Inês Neves


Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, (2018) e pós-graduada em Direito das Empresas, pelo IDET – Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2019). Frequenta atualmente o Curso de Doutoramento em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Investigadora colaboradora do Centro de Investigação Jurídico-Económica (CIJE). Advogada na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, Docente parceira da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Departamento de Ciências da Saúde Pública e Forenses e Educação Médica (2020-2021).


1.     Delimitação e importância do tema

No acórdão n.º 485/2021([1]), o Tribunal Constitucional (‘TC’) decidiu «Julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída dos números 1 a 3 do artigo 35.º da Lei n.º 107/2009, no sentido de que a atribuição de efeito suspensivo ao recurso judicial de decisão final condenatória, proferida em processo contraordenacional, por autoridade administrativa, depende do depósito do valor da coima aplicada e das custas do processo ou de garantia bancária no mesmo valor, na modalidade “à primeira solicitação”, sem que o juiz da causa possa avaliar se de tal exigência resulta prejuízo considerável para o arguido, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa».

Em causa está o regime previsto na Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, sucessivamente alterada, e que, em matéria de contraordenações laborais e de segurança social, estabelece, no seu artigo 35.º, com a epígrafe «Efeitos da impugnação judicial», que a «impugnação judicial tem efeito meramente devolutivo», regra essa apenas passível de exceção nas hipóteses previstas nos n.os 2 e 3, a saber, mediante i) o depósito, pelo recorrente, do valor da coima e das custas do processo em instituição bancária aderente, a favor da autoridade administrativa competente que proferiu a decisão de aplicação da coima, ou ii) a prestação, em substituição, de garantia bancária, na modalidade «à primeira solicitação». Através desta solução, o legislador afasta o regime-regra aplicável aos ilícitos de mera ordenação social, nos termos do qual «o recurso de decisões administrativas condenatórias em processos contraordenacionais tem efeito suspensivo (alínea a) do n.º 1 do artigo 408.º do Código de Processo Penal ex vi artigo 41.º do RGCO)»([2]).

Assim, e pelo presente acórdão, é o TC chamado a apreciar a compatibilidade de uma tal opção legislativa com os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à presunção de inocência.

Além, porém, da sua valia imediata para a compreensão do regime normativo em causa, o tratamento da questão a que o acórdão procura dar resposta reveste uma importância transversal, que o torna transponível para outros âmbitos normativos. Com efeito, a questão de saber se será «constitucionalmente admissível que a atribuição de efeito suspensivo ao recurso judicial relativo a decisão final condenatória de uma autoridade administrativa, em processo contraordenacional, dependa do depósito do valor da coima aplicada e das custas do processo, sem que se avalie a (in)suficiência de meios económicos do arguido e o eventual prejuízo para ele resultante, ainda que possa ser efetuado na modalidade de garantia bancária à primeira solicitação»([3]) afigura-se relevante, não só para i) a compreensão (e conformação) de todo um conjunto de soluções normativas que fixam também, como regra, o efeito meramente devolutivo do recurso de decisões administrativas que aplicam coimas, como, e em particular, para ii) a determinação das balizas ou limites à ampla margem de livre conformação de que o legislador ordinário goza nesta sede.

