Catarina Maria Leandro e Vasconcelos

Juíza de Direito, a exercer funções no Juízo de Comércio de Amarante, tendo especial interesse pelo direito da insolvência, direito civil e comercial. Licenciatura em Direito (Universidade do Porto). Mestrado em Direito na área de direito da empresa e dos negócios (Universidade Católica Portuguesa).


A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado em Direito da Universidade Católica Portuguesa tendo sido distinguida com o Prémio Professor João Baptista Machado, atribuído à melhor classificação obtida na dissertação e na parte escolar de mestrado. Tese disponível neste link.


I. Enquadramento

No presente artigo pretendemos abordar a problemática atinente à graduação do crédito privilegiado da Segurança Social (SS), quando em concurso também estão créditos pignoratícios, créditos do Estado por impostos e créditos titulados pelos trabalhadores.

Esta questão há muito que tem vindo a ser discutida na doutrina e jurisprudência, estando ainda longe de merecer uma resposta pacífica e uniforme, o que é gerador de incerteza jurídica, merecendo, por isso, uma breve reflexão.

II. O privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social

O crédito da SS decorrente de contribuições, quotizações e juros de mora beneficia de privilégio mobiliário geral[1], nos termos do art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), correspondente ao anterior art. 10.º/2 DL 103/80, 9.05.

Preceitua o art. 204.º CRCSPSS:

“1 – Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.

2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”

Assim, o crédito privilegiado da SS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.

Ainda à luz do anterior art. 10.º/2 DL 103/80, 9.05 fora questionada a inconstitucionalidade deste preceito, pelas mesmas razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do privilégio imobiliário geral criado pelo DL 103/80, de 9 Maio (falta de publicidade, falta de conexão entre o bem sobre o qual recai a garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite temporal e a existência de garantias alternativas).[2]

Porém, o Tribunal Constitucional (TC) já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade deste preceito no Acórdão (Ac) de 10.03.2009, Processo n.º 634/08, (link). Também Salvador da Costa[3] entende não estarmos perante um preceito inconstitucional.

III. O privilégio mobiliário geral dos créditos do Estado por impostos

Nos termos do art. 736.º, n.º 1, do Código Civil (CC), “O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indiretos, e também pelos impostos diretos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou ato equivalente, e nos dois anos anteriores.”

Destacam-se aqui os créditos decorrentes de IRS (cfr. art. 111.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares), IRC (cfr. art. 116.º do Código do Imposto sobre Rendimento de pessoas Coletivas), sendo o IVA um imposto indireto.

Este privilégio mobiliário geral é graduado nos termos do art. 747.º, n.º 1, a), do CC.

IV. A garantia real decorrente de penhor

O penhor constitui uma causa legítima de preferência, nos termos do art. 604.º/2 do CC e garantia real do cumprimento das obrigações, que confere ao credor titular o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (666.º/1 CC).

V. O privilégio mobiliário geral dos Trabalhadores

Concretizando a tutela constitucional conferida aos créditos laborais, o legislador excecionou-os do princípio par conditio creditorum (do qual decorre o pagamento rateado pelos credores – 604.º CC e 176.º CIRE), atribuindo-lhes um privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário especial.

Preceitua o art. 333.º do Código do Trabalho (CT)[4]:

 1 – Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: 

a) Privilégio mobiliário geral; 

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade.

2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: 

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil; 

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”

Beneficiam, assim, os créditos laborais do privilégio mobiliário geral, o qual incide sobre todos os bens móveis do empregador.

No que diz respeito à sua graduação, e nos termos do n.º 2, al a), do art. 333.º do CT, o crédito dos trabalhadores é graduado antes de o crédito referido no n.º 1 do art. 747.º[5] CC (créditos por impostos). Ou seja, não existindo hipoteca ou penhor sobre os bens móveis, o crédito dos trabalhadores será graduado em primeiro lugar, apenas cedendo perante créditos por despesas de justiça (746.º CC).[6]

Com efeito, nos termos do art. 749.º, n.º 1, CC, o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente, como sucede com a hipoteca (686.º CC) ou penhor (666.º CC).

