a) assenta num equívoco, erigindo em requisitos (alternativos) de aprovação do plano aquelas que, no sistema concebido pela Diretiva, são condições de homologação (confirmação) do plano e, portanto, da imposição do plano a categorias discordantes”. Tal equívoco parece justificar a apresentação de interpretações criativas que, do nosso ponto de vista, são desconformes ao direito europeu e ao modelo que lhe serviu de inspiração.

XIII. Outra desconformidade visível prende-se com o quórum exigido à aprovação do plano por todas as categorias. O legislador europeu é claro no art. 9.º, n. 6 da Diretiva 2019/1023 quando diz que o plano de reestruturação é adotado pelas partes afetadas mediante obtenção de uma maioria do montante dos respetivos créditos ou interesses em cada uma das categorias, que não pode ser superiores a 75 % do montante dos créditos ou interesses em cada categoria. Em linha com tais exigências, o art. 629 da Ley Concursal, estabelece que o plano será considerado aprovado por uma categoria de créditos afetados se mais de dois terços do valor do passivo correspondente àquela categoria tiver sido votado favoravelmente. O quórum exigível é elevado para três quartos do valor do passivo se a categoria em causa for constituída por créditos com garantia real. Diferentemente, no art. 17.º-F, n. 5, al. c), i) do CIRE, o legislador português não exige uma maioria do montante dos respetivos créditos (ou interesses) em cada uma das categorias, mas uma maioria (de dois terços) da totalidade dos votos emitidos em cada uma das categorias. Como facilmente se compreende, este quórum é substancialmente menos exigente do que aquele que é imposto pela Diretiva (e do que aquele que foi adotado pelo legislador espanhol), colocando, assim, em causa um pilar fundamental da homologação de acordos de recuperação votados por categorias de credores.

XIV. Naturalmente que a aprovação consensual é um mero indício de que o plano é justo e equitativo para todas as categorias afetadas. Se a aprovação for unânime dentro de cada categoria, ninguém questionará, certamente, que o plano é a melhor solução para todos os seus membros, ainda que lhes traga alguma desvantagem. O voto favorável acaba por suplantar a existência daquela desvantagem. A situação é distinta se dentro de cada categoria houver uma maioria e não unanimidade. Ainda assim, se há uma maioria dentro de cada categoria que apoia o plano, poder-se-á “presumir” que o acordo é globalmente justo para essa categoria e, consequentemente, para todos os seus membros. Mas para que assim seja, é necessário que se considere a totalidade dos respetivos créditos (ou interesses) em cada categoria e não apenas a totalidade dos votos emitidos em cada categoria.

Assim, ao estabelecer-se dois terços da totalidade dos votos emitidos em cada uma das categorias (não a totalidade daqueles que compõe cada categoria), está-se a desconsiderar a necessária cooperação e esforço entre os membros da categoria, em prol de uma conduta tendencialmente isolada por cada um dos membros, uma vez que já não importa atingir um consenso representativo do valor do passivo da respetiva categoria, mas somente um consenso entre aqueles que exerçam o direito de voto. Alguns membros, eventualmente apoiados pela empresa devedora, podem ter interesse afastar outros, ou em mantê-los distantes, com o objetivo de mais facilmente alcançar a aprovação com o somatório dos votos emitidos. Salta à vista que, nestes moldes, não há “garantias” de que haja uma maioria representativa dos interesses da respetiva categoria. Consequentemente, fica seriamente comprometida a base da regra da aprovação democrática, que tem em si implícita a ideia de que o acordo maioritariamente aprovado por todos os afetados é, em princípio, globalmente mais vantajoso para todos os membros da categoria porque estão em jogo interesses comuns. Se a base de representatividade democrática não assenta no total do passivo em cada categoria, perde-se o sentido originário do apoio maioritário[24]. Como veremos em seguida, tal vício afeta ainda, de um modo especial, o funcionamento adequado das regras de homologação de planos não consensuais.