2.     Sobre o acordão do TC

Após um percurso breve, mas necessariamente detido, sobre a jurisprudência constitucional([4]) que sobre a matéria vem sendo adotada nos mais variados domínios [desde o Direito da Concorrência (cf. n.os 4 e 5 do artigo 84.º do Regime Jurídico da Concorrência ou ‘RJC’, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, sucessivamente alterada)([5]), ao setor da energia (cf. n.os 4 e 5 do artigo 46.º do Regime Sancionatório do Setor Elétrico ou ‘RSSE’, aprovado pela Lei n.º 9/2013, de 28 de janeiro)([6]), sem esquecer, ainda, os setores da saúde (cf. n.º 5 do artigo 67.º dos Estatutos da Entidade Reguladora da Saúde ou ‘EERS’, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto)([7]), dos transportes (cf. n.º 4 do artigo 43.º dos Estatutos da Autoridade da Mobilidade dos Transportes ou ‘EAMT’, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 78/2014, de 14 de maio, sucessivamente alterado)([8]), e o setor financeiro (cf. artigo 228.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ou ‘RGICSF’, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, sucessivamente alterado)([9])], conclui o TC, a final, que do referido acervo jurisprudencial e, em particular, do teste ou parâmetro de constitucionalidade dele derivado, resulta uma «válvula de escape», esta, o motivo ou a razão da não inconstitucionalidade das referidas normas. Em particular, e nas palavras do TC, a conformidade constitucional de uma norma que fixa, como regra, o efeito meramente devolutivo dos recursos de impugnação judicial de medidas administrativas que apliquem coimas, ficará dependente de uma apreciação necessariamente concreta e individualizada da situação do acoimado, de modo que a verificação de prejuízos consideráveis ou da insuficiência de recursos permita «afastar a execução imediata da sanção ou modelar a caução, aceitando um valor inferior ao da coima, consoante as circunstâncias do caso concreto – e assegurando, assim, de forma excecional, o efeito suspensivo do recurso»([10]). Por outras palavras, de acordo com o TC, o princípio da proporcionalidade a que qualquer restrição a direitos fundamentais se encontra sujeita exigirá que o legislador institua, nesta sede, um modelo que permita a ponderação «tanto na vertente da comprovação de prejuízos consideráveis, como na da insuficiência de meios»([11]) da capacidade económica do arguido, não podendo o valor da caução ser aferido exclusivamente pelo valor da coima aplicada.

Do exposto resulta, pois, que, sendo seguro afirmar que a jurisprudência do TC legitima uma conclusão no sentido de que nem todo o condicionamento do direito à interposição de recurso de impugnação judicial de decisão condenatória no âmbito contraordenacional será de molde a afetar o direito de acesso aos tribunais e, em particular, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (cf. artigos 20.º e n.º 4 do artigo 268.º da CRP), não menos verdade é que a mesma jurisprudência não consente, afinal, as leituras não raras vezes apressadas que, nesta matéria, vêm sendo dispensadas aos acórdãos do TC, nomeadamente no sentido da plena e quiçá ilimitada liberdade de conformação do legislador ordinário, em ordem à tutela de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (e, em particular, em homenagem à efetividade do processo).

In casu, retomando a distinção entre um «ónus relativo à suspensão da execução da sanção, durante a pendência do recurso» (o que seria o caso) e um «ónus atinente ao acesso à justiça propriamente dita», o Tribunal recorda, depois, o conjunto de critérios que vêm sendo identificados como relevantes na aferição da conformidade de tais soluções legais com a Constituição. Entre eles constam: i) a fixação de uma sanção de natureza pecuniária e, portanto, fungível (condição que se relaciona com uma outra, consistente na possibilidade de reintegração, restauração ou reconstituição da situação juridicamente devida, nos casos de procedência da impugnação([12])); ii) a consideração, na determinação da medida da coima, da situação económica do visado, e iii) a previsão de mecanismos de exceção à regra do efeito meramente devolutivo, quando a execução imediata da sanção seja de molde a provocar prejuízo considerável à entidade sancionada (acabando, na prática, e em concreto, por configurar um efetivo obstáculo ao exercício do direito à tutela jurisdicional efetiva).

Já no que concerne ao direito à presunção de inocência, sendo verdade que o TC entende que «o cumprimento do ónus de depósito do respetivo valor [da coima] para garantir o efeito suspensivo do recurso equivale ao próprio cumprimento a priori da sanção, pelo menos em termos da oneração financeira que pesa sobre o acoimado»([13]), não deixa ele, porém, de sublinhar que uma tal lesão já não se verificaria se «ao visado fosse dada a possibilidade de o evitar»([14]). Ressalva que, a par da nota de íntima relação (de decorrência) da violação deste parâmetro constitucional face à ofensa da norma constitucional relativa ao direito de ação e a uma tutela jurisdicional efetiva, permite concluir que, para o TC, o afastamento do automatismo inerente à correspondência absoluta entre o valor da coima e o valor da caução depositada será suficiente para mitigar os perigos de lesão do direito fundamental à presunção de inocência.