VI. Conflito Normativo:

Concorrendo créditos dos trabalhadores e crédito privilegiado da SS, e quanto a bens móveis, de acordo com o citado art. 333.º/2 a) CT, conjugado com os arts. 747.º/1 CC e 204.º/1[7] do CRCSPSS, devem os créditos laborais ser graduados antes de o crédito da SS.

No confronto entre créditos laborais e crédito pignoratício, deverá prevalecer o penhor, nos termos do art. 749.º CC.

No confronto bilateral de créditos privilegiados da SS e penhor, deverá prevalecer o crédito da SS, nos termos do art. 204.º/2 do CRCSPSS. 

Verifica-se, assim, um (pelo menos aparente) conflito de normas, que tem levado a divergência jurisprudencial.

Para uns, esta contradição normativa deve ser resolvida graduando-se em primeiro lugar o crédito pignoratício, em segundo lugar o crédito dos trabalhadores e em terceiro lugar o crédito da SS, em razão da natureza real do penhor e da sequela daí resultante sobre os bens empenhados, que prevalece sobre os privilégios creditórios gerais nos termos do art. 749.º CC. Salientam a natureza excecional dos privilégios creditórios em geral, que à margem do princípio da autonomia privada, afetam o princípio da igualdade entre os credores. Defendem que, tratando-se de normas excecionais, não podem ser aplicadas por analogia e devem as mesmas ser objeto de interpretação restritiva. Acrescentam também que é esta interpretação que está mais conforme com a evolução legislativa que caminha no sentido de pôr o Estado mais atuante, com uma atuação dinâmica, e não através de privilégios que o façam aproveitar do dinamismo (e do património) dos cidadãos. Assim, apelando ao princípio da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico, concorrendo créditos por impostos do Estado ou créditos dos trabalhadores, consideram não ser aplicável aquele art. 204.º/2[8].

Apontando também para a necessidade de interpretação restritiva de norma excecional que prevê um privilégio creditório geral e sendo proibida a sua aplicação analógica, veja-se MENEZES CORDEIRO.[9] E precisamente tendo por base essa doutrina, SALVADOR DA COSTA[10] defende que no concurso entre o crédito pignoratício, crédito por impostos e crédito da SS, a graduação deve ser feita por essa ordem.

Para outra corrente, concorrendo créditos da SS, crédito pignoratício e crédito laboral, deve graduar-se em primeiro lugar o crédito dos trabalhadores, em segundo lugar o crédito da SS e em terceiro lugar o crédito garantido por penhor. Consideram que, tratando-se de um regime especial deve prevalecer sobre o regime geral do art. 749.º do CC e que este art. 204.º tem de ser lido e interpretado como um bloco normativo que consubstancia um intencional desvio ao comando resultante dos arts. 666.º/1 e 749.º CC[11].

Afigura-se-nos que esta corrente (claramente minoritária na jurisprudência), tem o inconveniente de penalizar excessivamente o crédito pignoratício, fazendo cair por completo a relevância prática da natureza real e sequela do penhor.

Uma terceira corrente vem defendendo que, enquanto regra especial, esta norma do art. 204.º/2 impõe-se relativamente à regra geral do art. 749.º CC. Afirmam que não existe uma verdadeira colisão normativa, a qual não se adequa ao princípio ínsito no art. 9.º/3 CC, no sentido de que na fixação do sentido e alcance da lei “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Consideram que o crédito da SS deverá sempre prevalecer sobre o crédito que beneficie de penhor, ainda que concorram créditos laborais, não sendo defensável que este art. 204.º/2 só tenha aplicação quando concorram em exclusivo o privilégio mobiliário geral da SS e o penhor. Não impede a aplicação deste n.º 2 o facto de concorrerem também créditos laborais ou créditos por impostos, pois nem isso resulta da letra da lei, nem parece que tal ideia haja estado na mente do legislador, sabendo-se que só muito raramente com aqueles dois créditos não concorrerão outros créditos privilegiados, como os da Autoridade Tributária ou dos trabalhadores[12].