XV. O último aspeto a tratar, mas não menos importante, prende-se com os critérios de homologação. Já tivemos oportunidade de referir[25] que a má técnica legislativa faz com que, de facto, tenhamos um regime desfigurado e desvirtuado, de difícil interpretação e aplicação, onde as regras de aprovação e de homologação não são claras e rigorosas, nem se encontram devidamente separadas, por um lado; e onde não se atende, de forma clara, estruturada e detalhada, às especificidades da homologação de planos consensuais e de planos não consensuais, por outro lado. Há uma manifesta sobreposição e confusão de critérios, espartilhados por vários preceitos e seus segmentos. Não podendo aqui abarcar todos os aspetos, realçamos que, para melhor interpretação do Direito aplicável à homologação de planos não consensuais (conforme o Direito europeu e o modelo norte-americano que lhe serviu de inspiração), aos critérios gerais de homologação de planos consensuais (a viabilidade da empresa devedora pré-insolvente, o tratamento igual e proporcional entre credores da mesma categoria, a salvaguarda do melhor interesse dos credores discordantes [ou proibição de tratamento menos favorável]) [26], há que atender, em especial, ao disposto na al. a) do n. 5 do art. 17.º-F e nas als. c) e d) do n. 7 do referido preceito. Aqui podemos encontrar três requisitos específicos da homologação de planos não consensuais: dois de conteúdo positivo (o apoio mínimo, mas significativo [al. a), ii) a iv), do n. 5 do art. 17.º-F], e a regra da prioridade relativa [art. 17.º-F, al. c)]) e um requisito de conteúdo negativo (nenhuma categoria de credores pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos [art. 17.º-F, al. d)]). Pela sua especial relevância, vamos atender aos dois primeiros.

XVI.  Quanto ao primeiro requisito, recorde-se que o art. 11.º, n. 1, al. b) da Diretiva 2019/1023 exige que o plano tenha sido aprovado “i) por uma maioria das categorias votantes de partes afetadas, desde que pelo menos uma dessas categorias seja uma categoria de credores garantidos ou tenha precedência sobre a categoria de credores comuns não garantidos, ou, se não for o caso, ii) por, pelo menos, uma das categorias votantes de partes afetadas ou, se o direito nacional assim o previr, de partes prejudicadas, que não seja uma categoria de detentores de participações nem qualquer outra categoria que, após a avaliação do devedor como empresa em atividade, não recebesse qualquer pagamento nem conservasse qualquer interesse ou, se o direito nacional assim o previr, se possa razoavelmente presumir que não receberia qualquer pagamento nem conservaria qualquer interesse se fosse aplicada a ordem normal das prioridades de liquidação nos termos do direito nacional”. Em qualquer dos casos, sublinhe-se que a aprovação em cada categoria resulta da formação de uma maioria do montante dos respetivos créditos ou interesses em cada uma das categorias, não superior a 75 % do montante dos créditos ou interesses em cada categoria[27].

De modo semelhante, em Espanha diz-se que o plano não consensual pode, excecionalmente, ser homologado se tiver sido aprovado por uma maioria simples de categorias, desde que pelo menos uma delas seja uma categoria de créditos que na insolvência seria qualificada como categoria de créditos com privilégio especial ou geral; ou, subsidiariamente, por uma categoria que, de acordo com a classificação de créditos legalmente prevista, possa razoavelmente presumir-se que receberia algum pagamento após avaliação do devedor em cenário de continuidade, caso em que a homologação do plano exigirá elaboração de um relatório, por um perito, sobre o valor da empresa devedora em cenário de continuidade[28]. Também aqui se continua a supor que a aprovação dentro de cada categoria ocorre quando se alcançar o voto favorável de mais de dois terços do valor do passivo da respetiva categoria, ou de, pelo menos, três quartos do valor do passivo correspondente quando se trate de categoria formada por créditos com garantia real[29].

