João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


Consulte a sua obra neste link.


Ao que parece, está em vias de ser aprovada pelo parlamento a chamada “Agenda do Trabalho Digno”, contendo um leque bastante alargado de alterações às nossas leis do trabalho, máxime ao Código do Trabalho (CT). A meu ver, uma das alterações mais relevantes vai consistir no aditamento de um novo n.º 3 ao art. 337.º do CT, com o seguinte teor: «Os créditos do trabalhador, referidos no n.º 1, não são suscetíveis de extinção por meio de remissão abdicativa».

Trata-se de uma alteração que pode contrariar uma prática empresarial que se foi implantando entre nós, consistente em, aquando da cessação do contrato, o trabalhador subscrever um qualquer documento através do qual declara “renunciar a qualquer outro direito que tenha, ou possa ter, sobre a entidade empregadora”, “nada mais ter a exigir da entidade empregadora”, “estar pago de tudo quanto lhe era devido e abdicar de qualquer outra importância”, etc. Em geral, estas afirmações têm contado com bastante tolerância por parte dos nossos tribunais, com base no argumento, altamente discutível, de que, como o contrato de trabalho terminou ou está em vias de terminar, a subordinação jurídica do trabalhador em relação ao empregador também acabou ou está em vias de acabar e, daí, o trabalhador deve ser tratado como qualquer outro credor, podendo, como tal, dispor livremente dos seus direitos, inclusive renunciando aos mesmos perante o empregador, através das ditas “remissões abdicativas”[1].

Pela minha parte, não hesito em considerar que aquela é, seguramente, uma das alterações normativas mais positivas trazidas pela Agenda do Trabalho Digno. E até cheguei a crer que esta poderia ser uma alteração relativamente consensual, porque a injustiça inerente à aceitação, sem reservas, da validade de tais renúncias me parece evidente. Puro engano! As reações que, no espaço mediático, vão surgindo em relação a esta alteração legislativa desfazem esta cândida ilusão. Sirva-nos, a título de exemplo, o recente e muito interessante texto de Ana Rita Ferreira (advogada na Dower Law Firm), disponível em https://hrportugal.sapo.pt, intitulado «Atenção nas cessações de contratos de trabalho. Os trabalhadores já não podem prescindir dos seus créditos laborais».      

O texto em causa não deixa de ser curioso, até por exprimir, creio, um modo de pensar, de olhar e de conceber as relações laborais bastante arreigado, sobretudo em certos meios empresariais. Um modo de pensar que assume até contornos algo paradoxais, porque acaba por concluir, não raro, que conceder mais direitos aos trabalhadores ou, como sucede no caso vertente, impedir que os trabalhadores abdiquem dos seus créditos laborais, é uma solução que, bem vistas as coisas, seria má para os próprios trabalhadores…

Assim sucede no caso vertente, a propósito desta alteração legislativa. No texto em apreço, não deixa, claro, de se assinalar a “bondade da norma”, a sua teleologia, as justas preocupações que a animam e lhe dão corpo. Mas, feito isso, lá vem o habitual alerta para que, “feita uma análise ponderada da alteração em questão”, o resultado é, claro está, o de que “os problemas que se lhe associam afiguram-se superiores às vantagens que se lhe podem reconhecer”.

         E quais são os tais problemas que se associam à nova norma legal, a tal ponto que sobrelevam as suas vantagens? Sobretudo um, o de poder contribuir para dificultar a conciliação judicial. Muitas vezes, diz-se, o litígio termina por via de tal conciliação, que se acaba por traduzir numa transação, composta por cedências de ambas as partes, sendo que, amiúde, nestas transações o empregador exige que seja aposta uma cláusula que consubstancia uma remissão abdicativa, na qual o trabalhador renuncia a todo e qualquer crédito laboral – mesmo que seja um diferente do discutido naquele processo –, ficando assim impedido de vir novamente exigir créditos laborais ao empregador. Em suma, alega-se que a “vertente conciliatória do processo” resultará prejudicada por esta nova norma proibitiva da remissão abdicativa, na medida em que o empregador não se sentirá estimulado a efetuar essa conciliação, dado que a renúncia do trabalhador a outros créditos não é permitida – e, por via disso, também resultarão prejudicados, na prática, os direitos dos trabalhadores, que ao menos em parte poderiam ser satisfeitos por via de tal conciliação.

