Paula Pires Magalhães
Advogada. Licenciada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado em Direito da Universidade do Porto.
1. É possível afirmar que um dos temas de maior relevância que desponta no mundo contemporâneo diz respeito às inovações tecnológicas e às novas modalidades de interação dali provenientes. É inegável que os contributos trazidos por esta área de conhecimento, especialmente aqueles relacionados com o meio digital e as comunicações interpessoais, influenciaram de maneira direta e significativa a vida dos seres humanos.
A implementação de diferentes tipos de dispositivos eletrónicos no nosso dia-a-dia – tais como os computadores e os telemóveis – fez com que diversos aspetos que antes se manifestavam no mundo físico, migrassem para o ‘mundo virtual’. Tal transição deu-se, em grande parte, pelas facilidades trazidas por este novo ambiente. Assim, em vez de se deslocar a um balcão dos CTT para enviar uma carta, que pode demorar dias ou semanas para ser entregue, por que não enviar um e-mail, que dispensa o preenchimento de documentos e será recebido instantaneamente pelo destinatário? De igual modo, ao invés de revelar uma fotografia e fazer múltiplas cópias para serem distribuídas a todos os interessados, por que não fazer o seu upload para plataformas sociais e compartilhá-la com todos os amigos e conhecidos? Ou ainda, ao invés de se deslocar a uma loja para comprar algo, por que não realizar a compra pela internet e esperar que entreguem a mercadoria diretamente na porta de sua residência?
2. Face ao exposto, podemos afirmar que o cenário proporcionado pela realidade digital é, por si só, bastante atrativo, de modo que a sua mera existência, somada às oportunidades por ela oferecidas, é capaz de gerar, em grande parte das pessoas, o impulso para a utilizar em múltiplas circunstâncias do quotidiano[1]. Como se não bastasse, a atual situação mundial na qual nos vemos inseridos – ou seja, a pandemia gerada pelo COVID-19 e a obrigatoriedade de confinamento –, fez com que a utilização da internet e dos dispositivos móveis se tornasse ainda mais evidente[2]. Até mesmo os cidadãos que se consideravam ‘imunes’ às influências tecnológicas, acabaram por se render a elas, seja por uma questão de conveniência ou por necessidade. Hoje é comum encontrar indivíduos de todas as idades a utilizar de forma contínua os mais diversos tipos de software já desenvolvidos, como aplicativos de e-mails, redes sociais, bancos virtuais, etc. Este novo panorama mundial torna a discussão acerca das consequências jurídicas advindas da utilização massiva do meio digital ainda mais atual e necessária.
Nesta perspetiva, importa destacar que um dos principais assuntos relacionados com a implementação de novas tecnologias, que faz emergir questões de grande magnitude para o Direito, diz respeito aos riscos que a eclosão do mundo virtual impõe à reserva da intimidade da vida privada. Se, por um lado, a ascensão do meio digital veio reduzir burocracias desnecessárias e propiciar a comunicação interpessoal, trazendo inúmeros benefícios para os cidadãos, por outro lado ela veio, ainda que involuntariamente, intensificar a exposição pessoal[3]. As facilidades advindas da sua incorporação nos hábitos quotidianos pessoais fizeram com que os seres humanos se sentissem demasiadamente confortáveis em partilhar as suas informações de cunho privado neste meio, sem pensar, na maioria das vezes, nas consequências de tal ato. Neste quesito, dois pontos merecem destaque especial:
i) Em primeiro lugar, importa falar em reserva da intimidade da vida privada no mundo virtual? Apesar de o debate em torno desta questão ser polémico e dividir opiniões na doutrina e jurisprudência, não nos parece haver quaisquer dúvidas de que a resposta para esta pergunta seja positiva. Pesem embora as peculiaridades que envolvem o meio digital, a privacidade, bem jurídico tutelado pela Constituição da República Portuguesa, a título de direito fundamental, e pelo Código Civil, a título de direito de personalidade, deve ser respeitada e preservada, independentemente do local no qual os indivíduos a exprimem. Ora, é indiscutível que diversas informações que se encontram atualmente partilhadas neste ambiente, tais como as mensagens privadas, as localizações e as fotografias de cunho pessoal, integram a esfera da vida íntima e privada dos indivíduos, fazendo jus a toda a tutela jurídica que lhe é dedicada. Não podemos nos olvidar de que o mundo virtual nada mais é do que uma extensão da realidade e da convivência humana, sendo função do direito integrar esta nova realidade no seu âmbito de proteção. As únicas exceções a esta regra dizem respeito às situações em que o próprio cidadão deseja tornar públicas as informações armazenadas digitalmente. Neste caso, tal como ocorre no mundo físico, não há que se falar de direito à reserva da intimidade da vida privada. Em suma, há que se considerar, em última análise, a expectativa de privacidade do indivíduo no caso concreto[4].