3.     Comentário

O acórdão n.º 485/2021, cujo potencial de extroversão se afigura claro, apresenta-se-nos acertado nas suas principais conclusões, procedendo a uma problematização adequada das subdimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, das quais resulta que as soluções legais haverão a este propósito de cristalizar os «meios menos gravosos para cumprir os objetivos prosseguidos pelo legislador (desde logo, a instituição de regime semelhante, mas com a dita cláusula de salvaguarda), que permitiriam um melhor equilíbrio de direitos e interesses conflituantes»([15]). Como se antecipou já, tal raciocínio e respetivas conclusões são perfeitamente válidos e transplantáveis para a apreciação dos vários lugares paralelos referidos no acórdão, e, bem assim, para quaisquer outros em que a questão do efeito do recurso de decisões administrativas condenatórias (ou, acrescentamos nós, de decisões interlocutórias passíveis, de igual modo, de fazer perigar direitos e interesses constitucionalmente protegidos) se possa vir a colocar. Assim, e doravante, a margem de conformação do legislador ordinário ver-se-á balizada pelo imperativo da consagração de soluções que observem e respeitem a «válvula de escape» e as demais condições constitutivas do «teste de constitucionalidade» extraído da jurisprudência constitucional (numa relação cumulativa que não nos parece que possa, nesta sede, ser dispensada). Com efeito, para efeitos de salvar o regime legal de uma possível inconstitucionalidade, não cremos que baste, seja a natureza pecuniária (e, et pour cause, fungível) da coima, seja a inclusão da «situação económica do visado» no elenco de critérios que a autoridade administrativa poderá ou deverá ter em conta na determinação da medida da coima. Em particular, não só a situação económica da acoimada poderá variar entre o momento da determinação da medida da coima e o da fixação do efeito do recurso, como sempre se imporá que ao tribunal competente seja possível conduzir uma avaliação independente a este propósito([16]).

Uma outra observação que o acórdão se nos oferece respeita à distinção (cortante) entre um ónus de acesso ao direito e o ónus para que a impugnação tenha por efeito a suspensão da execução da sanção. Nas palavras do TC, o que no segundo se onera é, apenas e tão-só, «a obtenção de uma vantagem normalmente associada à impugnação judicial das decisões sancionatórias da Administração»([17]), o que não importa «qualquer prejuízo adicional e específico para o impugnante, em matéria de acesso à justiça»([18]), visando, antes, «a realização do interesse – conexo, mas diverso, do interesse em aceder à justiça – de inibir a execução da sanção impugnada»([19]). Acontece que uma tal clivagem – se compreensível em abstrato -, haverá, em nosso ver, de ser devidamente compaginada com a precisão de que «a prestação da caução pode, por vezes, constituir uma ablação do direito à tutela jurisdicional efetiva na vertente da efetividade»([20]). Em consequência, qualquer distinção talhante ou tentativa de resolução do problema por remissão para uma tal diferenciação, além de perigosas, sempre se revelarão inadequadas, à luz do continuum ou da zona cinzenta que intermedeia os momentos do acesso e do exercício, ambos afastando soluções legais e jurisprudenciais assentes em distinções apriorísticas.