Acrescentam que não se pode negar a importância social de que cada vez mais acentuadamente se reveste a garantia mobiliária e imobiliária dos créditos da Segurança Social e que esteve na origem das disposições dos arts. 204.º CRCSPSS e 10.º do pretérito DL 103/80 de 9/05, sendo que o TC vem decidindo que o n.º 2 daquele art. 10.º (que tem o seu equivalente no atual art. 204.º/2 CRCSPSS) não é inconstitucional – cfr. acórdãos do TC n.º 64/09 de 10/02/2009 e n.º108/09 de 10/03/2009, in www.tribunalconstitucional.pt. O TC tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático (2.º CRP) é violado apenas quando haja uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiado onerosa de expetativas legitimamente fundadas dos cidadãos, o que não se verifica in casu.

VII. Posição seguida quanto à graduação dos créditos

Propendemos para esta última interpretação, a qual temos vindo a seguir nas nossas sentenças[13], pois não nos parece razoável fazer depender a ordem de graduação prevista no art. 204.º/2 da circunstância aleatória de o concurso envolver ou não créditos do Estado ou do trabalhador; ficando a defesa do interesse social da sustentabilidade da Segurança Social (interesses prioritários do próprio Estado) dependente de fatores exógenos, aleatórios e que escapam ao próprio Estado.

A letra do art. 204.º/2 ao prever que o crédito da SS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, aponta nesse sentido. Ou seja, o crédito da SS deve prevalecer sobre todo e qualquer penhor, independentemente das circunstâncias concretas que rodeiam a constituição desse penhor ou o exercício do mesmo, independentemente da concorrência ou não de créditos fiscais ou laborais para pagamento com o produto dos bens dados em penhor.

Ademais, há que ter presente que este art. 204.º/2 corresponde ao pretérito art. 10.º DL 103/80, tendo-se discutido esta graduação na sua vigência. Logo, o legislador teve oportunidade de (caso considerasse necessário) corrigir o sentido da letra da lei. Ao invés, e mesmo após a aprovação do Código do Trabalho pela Lei 7/2009, 12/02, o legislador manteve aquela regra de graduação de créditos, e conhecedor desta divergência também não se preocupou em alterar este art. 204.º/2 com a última alteração ao CRCSPSS.

Também não se poderá esquecer que o art. 204.º/2 é posterior ao art. 333.º CT, constituindo uma regra especial face à regra geral de graduação do crédito previdencial ínsita no n.º 1 do art. 204.º, e devendo também ser vista como uma regra especial face ao art. 333.º/2a) CT.

Na verdade, o legislador ao estabelecer a hierarquização prevista no art. 204.º/2, e não ignorando a regra geral da ineficácia dos privilégios mobiliários gerais do art. 749.º/1 CC, não podia deixar de estar ciente de que situava o privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social numa situação de primazia relativamente a todos os outros créditos dotados do mesmo privilégio, incluindo os créditos mencionados no art. 333.º do CT, quando estão em causa bens objeto de penhor.

Esta contradição aparente de normas esbate-se ainda mais se atentarmos que a graduação do privilégio mobiliário dos trabalhadores não é efetuada por referência ao crédito da SS, mas antes por referência ao crédito do art. 747.º/1 CC.

Por último, constatamos que o argumento que leva à interpretação restritiva deste art. 204.º/2 CC – obstar a que os créditos da SS sejam graduados à frente dos créditos dos trabalhadores e do Estado – em termos práticos, e na grande maioria dos casos, não tem razão de ser. Na verdade, atenta a exiguidade dos bens objeto de penhor, por contraposição com o valor elevado do crédito pignoratício, sempre será indiferente para os créditos por impostos ou laborais ser graduado à sua frente apenas o crédito pignoratício, ou também antes o crédito da SS, pois dificilmente os trabalhadores ou o Estado irão receber algum montante. Parece, assim, artificial afastar a prevalência do crédito da SS sobre o penhor, com o argumento que se deve prevalecer a ordem de graduação prevista para os créditos laborais, por impostos e SS, quando, analisada a situação concreta, é mais que manifesto que para esses créditos laborais e fiscais será inócua essa graduação e acabando-se por beneficiar exclusivamente com essa interpretação restritiva o credor pignoratício, precisamente aquele que o legislador claramente quis preterir em favor da SS.