Em Portugal, na al. a), ii) a iv), do n. 5 do art. 17.º-F), admite-se a homologação de planos não consensuais desde que “…seja[m] votado[s] favoravelmente em cada uma das categorias por mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, não se considerando como tal as abstenções, obtendo desta forma: (…) ii) O voto favorável da maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma dessas categorias seja uma categoria de credores garantidos; iii) Caso não existam categorias de credores garantidos, o voto favorável de uma maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma das categorias seja de credores não subordinados;  iv) Em caso de empate, o voto favorável de pelo menos uma categoria de credores não subordinados”.

Saltam logo à vista, pelo menos, quatro divergências fundamentais entre a solução portuguesa e as soluções consagradas no art. 11.º da Diretiva 2019/1023 e na Ley Concursal. A primeira, prende-se com o facto de o mecanismo de homologação de planos de recuperação não consensuais ser (ou dever ser) de natureza excecional[30]. Há uma clara preferência do legislador europeu pela aprovação consensual. Não sendo possível (e só neste caso), e verificados requisitos adicionais, poderá o tribunal proceder à homologação do plano, vinculando categorias afetadas e discordantes. O legislador espanhol assume esta perspetiva de uma forma expressa no art. 839 da Ley Concursal. O legislador português assume exatamente o inverso, transformando o regime excecional no regime regra, o que se extrai do aligeiramento do requisito mínimo de aprovação. A segunda divergência prende-se exatamente com este aligeiramento. O legislador português exige o voto favorável em cada uma das categorias de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e não, como deveria ser, de uma maioria do montante dos respetivos créditos ou interesses em cada uma das categorias apoiantes. Em terceiro lugar, o legislador nacional não cuida da necessidade de garantir que, pelo menos, uma das categorias apoiantes não é uma categoria “out of the money”. Caso não existam categorias de credores garantidos, basta que se reúna o voto favorável de uma maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma das categorias seja de credores não subordinados. Sucede que esta categoria de credores não subordinados pode ser uma categoria “out of the money” que, em caso de liquidação, provavelmente não receberia qualquer pagamento nem conservaria qualquer interesse. Em quarto lugar, a avaliação da empresa que, à luz da Diretiva e do direito espanhol, é obrigatória para a situação que acabamos de referir (de apoio de pelo menos uma das categorias que não seja “out of the money”) e que deve ser realizada numa perspetiva de continuidade da empresa devedora, é, no caso português, facultativa e omissa quanto ao cenário de avaliação a ter em conta. Resulta do disposto no art. 17.º-F, n. 8, al. b) que o juiz pode (não é obrigado a) determinar a avaliação da empresa por um perito, e tal só poderá acontecer (de acordo com a letra da lei) se for pedida a não homologação do plano de recuperação por um credor discordante. Já tivemos oportunidade de sustentar noutra ocasião[31] que, mesmo que não seja apresentado qualquer pedido de não homologação, o juiz pode (e nesta hipótese, deve) solicitar a realização de uma avaliação da empresa por um perito[32]. Estando em causa a homologação de um plano não consensual, “é preciso que o tribunal tenha mais cautela de modo a aferir, acima de tudo, se o plano efetivamente respeita os requisitos substanciais”[33].

XVIII. Quanto ao segundo requisito especifico da homologação de planos não consensuais, sublinhe-se que o legislador português optou por introduzir a regra da prioridade relativa (em detrimento da regra da prioridade absoluta), estabelecendo que, à luz do plano, “as categorias votantes discordantes de credores afetados [devem receber] um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior” (art. 17.º-F, al. c) do CIRE). Têm sido esgrimidos vários argumentos a favor e contra esta opção sugerida pelo legislador europeu[34]. Ponderados os argumentos[35], podemos concluir, aderindo às posições de Bob Wessels[36], Stephen Madaus[37], e Riz Mokal e Ignacio Tirado, que a regra prioridade relativa, apesar de ter implícita uma derrogação (ou mitigação) da ordem de preferência dos créditos, ainda corresponde a uma solução justa e equilibrada, sensível ao caso concreto[38].