Numa terceira frente, votada, agora, à atuação concreta deste tipo de normativos, estamos em crer que do acórdão é, ainda, possível extrair um outro conjunto de limites, atinentes, desta feita, aos resultados interpretativos e à aplicação prática de tais regimes, por juízes e magistrados. Desde logo, ainda que salvaguardada a bondade das soluções, no plano geral e abstrato, a verdade é que uma interpretação descuidada das normas poderá estar na base da instituição de práticas ou de costumes([21]) correspondentes à fixação (v.g. cristalização) de um determinado percentual de caução que, ainda que não equivalente ao montante da coima, poderá, de igual modo, redundar em prejuízo considerável para o visado. Assim, e na medida em que da jurisprudência constitucional resulta a necessidade de pleno respeito da «exigência de verificação individualizada de prejuízos consideráveis ou da insuficiência de recursos permitindo afastar a execução imediata da sanção ou modelar a caução, aceitando um valor inferior ao da coima, consoante as circunstâncias do caso concreto – e assegurando, assim, de forma excecional, o efeito suspensivo do recurso»([22]), também a atuação prática dos regimes legais verá a sua legitimidade dependente dessa mesma apreciação concreta.

Por sua vez, e porquanto contende, ainda e em grande parte, com a aplicação concreta dos normativos, aproveitamos o ensejo para expor uma preocupação de fundo relativamente ao raciocínio do TC, a propósito da afetação do direito à presunção de inocência. Recorda-se que, de acordo com a conclusão a que chega, tal lesão quedará obviada se ao visado for dada a possibilidade de excecionar a regra do efeito meramente devolutivo. Acontece, porém, e empregando aqui as palavras do próprio TC, que também a prestação de caução substitutiva poderá, na prática (dependendo da operatividade do juízo de adequação) i) configurar um resultado «que se confunde, pelo menos dos pontos de vista financeiro e da perceção pública, com uma condenação transitada em julgado»([23]) e ii) equivaler, assim, a uma oneração que, ainda que suportável, se assemelha à antecipação (parcial) das consequências de uma condenação transitada em julgado. Nesse sentido, e não oferecendo um tal argumentário resposta cabal a esta preocupação, parece-nos que outra deveria ter sido a fundamentação do TC, nesta sede.

Por fim, e na medida em que as soluções legislativas na matéria tendem a construir as respetivas «válvulas de escape» em torno de dois ónus, a saber: i) o ónus da alegação e demonstração, pelo recorrente, do prejuízo considerável resultante da execução da decisão, e ii) o ónus da prestação de caução substitutiva, no prazo fixado pelo tribunal([24]), é de pertinência questionar se, nos termos da jurisprudência constitucional, tais normativos não deveriam ir a ponto de permitir o afastamento tout court (v.g. a dispensa) da obrigatoriedade da prestação de garantia ou caução substitutivas, em caso de «insuficiência de meios»([25]). Com efeito, antecipando que a própria prestação da caução (já «moldada» ao prejuízo dela decorrente) se possa afigurar, per se, incomportável para o arguido, aquele segundo ónus e a ausência de «espaço para um juízo de dispensa»([26]), poderão, afinal, redundar em lesão do direito à tutela jurisdicional efetiva e, nas palavras do Tribunal, em verdadeira «situação de desigualdade»([27]) em razão da (in)suficiência de recursos.

Assim, e em face de tudo o exposto, a conformidade constitucional das normas que fixam o efeito da impugnação judicial de decisões administrativas condenatórias, em processo contraordenacional([28]), haverá, em nosso ver, de ficar dependente (da possibilidade) de uma verificação e apreciação concretas e individualizadas, nas quais o tribunal competente possa, consoante os casos, amparar um «um juízo de dispensa ou adequação (designadamente do montante e modo de prestação) atentos os circunstancialismos do caso concreto»([29]).


([1])       Acórdão do TC n.º 485/2021, processo n.º 633/19, de 07.07.2021, Relatora: Conselheira Mariana Canotilho, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, assim como todos os demais em diante citados.

([2])       Acórdão do TC n.º 74/19, processo n.º 837/18, de 29.01.2019, Relator: Conselheiro Fernando Vaz Ventura.

([3])       Cf. acórdão do TC n.º 485/2021 (doravante citado sem referência adicional, como «acórdão do TC»), com realce nosso.

([4])       E, bem assim, no que ao regime laboral respeita, da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia cujos standards, conclui o TC, «não divergem, no essencial, dos que resultam da aplicação do direito nacional, em particular dos parâmetros jusconstitucionais relevantes» – cf. acórdão do TC.