         Não posso acompanhar este raciocínio, bem como a conclusão negativa que do mesmo decorre em relação à bondade da alteração legislativa em apreço. Para mim, é claro que a preocupação do legislador, ao aditar este n.º 3 ao art. 337.º do CT, não se centrou na conciliação judicial, não se focou numa eventual transação feita no tribunal, quando o trabalhador está assistido por um advogado e sabendo-se que a tentativa de conciliação é presidida por um juiz, visando obter um “acordo equitativo”, como se lê no art. 51.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho. Não. A preocupação do legislador situa-se num outro ponto, num outro local, num outro momento, a montante de qualquer ação judicial. A preocupação da lei centra-se, creio que com inteira justiça, no espaço da empresa e no momento em que o contrato de trabalho que liga um trabalhador ao seu empregador está em vias de se extinguir ou acabou de se extinguir. É aí e é então que, amiúde, o empregador solicita/exige que o trabalhador, ao receber algumas importâncias a que tem direito, tais como o salário relativo ao último mês de trabalho prestado, assine a dita declaração de remissão abdicativa, renunciando a todos os demais direitos que eventualmente possua em relação à sua ex-entidade empregadora.

         Aqui chegados, não deixa de ser estranho que a bondade desta solução legislativa seja questionada em nome das vantagens de valorizar a conciliação em sede judicial. É que, repare-se, se o trabalhador assinar essas declarações de remissão abdicativa e se as mesmas forem tidas como válidas, então esse trabalhador renuncia aos seus créditos e, portanto, nem sequer consegue aceder ao tribunal, porque o mesmo lhe dirá que ele, fosse ou não credor de tais importâncias, a elas terá renunciado validamente. E, com isto, o empregador consegue eximir-se facilmente, sem qualquer conciliação ou transação, ao cumprimento das suas obrigações perante o trabalhador – a obrigação de pagar o salário-base do trabalhador, a obrigação de pagar os créditos retributivos relativos a férias ou Natal, a obrigação de pagar o trabalho suplementar ou noturno por este realizado, a obrigação de pagar outro tipo de importâncias, inclusive de natureza não retributiva (como, por exemplo, o subsídio de refeição), a obrigação de lhe pagar as compensações devidas em virtude, por exemplo, da caducidade do contrato a termo, etc.

         O que a nova regra pretende, e bem, é evitar que, através deste tipo de declarações – extorquidas a um (ex-)trabalhador não raras vezes fragilizado pela perda do emprego, muitas vezes mal informado, que carece, por vezes com urgência, de receber aquela verba que o empregador lhe está a disponibilizar (contanto, é claro, que o trabalhador assine a tal declaração de remissão abdicativa…) –, esse trabalhador acabe por renunciar a direitos que, amiúde, lhe são conferidos por normas imperativas e fique, por via disso, impedido de vir a demandar judicialmente o seu (ex-)empregador. O problema, repete-se, não está na conciliação judicial, o problema situa-se a montante, está em garantir que o trabalhador conserva intacto o direito de, no prazo legal – um ano após o dia seguinte ao da cessação do contrato, como decorre do n.º 1 do art. 337.º do CT – se dirigir ao tribunal, para tentar fazer valer os seus direitos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação.

         A conciliação, por muito vantajosa que se mostre, não é, aqui, o valor primacial. O valor que importa salvaguardar é representado pelos direitos do trabalhador, muitos deles, aliás, com o estatuto jurídico-constitucional de direitos fundamentais (como sucede, desde logo, mas não apenas, com o direito ao salário), evitando que os mesmos se esfumem mediante simples declaração emitida (rectius: subscrita) pelo trabalhador, no cenário acima esboçado. Pela minha parte, nada tenho a opor a um sistema que viabilize transações judiciais, feitas de concessões recíprocas em torno de direitos controvertidos, sob a égide de um juiz e com o trabalhador a ser assessorado por um advogado. Mas, first things first! Para que isto possa suceder, importa manter vivos os direitos desse trabalhador enquanto os mesmos não prescrevem, o que passa pela necessidade de combater a praga das “remissões abdicativas” que se espalhou na nossa praxis empresarial.

         Sim, o pragmatismo é importante, mas, em doses excessivas, é sabido que o mesmo pode resvalar para a genuflexão. O que não se pode é jogar com o argumento da conciliação para autorizar que o trabalhador abdique, em sede extrajudicial, dos seus direitos – até porque, se assim suceder, se o trabalhador renunciar validamente, através das usuais remissões abdicativas, aos seus direitos, não há depois conciliação que o salve. O que há é incumprimento, despudorado, das obrigações do empregador em matéria laboral – e isso é intolerável e não pode mais ser tolerado por uma ordem jurídica que assente no princípio do trabalho digno.


[1] Para desenvolvimentos a este propósito, permito-me remeter para um meu outro texto, também disponível neste Observatório, intitulado «Da remissão abdicativa em Direito do Trabalho: nótula a propósito de um Acórdão recente do STJ».