Tendo optado pela regra da prioridade relativa, o legislador português poderia e deveria ter ido mais longe relativamente aos sócios. Isto porque, tal regra foi especialmente concebida a pensar nos sócios, sobretudo nos casos em que o seu contributo é uma peça chave no plano de recuperação e na consequente continuidade da empresa[39]. No Considerando 56 da Diretiva 2019/1023 diz-se expressamente que “os Estados-Membros deverão poder derrogar a regra da prioridade absoluta, por exemplo caso se considere justo que os detentores de participações conservem certos interesses no âmbito do plano, apesar de uma categoria de grau superior ser obrigada a aceitar uma redução dos seus créditos, ou que os fornecedores essenciais abrangidos pela disposição relativa à suspensão das medidas de execução sejam pagos antes de categorias de credores de grau superior”. Se considerarmos que os sócios que financiem a empresa podem hoje beneficiar de um privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobiliário geral concedido aos trabalhadores[40], seria conveniente que, em sede de homologação, houvesse uma disposição especial dedicada aos sócios, de modo a incentivar o seu envolvimento na recuperação da empresa, incluindo nos casos em que o acordo não é consensual.

IX. O problema agrava-se se tivermos em linha de conta que a lei nacional não contempla qualquer regime vocacionado para as Micro, Pequenas e Médias Empresas (PME) e que, nestes casos, o contributo dos detentores de participações sociais (enquanto tais) tende a ser particularmente relevante, já que o seu papel na empresa (pelo know-how que possui e por, frequentemente, serem o rosto da firma) pode ser (nalguns casos) insubstituível. Pelo que, nestes casos, impunha-se que a reestruturação forçada não pudesse acontecer sem o consentimento dos sócios. Se souberem de antemão que têm uma palavra a dizer, mais facilmente os sócios se dispõem a contribuir para uma solução globalmente mais vantajosa para todos. Tal como está, se uma PME optar pela classificação por categorias, o plano de recuperação poderá ser homologado contra a vontade dos sócios[41] , ainda que estes sejam determinantes para a viabilidade da empresa e o plano preveja a sua exclusão ou afete seriamente a sua posição. Em última análise, o plano de recuperação poderá traduzir-se numa forma encapotada de atender a interesses de curto prazo, garantindo uma melhor posição num processo de insolvência que se deseja que aconteça a breve trecho.

XX. Em conclusão, dir-se-á que o mecanismo “cross-class cram-down”, introduzido no PER por via da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, é um caso de estudo que promete ficar na história do direito insolvencial português (não pelas melhores razões). A história certamente atestará que o legislador teve ao seu dispor todo um manancial de estudos prévios e trabalhos preparatórios que antecederam a feitura da Diretiva 2019/1023 e a sua transposição para vários ordenamentos jurídicos europeus. Além dos constrangimentos provocados pela COVID-19, que justificou a prorrogação do prazo de transposição, nenhuma outra razão objetiva se encontra para que o resultado carreado pela referida Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, levante mais dúvidas de que certezas. Quanto mais esforço se exige ao intérprete, no sentido de aplicar e fazer cumprir o bom direito, mais aquele suspira por uma intervenção legislativa. Não temos dúvidas em afirmar que o sistema pré-insolvencial de recuperação de empresa precisa de uma revisão integral e profunda.  Não se ouse dizer que é urgente fazer tal revisão (o que é manifesto, dada a relevância da matéria e a gravidade dos problemas em causa), sob pena de o legislador, apressadamente, “mexer em qualquer coisa” com o objetivo de calar as vozes dissonantes. Aqui ao lado, em Espanha, tudo foi incomparavelmente diferente (para melhor). Em todo o caso, é inegável que a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, introduziu um mecanismo de homologação de planos de recuperação não consensuais no âmbito do PER, mas fê-lo de um modo muito próprio. O título da presente reflexão sintetiza bem o nosso desabafo final: a 11 de janeiro de 2022 o legislador português disse: sai um “’cross-class cram-down’ à portuguesa!”.