([5])       Sobre a referida norma, considerem-se, sem pretensões de exaustão, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 376/2016 (processo n.º 1094/15, de 08.06.2016, Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha) e n.º 445/2018 (processo n.º 1378/17, de 02.10.2018, Relator: Conselheiro Claudio Monteiro), em oposição de julgados, resolvida pelo Acórdão do TC n.º 776/2019 (processo n.º 1378/17, de 17.12.2019, Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro).

([6])       Sobre este, vide em particular, os acórdãos do TC n.º 675/2016 (processo n.º 352/16, de 13.12.2016, Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros) e n.º 397/2017 (processo n.º 136/17, de 12.07.2017, Relator: Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro), cuja oposição de julgados foi dirimida pelo acórdão do TC n.º 123/2018 (processo n.º 136/17, de 06.03.2018, Relator: Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro).

([7])       Cf. acórdão do TC n.º 74/2019, processo n.º 837/18, de 29.01.2019, Relator: Conselheiro Fernando Vaz Ventura.

([8])       Cf. acórdão do TC n.º 115/2020, processo n.º 398/19, de 12.02.2020, Relatora: Conselheira Mariana Canotilho.

([9])       Cf. acórdão do TC n.º 470/2018, processo n.º 724/17, de 03.10.2018, Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro.

([10])      Cf. acórdão do TC.

([11])      Cf. ibidem.

([12])      Com efeito, como resulta do acórdão do TC n.º 123/2018, cit., «[…] a regra do efeito exclusivamente devolutivo da impugnação judicial não compromete a efetividade da tutela jurisdicional apenas quando a procedência daquela permite a reversão integral dos efeitos da execução da sanção. […] limitando o âmbito de aplicação da regra do efeito meramente devolutivo da impugnação judicial às decisões sancionatórias aplicativas de coima; constituindo as coimas sanções exclusivamente pecuniárias, e sendo o dinheiro um bem radicalmente fungível, a reconstituição da situação devida pode ser, na generalidade dos casos, eficazmente assegurada através da restituição da quantia paga pela entidade sancionada. Situam-se fora do âmbito deste regime, nomeadamente, as sanções acessórias cominadas através das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 35.º do RSSE, cujos efeitos já produzidos, no momento do trânsito em julgado de sentença absolutória, são irreversíveis». Repare-se que, ao contrário do regime resultante dos n.os 4 e 5 do artigo 46.º do RSSE, que excetuam a regra do efeito meramente devolutivo para as sanções acessórias previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 do artigo 35.º do mesmo regime, o legislador da concorrência apenas excetua desse regime-regra (cf. n.º 4 do artigo 84.º do RJC) as decisões que apliquem medidas de caráter estrutural determinadas nos termos do n.º 4 do artigo 29.º, referindo-se, no n.º 5 do artigo 84.º (que prevê a tal «válvula de escape do sistema») às «decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei», podendo então questionar-se se a condição da reversibilidade (v.g. «reintegração, restauração ou reconstituição da situação juridicamente devida – a eliminação de todos os efeitos de facto da decisão inválida -, por oposição à mera vitória moral em juízo e ao efeito mitigador da tutela secundária ou por sucedâneo do lesado » – cf. acórdão do TC n.º 123/2018) estará, quanto às últimas, assegurada. A mesma observação se aplica ao n.º 5 do artigo 67.º dos EERS e ao n.º 4 do artigo 43.º dos EAMT, ambos se referindo a «decisões que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei». Já no que respeita ao artigo 228.º-A do RGICSF, pese embora se não distingam as decisões impugnadas, de acordo com o tipo de sanções aplicadas, a referência à prestação de garantia «em valor de metade da coima aplicada» consente a interpretação de que estarão em causa decisões que apliquem coimas.

([13])      Cf. acórdão do TC.

([14])      Cf. ibidem.

([15])      Cf. ibidem.