Em súmula, afigura-se-nos não existirem argumentos suficientemente ponderosos que justifiquem a não aplicação do art. 204.º/2, quando também concorram créditos laborais ou por impostos com os créditos da SS e penhor.


[1] Sobre a noção e caraterísticas dos privilégios creditórios, cfr. PIRES, M. L. (2015). Dos privilégios creditórios, regime jurídico e sua influência no concurso de credores, 2.ª Edição revista e atualizada: Coimbra, Almedina, pp. 84-128.

[2] Cfr. Pires, ob. cit., p. 127 e L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Penhor, Privilégio Mobiliário Geral da Segurança Social e sua inconstitucionalidade”, in Revista da FDUP (2008), p. 263-284.

[3] O Concurso de Credores. (5.ª Edição). (2015). Coimbra: Almedina., p. 242.

[4] Sobre a evolução dos privilégios atribuídos aos créditos laborais no nosso ordenamento jurídico, Pires, ob. cit., pp. 215 e ss., salientando que deve ter-se por revogada a al. d), n.º 1, 737.º CC. 

[5] Este preceito estabelece a ordem de graduação dos créditos com privilégio mobiliário.

[6] Cedendo ainda perante os créditos de certos credores que, no âmbito do PER/ RERE/ PEVE, financiam a empresa com vista à sua revitalização/ recuperação/ viabilização e prestadores de serviços essenciais (cfr. 17.ºH CIRE, 12.º RERE e 11.º Lei 75/2020, 27.11).

[7] A propósito da graduação, quanto a bens móveis, de créditos privilegiados da SS e de impostos, preceituando o art. 204.º/1 que o crédito da SS é graduado nos termos referidos no art. 747.º/1 a) CC: para Miguel Lucas Pires (ob. cit., p. 287), o crédito da SS é graduado em pé de igualdade com o crédito por impostos. Em sentido contrário na jurisprudência, prevalecendo o crédito de impostos, v. Ac RP 7.02.2017 (5306/15.1T8OAZ.P1), in www.dgsi.pt, todos os Acórdãos referidos neste artigo, cuja fonte não seja indicada, encontram-se disponíveis nesta mesma base de dados.

[8]Neste sentido, cfr Ac RP 6.05.2010 (744/08.9TBVFR-E.P1), STJ 22.04.1999 (98B1084), RE 5.11.2015 (284/14.7TBRMR-A.E1), RG 25.05.2017 (703/13.0TBMDL-K.G1), RG 07.08.2020 (159/15.2T8VLN-B.G1).

[9]Cordeiro, A. M. (1998). Salários em Atraso e Privilégios creditórios. Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, vol. II., p 660.

[10] Costa, S., ob. cit., p 54.

[11] Neste sentido, também abrangendo as hipóteses de concorrência de créditos da SS, créditos de impostos e créditos pignoratícios, v. Ac RC 16.05.2000 CJ, ano XXV, Tomo III, p 9-12, Ac 05/09/2019 RL (2540/16.0T8STB-A.L1-2) e ainda Pires, ob. cit., p 361.

[12] Esta corrente é seguida pelos Ac RC 10.03.2015 (2558/12.2TLRA-C.C1), RE 30.04.2015, (1277/13.7TBCTX-B.E1), RG 31.03.2016 (565/14.0T8VCT-B.G1), Ac STJ 17.12.2009 (1174/06.2TBMGR) (http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/insolvencia.pdf), Ac RP 05.09.2019 (535/18.9T8AMT-C.P1), Ac RC 05.21.2019 (4705/17.9T8VIS-B.C1), Ac RC 05.28.2019 (3810/17.6T8VIS-B.C1), Ac RC 01.11.2021 (182/18.5T8TCS-A.C1).

[13] A título exemplificativo, sentença proferida no Processo n.º 535/18.9T8AMT-C do Juízo de Comércio de Amarante – J3 (sentença confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/09/2019).