[1] Sobre a diferença entre planos consensuais e não consensuais, no direito norte-americano, no direito europeu e no direito português, José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores no âmbito dos instrumentos pré-insolvenciais de recuperação de empresas, Edição de Autor, 2022, p. 478 ss; no direito norte-americano, Nicolaes Tollenaar, Pre-Insolvency Proceedings: A Normative Foundation and Framework, Oxford University Press, 2019, p. 128-142; no Direito europeu, José Gonçalves Machado, Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, Almedina, 2023, p. 332 e s; Michael Veder, «Article 11 – Cross-class cram-down», European Preventive Restructuring, Directive (EU) 2019/1023, Article-by-Article Commentary, C. H. Beck, München, 2021, p. 176-189; em Portugal, Catarina Serra, «The Directive on Restructuring and Insolvency from a portuguese perspective – a brief approach to preventive restructuring frameworks», La Directiva de la (UE) 2019/1023 sobre insolvencia (estudios desde diferentes ordenamientos), Tirant Lo Blanch, 2021, p. 236-247; «As Alterações ao Processo Especial de Revitalização: um novo processo?», O Plano de Recuperação e Resiliência para a Justiça Económica e a transposição da Diretiva 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, Conferência PRR para a Justiça Económica, 2022, p. 14-31; e José Gonçalves Machado, Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, cit., p. 358 e s.

[2] Sec. 1129(a) e (b) do USBC.

[3] Cfr. Isaac Pachulski, «The Cram Down and Valuation under Chapter 11 of the Bankruptcy Code», North Carolina Law Review, Vol. 58, Nr. 5, 1980, p. 925-965; Lawrence King, «Chapter 11 of the 1978 Bankruptcy Code», American Bankruptcy Law Journal, Vol. 53, Nr. 2, 1979, p. 107-132; e Martin Klein, «The Bankruptcy Reform Act of 1978», American Bankruptcy Law Journal, Vol. 53, Nr. 1, 1979, p. 1-34. Na jurisprudência norte-americana ver, por exemplo, o caso Lett, 632 F.3d 1216, 1228 (11º Cir. 2011).

[4] Se as partes consentirem na afetação dos seus direitos admite-se que possam receber menos do que receberiam em caso de liquidação, mas esse consentimento não vincula as partes discordantes dentro da categoria (Neste sentido, Nicolaes Tollenaar, Pre-Insolvency Proceedings: A Normative Foundation and Framework, cit., p. 129).

[5] Cfr. Nicolaes Tollenaar, Pre-Insolvency Proceedings: A Normative Foundation and Framework, cit., p. 129-142.

[6] Lourdes Garnacho Cabanillas, «La pretendida armonización del derecho pre-concursal europeo y su evidente acercamiento al sistema concursal norteamericano», Reestructuración y Gobierno Corporativo en la proximidad de la insolvencia, La Ley, Wolters Kluwer, 2020, p. 133-135; e Nicolaes Tollenaar, Pre-Insolvency Procee-dings: A Normative Foundation and Framework, cit., p. 129.

[7] Por exemplo, no caso Evans Prods. Co., 65 B.R. 870, 873 (Bankr. S.D. Fla. 1986), pese embora os acionistas tivessem rejeitado o plano, o mesmo acabou por ser confirmado porque a empresa devedora não estava solvente e os credores das categorias superiores não recuperavam mais de cem por cento dos seus créditos. Já no caso Cranberry Hnberry Hill Assoes. L.P, 150 B.R. 289, 291 (Bankr. D. Mass. 1993) o plano foi considerado injusto porque alguns credores não receberiam cem por cento do seu crédito.

