GUILHERME MACHADO DRAY

Advogado e Professor de Direito do Trabalho e Direito Comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

Investigador do Centro de Investigação de Direito Privado, Presidente da Assembleia Geral do Instituto de Direito do Trabalho e membro da Comissão de Redação da Revista da Ordem dos Advogados.
Foi chefe do Gabinete do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (2005-2009) e do Gabinete do Primeiro Ministro português (2009-2011).


Direito do Trabalho e Cidadania – O Sentido do Direito do Trabalho é a mais recente obra de sua autoria, publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 5 de Maio 2022.

Consulte a obra neste link.


A ideia de cidadania no trabalho ou de citizenship at work está hoje sedimentada no Mundo Ocidental, relativamente às relações de trabalho ([i]).

A ideia de cidadania no trabalho assenta numa premissa simples: não obstante trabalhar sob as ordens e direção do empregador, o trabalhador não deixa de ser um cidadão e não perde os seus direitos de cidadania. Trata-se de uma consequência direta do conceito humanista da relação de trabalho e do valor da dignidade da pessoa, que fazem parte do Mundo Ocidental.

Apesar de se assumir como trabalhador subordinado, o cidadão que o faz continua a poder expressar livremente as suas opiniões políticas ou religiosas no trabalho; continua, também, a ter direito à sua integridade física e moral; mantém o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à confidencialidade de mensagens que envie ou receba, nomeadamente através de correio eletrónico; e deve continuar a ser tratado em condições de igualdade, sem ser discriminado e ou assediado, moral ou sexualmente.

A ideia de Cidadania no Trabalho permite aprofundar estes temas, conferindo unidade axiológica aos regimes parcelares dos direitos de personalidade, incluindo a liberdade de expressão e o direito à privacidade, e da igualdade e não discriminação.

Por outro lado, e não menos importante, a ideia de Cidadania no Trabalho faz a ponte entre o Direito do Trabalho dos países da common law (v.g. Estados Unidos da América) e os da civil law (Europa Continental), aproximando as profundas diferenças que entre eles existem, nomeadamente em matéria de cessação do contrato de trabalho.

No essencial, existe uma marcada diferença entre os ordenamentos romano-germânicos (civil law), marcados pelo princípio da segurança no emprego e pela proibição de despedimentos sem justa causa, e os anglo-saxónicos (common law), que assentam na doutrina do “employment at will”. À luz desta última doutrina, os despedimentos sem justa causa são admissíveis, podendo o empregador despedir o trabalhador, por uma boa razão, por uma má razão, ou sem qualquer razão que o justifique. Ao passo que na Europa Continental se aposta na segurança no emprego e na proibição de despedimentos sem motivo atendível, nos países anglo-saxónicos o despedimento é livre e imotivado.

A ideia de Cidadania no Trabalho estreita esta diferença.

Com efeito, mesmo nos países da common law, apesar da doutrina do employment at will, protege-se a liberdade de expressão e o direito à privacidade do trabalhador, mesmo no contexto do trabalho. Por outro lado, proscreve-se a discriminação em função do género, etnia, orientação sexual, filiação sindical ou convicção política, assim como se proíbe o assédio no trabalho, em particular o assédio sexual.

Ou seja, a citizenship at work é protegida.

A ideia de Cidadania no Trabalho tem por isso esta virtude acrescida: permite unir dois sistemas que, tradicionalmente, no domínio da regulação laboral, tendem a estar separados. A defesa dos direitos de personalidade e a aplicação do princípio da igualdade no âmbito das relações de trabalho fazem parte da ideia de Direito presente em ambas as famílias jurídicas.

A título meramente exemplificativo:

  1. A afirmação da liberdade de expressão no local de trabalho, plenamente adquirida na Europa, tem vindo a ser afirmada pelo U.S. Supreme Court desde os anos 60 do século passado. No caso Pickering v. Board of Education (1968) ([ii]), o Supreme decidiu que o despedimento de um Professor que publicou num jornal críticas ao uso de dinheiros públicos pela Escola em que trabalhava era ilícito, pois o mesmo atuou ao abrigo da sua liberdade de expressão. No caso Rankin v. McPherson (1987) ([iii]) o Supreme concluiu que a trabalhadora que proferiu um comentário ofensivo para com o então Presidente dos Estados Unidos da América, em conversa com outra colega de trabalho, não poderia ser despedida por tal motivo, igualmente por estar a atuar ao abrigo da sua liberdade de expressão;
  2. No mesmo sentido, o U.S. Supreme Court vem desde há muito defendendo a proscrição do assédio sexual, igualmente protegido nos países da Europa. No caso Meritor Saving Bank v. Vinson (1986) ([iv]) o Supreme reconheceu que o assédio sexual que resulta num ambiente de trabalho hostil é ilegal, porque constitui uma violação do Title VII do Civil Rights Act of 1964;
  3. O mesmo sucede quanto ao direito à reserva da privacidade, relativamente a mensagens de correio eletrónico; tal como se defende na Europa, o Supreme Court, no caso Stengart v. Loving Care Agency, Inc. (2010) ([v]), decidiu que o trabalhador goza do direito à confidencialidade relativamente a mensagens de conteúdo pessoal, mesmo que sejam enviadas através do e-mail corporativo, com uso dos computadores da empresa e beneficiando da internet paga pela mesma; o Supreme decidiu que, mesmo nestes casos, o trabalhador beneficia de uma expectativa de privacidade, que deve ser juridicamente tutelada;
  4. Por fim a propósito da igualdade e não discriminação, o Supreme Court tem igualmente demonstrando uma grande proximidade relativamente ao regime seguido na Europa continental. No caso Diaz v. Pan American World Airways Inc. (1971) ([vi]), o Tribunal decidiu que a política de admissões da companhia aérea Pan Am, que apenas contratava tripulantes de cabine femininas, por entender que estas desempenhavam melhor esta função do que os homens, era ilícita, à luz do referido Title VII do Civil Rights Act of 1964.

Em todos os casos, a ideia de Cidadania no Trabalho ou de full citizenship,serviu como elemento argumentativo nas decisões do Supreme Court. Mais do que defender o trabalhador, está em causa a defesa do cidadão que o antecede.

A ideia de Cidadania no Trabalho tem, por isso, esta grande virtude: permite aproximar sistemas jurídicos que parecem distantes na sua forma de pensar o Direito do Trabalho, em torno de uma ideia comum – a necessidade de se preservar a dignidade do cidadão que trabalha.

Por fim, é também a ideia de cidadania que alimenta a Corporate Social Responsibility e a associação do Direito do Trabalho às boas práticas empresariais. À luz deste conceito, as empresas passam a adotar códigos de conduta e boas práticas centrados na promoção da igualdade; no combate ao assédio; na adoção de affirmative actions que beneficiem grupos tradicionalmente desfavorecidos; na defesa da privacidade, dos dados pessoais; e na proteção dos denunciantes ([vii]).

A associação do Direito do Trabalho aos direitos de cidadania é por isso igualmente importante numa perspetiva empresarial. É nesse sentido que se compreende, nomeadamente, a adoção pelas empresas de códigos de conduta e manuais de boas práticas, alguns de natureza voluntária e outros de adoção obrigatória. A título meramente exemplificativo, recorda-se que a lei exige, hoje, a adoção por certas empresas do Plano Para a Igualdade de Género; de Código de Conduta Para a Prevenção e Combate ao Assédio no Trabalho; de Relatório Sobre as Remunerações dos Trabalhadores (homens e mulheres); bem como a criação de Canais de Denúncia para a proteção do Whistleblower.

O tema da Cidadania no Trabalho é, portanto, de particular importância para as empresas, potenciando benefícios para a comunidade que extravasam o objeto da relação (bilateral) de trabalho.

Mais do que proteger os acionistas e a criação de valor para os membros da direção, importa proteger todos os stakeholders, incluindo naturalmente os trabalhadores e os cidadãos que se relacionam com a empresa.

A ideia de Cidadania no Trabalho é, por isso, uma ideia para ficar, que permite solidificar e dar mais fôlego ao Direito do Trabalho do século XXI.


[i] Veja-se, sobre o tema, Guilherme Dray, Direito do Trabalho e Cidadania, Almedina, Coimbra, 2022.

[ii] O caso Pickering v. Board of Education, 391 U.S. 563 (1968) pode ser consultado em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/391/563/

[iii] O caso Rankin v. McPherson, 483 U.S. 378 1987, pode ser consultado em https://supreme. justia.com/cases/federal/us/483/378/

[iv] O caso Meritor Saving Bank v. Vinson pode ser consultado em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/477/57/

[v] O caso Stengart v. Loving Care Agency, Inc.  pode ser consultado em https://law.justia.com/cases/new-jersey/supreme-court/2010/a-16-09-opn.html

[vi] O caso Diaz v. Pan American Worl Airways Inc., pode ser consultado em http://openjurist.org/442/f2d/385.

[vii] Sobre a responsabilidade social das empresas e o Direito do Trabalho, veja-se Guilherme Dray, “Corporate Social Responsibility & Labor Compliance”, Revista Internacional de Direito doTrabalho, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 837-870; e Equality, Welfare State & Democracy, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 41 e ss