João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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A convenção coletiva de trabalho constitui uma das mais influentes fontes de Direito do Trabalho. Ela não chega a ser uma lei, mas também não se reduz à mera condição de contrato; ela é, diz‑se, uma síntese destas figuras, é um “contrato‑lei”, é uma “lei negociada”, é um “híbrido que tem um corpo de contrato e alma de lei”. Isto porque a convenção coletiva, apresentando embora uma inequívoca faceta negocial, pois resulta do acordo alcançado entre trabalhadores e empregadores, apresenta igualmente uma importante faceta normativa, através da qual ocorre a determinação coletiva das condições de trabalho.

Entre nós, o direito de contratação coletiva encontra expressa consagração no texto constitucional, perfilando‑se como um dos direitos fundamentais dos trabalhadores, competindo o respetivo exercício às associações sindicais (art. 56.º, n.º 3, da CRP).  A Constituição confia ao legislador a missão de garantir esse direito, cabendo ao Estado uma função de promoção da contratação coletiva, a qual é vista como uma técnica privilegiada de composição de interesses coletivos.

Surge, então, o magno problema: até quando vigora uma convenção coletiva? Como é que a lei regula o âmbito temporal dessa “lei negociada” que é a convenção coletiva de trabalho? Ora, como é sabido, durante muitos anos, até à aprovação do Código do Trabalho (CT) de 2003, a resposta da nossa lei era a de que a convenção coletiva se manteria indefinidamente em vigor, até ser substituída por um novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. Consagrava-se, portanto, o chamado “princípio da perenidade” ou “princípio da continuidade” do ordenamento coletivo laboral, que se credenciava na conveniência de prevenir vazios normativos. A lei tinha horror ao vácuo regulativo e, daí, a convenção coletiva só deixaria de vigorar se e quando surgisse uma nova convenção que ocupasse o seu lugar, substituindo-a[1].

No séc. XXI, com a aprovação do CT de 2003, primeiro, e do CT de 2009, depois, a solução para este problema mudou radicalmente. Hoje em dia, o art. 499.º do CT, relativo à vigência e renovação da convenção, perspetiva esta última como um contrato-lei que, embora tendo prazo, não se destina a caducar, mas sim a perdurar no tempo, renovando-se sucessivamente. Contudo, a lei permite a denúncia unilateral (isto é, a oposição à renovação) da convenção, no art. 500.º, ainda que a conceba como uma “denúncia construtiva”, que não se traduz propriamente num mecanismo extintivo da convenção, mas sim numa condição do desencadeamento do processo de revisão de uma convenção em vigor[2]. Em todo o caso, havendo denúncia, a convenção manter-se-á em regime de sobrevigência, durante um certo período temporal, previsto nos n.º 3 a 6 do art. 501.º do CT. Decorrido esse período sem que a negociação culmine em acordo, a convenção coletiva caducará, suscitando aquilo que Jorge Leite bem qualificou como “a angústia do dia seguinte”[3].

De todo o modo, creio ser acertado dizer que, se antes o sistema podia ser acusado de favorecer algum imobilismo sindical, visto que os sindicatos sabiam que, mesmo que a convenção não fosse revista, a que estava em vigor iria perdurar, não caducando, agora as posições inverteram-se e são as entidades empregadoras ou as suas associações que podem ter pouco interesse em rever a convenção em vigor, sabendo que, lá no fundo do túnel da sobrevigência, estará a caducidade daquela… Em suma, em lugar de perenidade, precariedade do ordenamento coletivo, em lugar da continuidade, descontinuidade. A sombra da caducidade tem, inequivocamente, enfraquecido a posição negocial dos trabalhadores nesta sede, sendo reclamadas novas soluções.

Ora, a este propósito, vale a pena atentar no conteúdo da “Proposta de lei que procede à alteração da legislação laboral no âmbito da agenda do trabalho digno”, apresentada pelo governo nas vésperas da dissolução do parlamento, na qual se preveem alterações relevantes nesta matéria[4]. As alterações propostas, se bem as lemos, consistem, no essencial, em atribuir a qualquer das partes (associações sindicais ou patronais) o direito de, durante o período de sobrevigência da convenção, requerer a arbitragem necessária, prevista no art. 510.º do CT (arbitragem determinada por despacho fundamentado do ministro responsável pela área laboral). E, nesse caso, se tal direito for exercido por alguma das partes, a convenção manter-se-á aplicável, em sobrevigência, até que seja proferida a competente decisão arbitral.

Vale dizer, ao passo que, atualmente, o período de sobrevigência irá conduzir fatalmente, na falta de acordo entre as partes, à caducidade da convenção, a proposta apresentada introduz uma significativa alteração (dir-se-ia: uma alteração qualitativa) neste domínio, visto que atribui a qualquer das partes (máxime ao sindicato) o direito de evitar a caducidade da convenção, requerendo, para esse efeito, a arbitragem necessária. Ora, esta alteração não é de somenos.

A arbitragem necessária encontra-se hoje disciplinada no CT, nos arts. 510.º e 511.º, mas só é admitida caso se tenha já verificado a caducidade de uma convenção coletiva e não seja celebrada nova convenção nos 12 meses subsequentes. Só depois disso qualquer das partes poderá requerer a arbitragem, dispondo, para o efeito, de mais 12 meses. Ou seja, esta arbitragem surge, cronologicamente, já bem depois de a convenção coletiva ter caducado, ao passo que a alteração normativa proposta prevê que a arbitragem surja antes, durante o período de sobrevigência da convenção, evitando a caducidade desta.