[8] A jurisprudência e a doutrina norte-americanas admitem que a absolute priority rule pode ser afastada nos casos em que o contributo de categorias mais ou menos graduadas for indispensável à recuperação da empresa devedora e estiver assegurado, por esta via, que os credores discordantes são devidamente compensados e que todos recebem, pelo menos, o mesmo que receberiam se a empresa fosse liquidada. Na jurisprudência, por exemplo, Atlas Pipeline Corp., 39 F. Sup. 846, 848 (W.D. La. 1941); Lehigh & New Eng. Ry. Co., 657 F.2d 570, 581 (3d Cir. 1981); Genesis Health Ventures, Inc., 266 B.R. 591, 618 (Bankr. D. Del. 2001); Union Fin. Servs. Grp., 303 B.R. 390, 422–23 (Bankr. E.D. Mo. 2003); Armstrong World Indus. Inc., 432 F.3d 507, 514 (3d. Cir. 2005); Journal Register Corp., 407 B.R. 520, 525, 529–30 (Bankr. S.D.N.Y. 2009); e Crossing, LLC, 2012 Bankr LEXIS 365 (Bankr ED NC 27 January 2012). Na doutrina, Anthony Casey, «The Creditors’ Bargain and Option-Preservation Priority in Chapter 11», University of Chicago Law Review, Vol. 78, Nr. 3, 2011, p. 759-807; Douglas Baird, «Priority matters: absolute priority, relative priority, and the costs of bankruptcy», cit., p. 788-829; Douglas Baird /Anthony Casey, «Bankruptcy Step Zero», The Supreme Court Review, Vol. 2012, Nr. 1, 2013, p. 203-231; Douglas Baird / Donald Bernstein, «Absolute Priority, Valuation Uncertainty, and the Reorganization Bargain», The Yale Law Journal, Vol. 115, Nr. 8, 2006, p. 1930-1970; Douglas Baird / Robert Rasmussen, «Boyd’s Legacy and Blackstone’s Ghost», The Supreme Court Review, Vol. 1999, 1999, p. 393-434; Douglas Baird / Thomas Jackson, «Bargaining after the Fall and the Contours of the Absolute Priority Rule»,, University of Chicago Law Review, Vol. 55, Nr. 3, 1988, p. 738-789; Edward Levi / James Moore, «Bankruptcy and Reorganization: A Survey of Changes. III», cit., 1938, p. 398-423; e James Bonbright /Milton Bergerman, «Two Rival Theories of Priority Rights of Security Holders in a Corporate Reorganization», cit., p. 127-165.

[9] Nicolaes Tollenaar («The European Commission’s Proposal for a Directive on Preventive Restructuring Proceedings», Insolvency Intelligence, Vol. 30, Nr. 5, 2017, p. 68) sublinha que, para que uma categoria possa ser considerada integralmente paga, o pagamento não precisa ser feito em dinheiro, mas pode ser feito, por exemplo, através da emissão de instrumentos financeiros (ações ou obrigações) com um valor de mercado igual ao valor nominal dos créditos.

[10] Por exemplo, no caso Evans Prods. Co., 65 B.R. 870, 873 (Bankr. S.D. Fla. 1986), pese embora os acionistas tivessem rejeitado o plano, o mesmo acabou por ser homologado porque a empresa devedora estava em dificuldades e os credores das categorias superiores não recuperavam mais de cem por cento dos seus créditos.

[11] Para mais desenvolvimentos, José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, p. 486 e s; Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, cit., p. 317e s.

[12] Nicolaes Tollenaar («The European Commission’s Proposal for a Directive on Preventive Restructuring Proceedings», cit., p. 69) observa que a exigência, nos termos da legislação norte-americana, de que, pelo menos, uma categoria prejudicada deve aceitar o plano, não atende a nenhum objetivo político relevante e, pelo contrário, levou a situações de abuso. Por isso, tal como sublinha o autor citado, o American Bankruptcy Institute recomendou, no contexto da reforma do Chapter 11, reformular esse requisito.

[13] Considerando 55 e art. 11.º, n. 1, al. c) e n. 2 da Diretiva (UE) 2019/1023.

[14] Considerando (55) da Diretiva (UE) 2019/1023.

[15] Ibidem.

[16] Considerando (56) e art. 11.º, n. 1, al. d) da Diretiva (UE) 2019/1023.