([16])      E isto tanto mais quanto em alguns regimes normativos, a consideração da situação económica do visado pelo processo parece vir consagrada a título de mera possibilidade (v.g. opção) da autoridade competente (cf. inter alia, o disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 69.º da CRP).

([17])      Cf. acórdão do TC n.º 123/2018, cit.

([18])      Cf. ibidem.

([19])      Cf. ibidem.

([20])      Cf. acórdão do TC.

([21])      Nada tendo, em abstrato, de ilegítimos, dado que dirigidos a evitar a complexidade muitas vezes inerente à determinação do valor adequado da caução substitutiva.

([22])      Cf. acórdão do TC.

([23])      Cf. ibidem.

([24])      É o caso da solução prevista no RJC, no RSSE, nos EERS e nos EAMT.

([25])      Neste sentido, veja-se a redação dada ao artigo 228.º-A do RGICSF, com abertura expressa para o afastamento da obrigatoriedade de prestação de garantia, «no todo ou em parte, por insuficiência de meios». E, ainda, o artigo 84.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, sucessivamente alterada.

([26])      Cf. acórdão do TC n.º 674/2016, processo n.º 206/16, de 13.12.2016, Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, em argumentação retomada pelo acórdão do TC n.º 445/2018, cit. Apesar de o acórdão do TC n.º 776/2019 ter vindo resolver a oposição de julgados gerada entre o último e o acórdão do TC n.º 376/2016, repare-se que o mesmo não versou sobre a questão da «desconsideração da disponibilidade económica do visado para prestar caução», considerando que «apesar da remissão que o acórdão recorrido faz para a fundamentação do Acórdão n.º 674/2016, a questão da (in)exigibilidade de prestação de caução em face da insuficiência de meios económicos do visado não está prevista na norma que foi julgada inconstitucional. Assim sendo, se dúvidas havia acerca da identidade normativa da questão dirimida em termos antagónicos pelas Secções do Tribunal, as mesmas ficaram ultrapassadas com a omissão da tal exigência no dispositivo do acórdão recorrido. Tal omissão – repete-se, a omissão da referência à desconsideração da disponibilidade económica do visado para prestar a caução – implica a irrelevância dessa circunstância na determinação da identidade pressuposta na presente uniformização de jurisprudência. O Acórdão n.º 376/2016 excluiu expressamente do objeto de conhecimento do recurso a situação do interessado que não disponha de meios económicos para prestar a caução prevista no n.º 5 do artigo 84.º da Lei da Concorrência, por considerar que esta dimensão não teve aplicação no caso concreto. Como esta mesma dimensão normativa não foi integrada no julgamento efetuado pelo acórdão recorrido – Acórdão n.º 445/2018 –, conclui-se que há identidade entre as questões de inconstitucionalidade apreciadas em ambos os acórdãos, assim como contradição entre as decisões que neles foram tomadas» – cf. acórdão n.º 776/2019, cit. No mesmo sentido, o acórdão do TC n.º 281/2017, no processo n.º 206/16, de 06.06.2017, Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, relativo à oposição de julgados entre os acórdãos n.º 376/2016 e n.º 674/2016, e que também sublinhou que «na sua substância não existe coincidência entre a norma que prevê que a impugnação interposta de decisões da Autoridade da Concorrência que apliquem coima tem, em regra, efeito devolutivo, apenas lhe podendo ser atribuído efeito suspensivo quando a execução da decisão cause ao visado prejuízo considerável e este preste caução, e a norma que, atribuindo embora o mesmo efeito regra ao recurso (efeito devolutivo) e fazendo igualmente depender o efeito suspensivo da prestação de uma caução, o faz, todavia, independentemente da situação económica do visado e definindo a caução como substitutiva da coima».

([27])      Cf. acórdão do TC.

([28])      Desde logo, à luz das subdimensões da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito cuja observância qualquer restrição a direitos fundamentais exige.

([29])      Cf. acórdão do TC n.º 674/2016, cit.