Joaquim de Sousa Ribeiro é Professor Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Durante 2012 e 2016 foi Presidente do Tribunal Constitucional.

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Comungo da opinião geral de que há, no nosso país, centralismo em excesso, com uma concentração desmedida de órgãos e instituições públicas em Lisboa. São, pois, desejáveis e bem-vindas decisões políticas de descentralização. Mas tais decisões devem obedecer a um programa consequente, resultar de critérios objetivos e transparentes, e não constituir medidas avulsas, tomadas por fatores circunstanciais do momento político, que pouco ou nada têm a ver com uma lógica fundamentadora minimamente sólida. Há que ponderar, em cuidadosa reflexão, quais são as situações que, à luz do princípio de descentralização adequadamente invocado e aplicado, merecem ser corrigidas.

Temo bem que o projeto de lei de transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra não satisfaça esse requisito.

A localização do Tribunal Constitucional na capital do país, não sendo forçosa, é uma decorrência que diria natural da posição cimeira que ele ocupa na estrutura dos poderes soberanos do Estado. Tão natural como a localização, nessa cidade, dos órgãos máximos do poder executivo, do poder legislativo e do poder judicial exercitado pelos tribunais comuns. Não é a sede em Lisboa destes (poucos) órgãos que distorce uma distribuição equilibrada por todo o território nacional das instituições públicas, não é a ela que se pode apontar o dedo de contribuir para a macrocefalia da capital. A haver, como deve haver, mesmo nos modelos mais descentralizados, um núcleo mínimo de componentes do aparelho do Estado que se concentre na cidade que se quer a capital do país, esses órgãos integram-no, com uma pertinência que dificilmente pode ser contestada.

 Se é assim quanto à decisão originária de localização, por maioria de razão o é quando está em causa uma decisão de transferência da sede para outra cidade.  Um projeto de mudança, para outro local, de um órgão, como o Tribunal Constitucional, que indiscutivelmente faz parte desse núcleo teria que estar sustentado em razões particulares distintivas, de natureza histórica ou funcional, que, numa melhor ponderação, aconselhem ou justifiquem uma decisão diferente da inicialmente tomada. E o ónus de fundamentação recai sobre quem defende uma medida desse tipo.

Não creio que esse ónus tenha sido cumprido no projeto de lei. As razões aí apresentadas – reforço da independência do poder judicial, promoção da proximidade e centralidade geográfica de uma cidade, como Coimbra, “com representatividade no plano do ensino do direito” – já foram convincentemente contrariadas no parecer emitido pelo Tribunal Constitucional. No que se refere à primeira, é caso para dizer que o Tribunal já deu mostras suficientes de não precisar desta ”ajuda” para afirmar, em pleno, na sua prática jurisdicional, independência do poder político. Nem se vislumbra que a medida traga ganhos de proximidade para os cidadãos, em geral, atenta a natureza das atividades a cargo do Tribunal.

E não se descortinam quaisquer outras razões específicas que permitam selecionar o Tribunal Constitucional como alvo privilegiado ou candidato prioritário a uma medida de deslocalização que não abrange todos os órgãos de idêntica natureza. Invocar, a este propósito, um acréscimo da coesão territorial é, salvo o devido respeito, inteiramente desajustado. Essa coesão não é posta em causa pelo local atual nem melhorada pelo local projetado. Passa por outros fatores alheios à questão a decidir. Não há, na ótica do exercício dos direitos de cidadania – aquela que, nesta matéria, sobremodo deve relevar –, vantagens que possam ser atribuídas à deslocação.

O que, de todo, deve ser afastado do horizonte de ponderação, é o atendimento de interesses locais. Uma visão paroquial ou bairrista não tem manifestamente espaço de afirmação numa questão deste tipo. É, aliás, irrealista esperar que a localização em Coimbra tenha um efeito dinamizador relevante, com benefícios sensíveis para a população da cidade. Mesmo que assim não fosse, só por absurdo se pode ajuizar que mudar a sede de um órgão como o Tribunal Constitucional é um meio apropriado de alcançar esse resultado.

 De resto, a fiscalização da constitucionalidade é uma função do Estado que já se encontra, de certo modo, descentralizada. Ela está disseminada por todo o território nacional, já que qualquer tribunal, de qualquer jurisdição e instância, desde o mais recôndito tribunal de comarca ao Supremo Tribunal de Justiça, tem competência para a exercer.  Na verdade, no modelo português, qualquer juiz é um juiz constitucional, no sentido de que detém o poder (e o dever) de controlar a conformidade das leis com a Constituição (artigo 204.º). Por isso mesmo, o controlo concreto é qualificado como um controlo difuso, na base. O Tribunal Constitucional só intervém, nesta matéria, como última instância de recurso. Não é assim na generalidade dos sistemas em vigor na Europa, em que o poder decisório em questões constitucionais se concentra nas mãos dos respetivos tribunais constitucionais.

Se não se evidenciam vantagens decorrentes da deslocalização, não é difícil apontar-lhe desvantagens e riscos. A criação, em 1982, de um órgão autónomo, à margem do aparelho judicial, como órgão cimeiro de fiscalização de constitucionalidade, não mereceu concordância unânime. O Tribunal Constitucional foi então uma novidade na esfera jurisdicional,  tendo que desbravar o caminho de credenciação da sua razão de ser. Creio que esse caminho foi percorrido com êxito, em quase quarenta anos de atividade. Uma medida seletiva como a que se projeta, pode gerar, mesmo que injustificadamente e ao arrepio de qualquer intenção, perceções que não contribuem para a estabilidade de todo o sistema.

Não são também de ignorar as dificuldades de ordem organizativa e prático-funcional, em múltiplos planos, e desde logo no que se refere à disponibilização de instalações condignas, aos custos para as finanças públicas, (surpreendentemente não contabilizados antes do início do processo de decisão), e aos custos existenciais para o pessoal envolvido na transferência. Essas dificuldades fazem-se sentir sobretudo no momento da mudança. Mas também o exercício regular de algumas dimensões da multímoda atividade do Tribunal teria que se ajustar a condições de funcionamento mais difíceis, suplantando obstáculos inexistentes na atual localização.  

É certo que as dificuldades logísticas e equiparadas, ainda que não despiciendas, são sempre de segundo grau, não devendo, em princípio, constituir uma barreira à tomada de medidas que possam ser abonadas por razões de princípio, associadas a uma descentralização autêntica, que verdadeiramente mereça esse nome. Quando esta se justifica e faz sentido, os custos inerentes constituem um preço a pagar, dentro de limites razoáveis.

Mas não é esse o caso, quando se trata de órgãos situados no patamar supremo da esfera jurisdicional. Onde a descentralização faz sentido é antes no domínio da organização da Administração Pública, na distribuição de competências e de funções pelas entidades e organismos que a compõem, nos seus diversos escalões. E, aí, muito está por fazer.

Invocada a propósito de uma simples medida de deslocalização da sede do Tribunal Constitucional, a descentralização não tem substância efetiva, desempenhando apenas uma função retórica-discursiva de legitimação, sem trazer nenhum dos benefícios reais que, quando autêntica, lhe podem ser imputados. Reais e autênticas são unicamente as desvantagens geradas. Não é, assim, forçado considerar que o Tribunal foi usado pelo poder político para o que não passa de um gesto, com retumbância na opinião pública, o qual pretende sinalizar (ou substituir?) uma determinação firme em tomar medidas generalizadas de combate à centralização.