[17] Bob Wessels («A reply to professor De Weijs et al.», Bob Wessels Blog, 2019) e Stephen Madaus («Is the Relative Priority Rule Right For Your Jurisdiction: A simples guide to RPR», Working Paper, Nr. 1,2020; e «Die neue European Relative Priority Rule der Restrukturierungsrichtlinie – Das Ende des europäischen Insolvenzrechts», 2019) sustentam que à luz da rigidez da regra da prioridade absoluta e do grande número de credores preferenciais (garantidos e privilegiados), em muitos casos, seria altamente improvável a adoção de um plano de reestruturação, por não ser possível satisfazer plenamente os interesses desses credores, normalmente interessados em satisfazer o seu crédito da forma mais rápida possível. Nesse contexto, tais credores unir-se-iam para, em conjunto (como categoria) vetarem o plano de recuperação pré-insolvencial se alguma categoria de partes afetadas de grau inferior recebesse algum valor sem que o seu crédito, primeiramente, fosse satisfeito na íntegra. Como tal, os detentores de participações sociais, enquanto categoria, não seriam incentivados a promover a reestruturação preventiva, o que, naturalmente, levantaria obstáculos significativos ao cumprimento do interesse na recuperação de empresas pré-insolventes e viáveis. Por conseguinte, a regra da prioridade absoluta não funcionaria como critério adequado e adequável para promover a discussão sobre o que, em concreto, tendo em conta a relevância do contributo dos detentores de participações sociais, por exemplo, seria necessário para se alcançar um plano de recuperação justo e equilibrado. Ao invés, a prioridade relativa permitira alcançar esse equilíbrio, protegendo, designadamente, os detentores de participações sociais.

[18] A justificação para a intervenção do poder judicial assenta na tutela dos interesses particulares em jogo e na tutela do interesse publico subjacente ao primado da recuperação. Para mais desenvolvimentos, José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores no âmbito dos instrumentos pré-insolvenciais de recuperação de empresas, MLBooks, 2022, p. 555 e s.; Instrumentos de Recuperação de Empresas Pré-insolventes: Princípios Orientadores, RERE e PER, Almedina, 2023, p. 379 s.

[19] Este contempla uma fase inicial de abertura e negociação (arts. 685.  a 696.) e, consoante a finalidade a alcançar, subdivide-se depois num “Procedimiento de continuación” (art. 697. a 704.) e num “Procedimiento de liquidación” (arts. 705. a 720.), respondendo assim a uma necessidade reconhecida pelo legislador europeu (já que as Micro, Pequenas e Médias Empresas (PME), representam 99 % da totalidade das empresas da União). Criticando a ausência de um mecanismo direcionado às PME no ordenamento jurídico português, Catarina Serra, «Enquadrar a recuperação das PME (rectius: MPE) à luz da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro», Revista de Direito Comercial, 2022-02-28, p. 449-486; «Nova reestruturação de empresas: perspectivas e coordenadas em tema de Micro e Pequenas Empresas (para depois da Lei n.° 9/2022, de 11 de Janeiro)», VI Congresso de Direito das Sociedades, Almedina, 2022, p. 85-112; e «The Directive on Restructuring and Insolvency from a portuguese perspective…», cit., p. 234-235.

[20] Tome-se cuidado para não se confundir as classes de créditos definidas no art. 47.º, n. 4 do CIRE, referentes ao processo de insolvência, com as categorias referidas no art. 17.º-C, n. 3 do CIRE, referentes ao PER. O diferente contexto (insolvencial e pré-insolvencial) ajuda a explicar as diferenças. As classes de créditos definidas no art. 47.º, n. 4 do CIRE são impostas ex lege e não admitem subdivisões como se prevê no art. 17.º-C, n. 3 do CIRE. Aquelas classes de créditos funcionam num sistema votação individual, focado na primazia da vontade dos credores, ao passo que as categorias referidas nesta última norma operam num modelo de votação em grupos (art. 17.º-C, n. 3 do CIRE), voltado para uma procura de consenso entre a empresa devedora e os credores (e outros interessados) que permita alcançar a recuperação da empresa devedora. No primeiro caso, as maiorias necessárias são apuradas em função do somatório de todos os votos emitidos; no segundo caso, as maiorias necessárias são apuradas em função do somatório de todos os votos emitidos dentro de cada categoria, exigindo-se que cada uma deles vote maioritariamente em sentido favorável para que exista consenso.