ii) Em segundo lugar, importa salientar que a constante utilização dos meios digitais para fins pessoalíssimos tem gerado um verdadeiro acúmulo de dados pessoais no mundo virtual, sendo vários deles de caráter privado[5]. Tal cenário não seria preocupante caso os indivíduos fossem os únicos detentores do controlo dessas informações. A realidade, entretanto, não é esta. Os dados pessoais inseridos no meio digital encontram-se armazenados nos servidores de grandes multinacionais, de modo que a administração e proteção deste conteúdo cabe, em grande parte, a elas. Por outras palavras, o utilizador terceiriza o tratamento de suas informações e, consequentemente, de diversos aspetos concernentes à sua vida privada[6]. O tema em questão tem sido apreciado com atenção pela União Europeia. Prova disto é a criação do RGPD (Regulamento Geral da Proteção de Dados), que, entre outras funções, visa devolver aos utilizadores o controlo e a posse de seus dados pessoais. No entanto, o diploma aplica-se apenas no que concerne às pessoas vivas[7].
3. A questão torna-se mais polémica quando abrange o direito das sucessões, mais especificamente, quando se discute a possibilidade de transmissão post mortem de todo esse acervo de dados pessoais armazenados virtualmente, a chamada ‘herança digital’. Os questionamentos que surgem em torno da matéria são significativos. Ora, enquanto estamos vivos, é possível defendermos a nossa vontade com maior veemência e controlarmos, ao menos em parte, a difusão das informações que inserimos no mundo digital – graças, principalmente, à contribuição e às proteções estabelecidas no RGPD. Considerando, entretanto, que o instrumento não se aplica às pessoas mortas, o que ocorre com os nossos dados pessoais após o nosso falecimento? Apesar da relevância e atualidade do tema, ousamos dizer que pouquíssimas são as pessoas que de facto pensam acerca do assunto. Quantos indivíduos seriam capazes de dizer que já planearam o destino póstumo de todos os seus bens e dados pessoais armazenados no mundo virtual? E quanto aos registos realizados em áudios e notas nos dispositivos móveis, quantos já avaliaram se gostariam que os herdeiros acedessem a esse conteúdo? Ou, ainda, quantos já se questionaram se gostariam que os seus herdeiros acedessem às suas mensagens privadas?
A resposta a estas perguntas é absolutamente pessoal e, com certeza, varia de indivíduo para indivíduo. No que diz respeito à análise legal da situação, a questão cria contornos mais específicos, já que encontra-se diretamente relacionada com a privacidade dos utilizadores. Arriscamo-nos a dizer que a concessão de amplo acesso aos dados pessoais do de cujus que remetem, de alguma forma, à reserva da intimidade da vida privada, acarretaria uma verdadeira violação deste direito. Isto porque, a nosso ver, o bem jurídico in casu deve permanecer a ser tutelado mesmo após a morte do seu titular. Por outras palavras, defendemos, de forma veemente, que com o falecimento do individuo não cessa o seu direito à privacidade. O direito das sucessões deve servir como um espaço de concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos – especialmente daqueles que já não se encontram aqui para defender os seus interesses –, e não como um local de violação dos mesmos.