É claro que não se ignora a diferença entre uma convenção coletiva, outorgada pela associação sindical e expressão da autonomia coletiva dos sujeitos laborais, e uma decisão arbitral, proferida por três árbitros designados a partir de uma lista organizada pelo Conselho Económico e Social[5]. Aquela é, por definição, melhor do que esta. Dir-se-ia: um mau acordo pode ser melhor do que uma boa decisão; mas, por outro lado, uma decisão, boa ou má, será melhor do que a caducidade resultante da falta de acordo. A convenção coletiva detém, seguramente, a primazia, pois é através dela que os trabalhadores exercem o seu direito fundamental à contratação coletiva. Ainda assim, a decisão arbitral surge aqui como um interessante sucedâneo da contratação coletiva, como um expediente apto a superar a falta de acordo, a evitar a caducidade da convenção e o vazio regulativo.

A arbitragem necessária surge, assim, como sucedâneo da convenção coletiva e como alternativa à caducidade. Creio, de resto, que o facto de a decisão arbitral ser tomada por um colégio de árbitros cuja identidade não é, a priori, conhecida das associações sindicais e patronais, acabará por funcionar, na prática, como um forte incentivo à obtenção de um acordo por parte dos sujeitos coletivos ─ justamente por saberem que a falta de acordo não desembocará, inevitavelmente, na caducidade da convenção, mas sim, porventura, numa decisão arbitral que substituirá e produzirá os mesmos efeitos da convenção coletiva, decisão tomada por sujeitos que eles ainda não conhecem e cujo sentido é, para eles, uma incógnita. Neste contexto, as duas partes talvez optem por continuar e aprofundar, elas mesmas, o processo negocial, não se expondo a que o recurso à arbitragem seja acionado por alguma delas. É que, note-se, após ter sido requerida a arbitragem, as partes perdem o controlo do processo, tendo que se sujeitar ao que vier a ser decidido pelo colégio arbitral, concordem ou não com o teor da decisão. 

Para as associações sindicais, em particular, esta solução permite afugentar o espectro da caducidade das convenções coletivas. Com este enquadramento normativo, o sindicato sabe que, se não conseguir alcançar um acordo com a entidade ou associação empregadora, no sentido de rever a convenção coletiva (sobre)vigente, pelo menos sempre lhe restará a válvula de escape do recurso à arbitragem, continuando a convenção a aplicar-se até que seja proferida a decisão arbitral. E esta tomará o lugar da convenção revista, sem caducidade, sem vazios normativos, sem a “angústia do dia seguinte” que tanto tem pressionado o movimento sindical, em sede negocial, desde 2003.

Vale a pena pensar nesta solução. Uma solução de compromisso, sim, talvez não a ideal, mas, creio, nada irrazoável[6].

João Leal Amado


[1] O novo instrumento de regulamentação coletiva poderia ser, não uma convenção coletiva, mas uma decisão arbitral. Mas tratar-se-ia, neste caso, de uma arbitragem voluntária, em que ambas as partes manifestavam o seu acordo em submeter a arbitragem a resolução dos conflitos coletivos que resultassem da revisão da convenção coletiva. A possibilidade de arbitragem obrigatória cingia-se aos casos de empresas públicas ou de capitais públicos (arts. 11.º, 34.º e 35.º do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de dezembro, diploma que veio a ser revogado pelo CT de 2003). 

[2] Por isso mesmo, a denúncia, comunicada por escrito à outra parte, carece de ser acompanhada de «proposta negocial global», como se lê no n.º 1 do art. 500.º do CT.

[3] Ainda que a caducidade não obste à manutenção de certos efeitos da convenção ao nível dos contratos individuais de trabalho, nos termos do art. 501.º, n.º 7 e 8, do CT.

[4] Publicada em separata do Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 33, de 29 de outubro de 2021. Ver, em especial, as alterações introduzidas nos arts. 501.º-A, 510.º e 511.º do CT.

[5] A matéria encontra-se regulada no DL n.º 259/2009, de 25 de setembro. O CES organiza e mantém listas para efeitos de designação de árbitros, sendo a lista de árbitros presidentes composta por 16 árbitros e a lista de árbitros dos trabalhadores e a dos empregadores por 12 árbitros cada. O papel central na elaboração das listas de árbitros cabe aos representantes das confederações sindicais e das confederações de empregadores com assento na CPCS. Cada tribunal arbitral será composto por três árbitros, cabendo a cada uma das partes designar um árbitro e os árbitros de parte assim designados escolherão, por acordo, o terceiro árbitro (sendo que, na falta de acordo, este será designado mediante sorteio, de entre os constantes da lista de árbitros presidentes). As regras em apreço garantem, assim, que uma parte, ao requerer a arbitragem necessária, não controla a constituição do tribunal arbitral, cujo presidente pode, inclusive, vir a ser designado mediante sorteio.   

[6] Sobre o ponto, enaltecendo as virtualidades da alteração normativa proposta, Filipe Lamelas, «Caducidade, arbitragem e (des)equilíbrios das relações laborais», Políticas em Análise, CoLABOR, n.º 6, 2021.