[21] Advirta-se, porém, que a construção de categorias de credores com base no critério da “comunidade de interesses” parece introduzir um risco de subjetividade e possíveis comportamentos abusivos de multiplicação de categorias separadas, em atenção aos diferentes interesses em jogo com o objetivo de fragmentar o voto. Neste sentido, Juana Pulgar Ezquerra, «Gobierno Corporativo y Reestructuración Preventiva: La Directiva UE 2019/1023», Reestructuración y Gobierno Corporativo en la proximidad de la insolvência, Wolters Kluwer, 2020, p. 94.

[22] Alexandre de Soveral Martins, «Quóruns de aprovação (no PER dos arts. 17. 0-A a 17A-H)», Julgar, Nr. 48, 2022, p. 170-171. Parece ir no mesmo sentido, Letícia Marques Costa, «O Processo Especial de Revitalização com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro», Revista Electrónica de Direito, Nr. 3, Vol. 9, 2022, p. 92. Em sentido oposto, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8ª Ed., Almedina, 2022, 497-499.

[23] «As Alterações ao Processo Especial de Revitalização: um novo processo?», cit., p. 26.

[24] Sobre o tema da justificação democrática e a necessidade de a mesma ser complementada por regras adicionais, José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 463 e s.; e Nicolaes Tollenaar, Pre-Insolvency Procee-dings: A Normative Foundation and Framework, cit., p. 60-69.

[25] José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 555 e s; Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, cit., p. 379 e s.

[26] José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 555 e s; Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, cit., p. 379 e s.

[27] Art. 9.º, n. 6 da Diretiva 2019/1023

[28] Art. 639 da Ley Concursal.

[29] Art. 629 da Ley Concursal.

[30] Neste sentido, Catarina Serra, «As Alterações ao Processo Especial de Revitalização: um novo processo?», cit., p. 24-26, e Michael Veder, «Article 11 – Cross-class cram-down», cit., p. 177-182.

[31] José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 563 e s; Instrumentos de recuperação de empresas pré-insolventes, cit., p. 386 e s.

[32] Sobre os requisitos da avaliação, José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 566-571.

[33] José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 565.

[34] Ibidem, p. 512 e s.

[35] Ibidem.

[36] «A reply to professor De Weijs et al.», Bob Wessels Blog, 2019.

[37] «Is the Relative Priority Rule Right for Your Jurisdiction: A simples guide to RPR», Working Paper, Nr. 1,2020.

[38] «Has Newton had his day? Relativity and realism in European restructuring», Butterworths Journal of International Banking and Financial Law, April, 2019, p. 233-235.

[39] José Gonçalves Machado, O dever de promover a negociação e a responsabilidade civil dos gestores…, cit., p. 391 e s.

[40] David Sequeira Dinis («Stand-still, cláusulas ipso facto e new money após a transposição da Diretiva», ConferênciaO Plano de Recuperação e Resiliência para a Justiça Económica e a transposição da Diretiva 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho’, Ministério da Justiça, 2022, p. 61; «Financiamento no Quadro do Processo Especial de Revitalização», Julgar Nr. 48, 2022, p. 142), critica a opção do legislador em apenas conceder tal privilégio, e não conceder a “proteção” a que se refere no n. 4 do art. 17.º-H, de modo que pudessem gozar de um “crédito sobre a massa insolvente, até um valor correspondente a 25 /prct. do passivo não subordinado da empresa à data da declaração de insolvência, caso venha a ser declarada a insolvência da empresa no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de recuperação”. 

[41] Catarina Serra, «As Alterações ao Processo Especial de Revitalização: um novo processo?», cit., p. 27, «The Directive on Restructuring and Insolvency from a portuguese perspective…», cit., p. 246.