4. Apesar da reflexão realizada acima, importa ressaltar que não existe, no momento, uma única resposta que seja aceite por todas as nações. O assunto tem sido tratado de forma distinta ao redor do mundo. Há países mais tendenciosos a proteger o direito à propriedade dos herdeiros, enquanto outros se encontram mais inclinados a proteger a privacidade do falecido, por questões diretamente relacionadas com a já citada preservação post mortem da reserva da intimidade da vida privada.
A resposta difere até mesmo dentro do âmbito da União Europeia. Como o RGPD não regulamenta as questões relacionadas com o tratamento dos dados pessoais de pessoas falecidas, as soluções adotadas por cada Estado-Membro são diferentes e remetem, em última análise, para as suas necessidades e estilo jurídico próprios. A título exemplificativo, podemos citar a Alemanha, que autoriza, de maneira ampla, a herança digital, inclusive dos bens de caráter pessoal[8]. França, em sentido oposto, apesar de acatar a possibilidade de transmissão post mortem dos dados pessoais, procura salvaguardar a privacidade do falecido, proibindo a herança digital de determinados bens considerados sensíveis, salvo determinação em sentido contrário por parte do próprio de cujus[9]. Itália, por sua vez, num caminho intermediário, garante, de modo geral, a herança de todos os dados pessoais do falecido, mas impõe determinados requisitos para a sua concessão, ou seja, a existência de um interesse próprio, a intenção de proteger o falecido, ou, ainda, razões familiares dignas de proteção[10].
5. No que tange ao cenário jurídico português, apesar de não haver legislação que regule de maneira integral todos os aspetos relacionados com a herança digital, é possível vislumbrar a Lei n.º 58/2019, que dispõe especificamente acerca do destino dos dados pessoais de pessoas falecidas, nomeadamente aqueles de categorias especiais e afins, conforme versa o n.º 2 do artigo 17.º. De acordo com a norma, estes dados podem ser prontamente herdados, sendo transmitido aos herdeiros o direito de acesso, retificação e apagamento, salvo disposição em sentido contrário por parte do de cujus. Por decorrência deste preceito, hoje, em Portugal, todos os e-mails, fotos, aplicativos de mensagens instantâneas, logins e diversas outras informações pessoais depositadas online compõem a herança do falecido, integrando o acervo dos bens transmissíveis. Pese embora a atualidade da Lei, não nos parece que a solução por ela empregada seja coerente e congruente com o restante do ordenamento jurídico nacional, já que desconsidera a privacidade do falecido, violando o seu direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada. Além disto, parte do pressuposto de que o de cujus gostaria que as suas informações mais íntimas fossem transmitidas aos seus herdeiros, o que nos parece absolutamente paradoxal. Ao contrário do que sugere a Lei, é esperado que os utilizadores queiram guardar discrição quanto a esses dados, permitindo o seu acesso apenas a pessoas que eles próprios tenham pré-estabelecido. Posto isto, acreditamos o dispositivo deve ser alterado, de modo a se adequar às espectativas dos cidadãos aos quais ele se aplica. De todo modo, enquanto essa alteração não ocorrer, é necessário atentarmos a todas as informações que expomos online, já que elas poderão vir a ser integralmente acedidas após a nossa morte.
Por fim, importa destacar
que, apesar de os Estados-Membros possuírem necessidades e estilos jurídicos próprios,
acreditamos que um assunto tão delicado quanto a preservação da privacidade post mortem deva ser tratado de maneira mais
linear e igualitária em todo o bloco europeu, de modo que a proteção deste bem
jurídico não seja minorada de acordo com a nacionalidade de cada cidadão. Sendo
assim, por questões de segurança jurídica e de força protetiva, defendemos a
edição do atual RGPD, com a inclusão de artigos relacionados ao tratamento dos
dados pessoais de pessoas falecidas, ou, ainda, a criação de um novo
instrumento, inteiramente dedicado à matéria. De toda forma, independentemente
da solução a ser empregue, parece-nos possível afirmar que preservar a
privacidade do de cujus é essencial.
Afinal, não podemos deixar que os avanços tecnológicos culminem em retrocessos
no âmbito dos direitos fundamentais conquistados pela humanidade.
[1] Neste particular, é possível citar o grande número de residências portuguesas com acesso à internet em casa. Em 2019, essa percentagem já era de 80,9%, sendo a aderência às Redes Sociais de 80,2%. INE. Instituto Nacional de Estatística. Sociedade da Informação e do Conhecimento – Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação nas Famílias: 80% dos utilizadores de internet participam em redes sociais – 2019. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=354447559&DES TAQUESmodo=2
[2] Segundo dados fornecidos pela ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações), a utilização dos serviços de comunicações eletrónicas aumentou significativamente após a adoção de medidas de proteção de contágio de COVID-19. O tráfego de voz aumentou, em março de 2020, cerca de 47%, e o consumo de dados cerca de 52%. Disponível em: https://www.anacom-consumidor.pt/-/covid-19-aumenta-a-utilizacao-de-servicos-de-comunicacoes-eletronicas.
[3] Neste sentido, Clara Guerra, porta-voz da Comissão Nacional de Proteção de Dados, refere que: “antigamente as pessoas preservavam os contactos, os amigos, mas hoje expõem a sua rede, dizem com quem se relacionam, o tipo de relações, a família, os amigos, os colegas de trabalho”. Destaca, ainda, que “a internet representa um repositório muito grande de informação pessoal”. AGÊNCIA LUSA. Pessoas dão informação pessoal na internet de forma “negligente e ingénua”. Diário de Notícias. 2016. Disponível em: https://www.dn.pt/sociedade/pessoas-dao-informacao-pessoal-na-internet-de-forma-negligente-e-ingenua5040538.html
[4] Para maior compreensão do tema, indica-se a leitura dos acórdãos 431/13.6TTFUN.L1-4 e 747/18.5T8PTM.E1.
[5] De acordo com a definição trazida pelo n.º 1 do artigo 4.º do RGPD, entende-se por dados pessoais toda informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável. Diversas são as informações que se enquadram neste parâmetro. A título exemplificativo, podemos citar o nome, os dados de localização e as identificações por via eletrónica (como os e-mails, endereços de IP, logins e palavras-passe, fotografias, a própria voz, as publicações em redes sociais, etc). Importa ressaltar que diversos desses dados, tais como os últimos aqui citados, revelam características extremamente pessoais dos cidadãos e remetem, em última análise, à intimidade da vida privada.
[6] Neste sentido, António Menezes Cordeiro dispõe: “O crescimento exponencial do tratamento automatizado de dados, espoletado pelos avanços tecnológicos das últimas décadas, coloca-nos, a todos, numa posição de enorme fragilidade: as informações pessoais hoje armazenadas, pelos mais distintos responsáveis pelo tratamento, públicos e privados, são hoje superiores às informações que nós próprios determos sobre a nossa vida.”. In: CORDEIRO, António Menezes. Direito da Proteção de Dados: À Luz do RGPD e da Lei n.º 58/2019. p. 29.
[7] Conforme dispõe o considerando n.º 27 do Regulamento Geral da Proteção de Dados.
[8] FRITZ, Karina Nunes. Herança digital: Corte alemã e TJ/SP caminham em direções opostas. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/345287/heranca-digital-corte-alema-e-tj-sp-caminham-em-direcoes-opostas
[9] Mort numérique : peut-on demander l’effacement des informations d’une personne décédée? 2020. Disponível em: https://www.cnil.fr/fr/mort-numerique-effacement-informations-personne-decedee.