Jorge Bacelar Gouveia

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Professor Catedrático de Direito, Advogado e Jurisconsulto. Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Advogados Portugueses. Presidente do Instituto de Direito e Segurança.


1. Introdução

I. Com o anúncio da dissolução da Assembleia da República, pondo assim um termo antecipado à XIV Legislatura, o Presidente da República deve publicar duas decisões, normalmente formalizadas num decreto presidencial: primeiro, dissolver o Parlamento; depois, marcar a data das respetivas eleições.

O tema da dissolução da Assembleia da República é fascinante e tem sido dos mais estudados no Direito Constitucional, ainda que sob a perspetiva politológica, num enlace singular com a Ciência Política.

Porém, esse não é o único modo de pensar o fenómeno da dissolução do Parlamento e, em 2007, na prestação de provas públicas para efeito de obtenção do título de agregado em Direito Público, tive o gosto de ministrar uma aula precisamente sobre este assunto, que teve como arguente o Professor Doutor Jorge Miranda.

          O texto da lição foi logo depois publicado pela Livraria Almedina, sob o título “A Dissolução da Assembleia da República – uma nova perspetiva da Dogmática do Direito Constitucional”, Coimbra, 2007, pp. 102 e ss., tema que foi também referido no 2º volume da recente 7ª edição do “Manual de Direito Constitucional”, Almedina, Coimbra, 2021.

II. Eis que agora se coloca – e com toda a acuidade – o problema de saber se, estando dissolvida a Assembleia da República, deve o Governo ser demitido e, se sim, com que título jurídico habilitante.

          A situação atual é mais grave do que nunca porque se trata de um Governo minoritário, para o qual a não entrada em regime de gestão implicaria o prolongamento por quatro meses da plenitude de poderes em órgão com um menor apoio parlamentar.

          Ora, este é um tema que tive ocasião de estudar ex professo no contexto daquela aula, chegando à conclusão de que deve haver um automatismo na demissão do Governo após a dissolução parlamentar, se bem que a CRP sobre o assunto nada diga, havendo uma lacuna jurídico-constitucional para integrar.

III. É para isso que serve o Direito Constitucional, agora da perspetiva da sua Ciência Dogmática, o mesmo é dizer, construir uma solução jurídica – a necessidade daquela demissão – a partir do sistema político-constitucional positivo que o não propicia.

          Deste modo, recorda-se tal argumentação, que depois de década e meia mantém atualidade, como curiosamente sucedeu com a tese de doutoramento que defendi em 1999 sobre o Estado de “Exceção no Direito Constitucional”, livro do mesmo modo publicado pela Livraria Almedina.

2. Os efeitos da dissolução sobre o Governo como tema jurídico-positivo central      

I. Os efeitos da dissolução da Assembleia da República não se limitam ao contexto interno, estrutural e funcional, deste órgão parlamentar e irradiam para outros órgãos, ao arrastarem modificações do ponto de vista do seu estatuto.

          É que os efeitos da dissolução parlamentar devem ser vistos à luz de uma peculiar relação político-funcional entre a Assembleia da República e o Governo, sendo certo que este órgão de soberania é politicamente responsável perante aquela.

          A questão podia ter sido logo resolvida pelo legislador constitucional, até porque este tem o cuidado de apresentar um catálogo das causas da demissão do Governo.

Mas o certo é que não foi.

II. Em vão nessa tipologia encontramos qualquer razão de demissão de Governo que esteja associada à contemporânea dissolução da Assembleia da República, tendo, por isso, sentido perguntar: tem a dissolução da Assembleia da República alguma implicação na subsistência do Governo, que é perante ela politicamente responsável?

          J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, pressentindo o problema, não lhe dão resposta, apenas deixando apresentada a questão: “Não são transparentes os efeitos da dissolução da Assembleia da República sobre o Governo, sendo, porém, seguro que ela não implica a demissão automática do Governo, o qual aparentemente pode continuar na plenitude de funções (salvo naturalmente daquelas que carecem da colaboração da Assembleia da República), se não se verificar a sua demissão concomitantemente com a dissolução da Assembleia da República, seja por iniciativa do Primeiro-Ministro, seja por iniciativa do próprio Presidente da República, verificadas as respetivas condições”[1].

          Já mais longe vai Diogo Freitas do Amaral, embora se limite a enunciar uma opinião de iure condendo: “…nem os Governos em funções, se não demitidos, desde a dissolução da Assembleia da República até à realização de eleições legislativas, porque entre nós (e ao contrário do que, como vimos, sucedia na Constituição francesa de 1946) a dissolução do Parlamento não determina a demissão do Governo, embora julguemos que outra deveria ser a solução de iure condendo[2].

          Para uma solução híbrida – de Governo somente com um estatuto de gestão, mas que não fica demitido – propendem Jorge Miranda e Rui Medeiros: “Se a responsabilidade política do Governo se efetiva perante a Assembleia e se, por exemplo, as autorizações legislativas caducam com a dissolução, não se enxerga como um Governo nessa circunstância possa fazer mais do que praticar os atos estritamente necessários à gestão dos negócios públicos”[3].

3. A ausência de uma resposta literal do texto da Constituição e a necessidade do seu preenchimento

I. O pressuposto fundamental da análise deste problema, para o qual não apresenta o texto constitucional qualquer solução, é o da responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República, de resto enfaticamente formulada pela Constituição:

  • “O Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”[4];
  • “O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República”[5];
  • “Os Vice-Primeiros-Ministros e os Ministros são responsáveis perante o Primeiro-Ministro e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República”[6].

Por aqui se percebe que o vínculo de responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República implica uma posição de subordinação política daquele à orientação geral ditada por esta, na aprovação do programa governativo, mas ainda em muitos outros momentos, no contexto mais vasto e até capilar da fiscalização política do Governo.

          II. O seguro, contudo, é que numa situação de dissolução da Assembleia da República não há, no plano da letra constitucional, qualquer consequência expressa sobre a subsistência do Governo.

          A leitura de algumas das alíneas do art. 195º da Constituição confirma-o à saciedade: a dissolução parlamentar engendrará uma nova legislatura, mas não é, ela própria, motivo para a demissão do Governo.

III. A interpretação constitucional que tem prevalecido é de que essa relação direta não existe, o que é inaceitável, em atenção àquele dado essencial do sistema de governo.

          Pode dizer-se que sempre restará um certo poder de fiscalização por parte da Comissão Permanente da Assembleia da República – mas esse poder sem a possibilidade de convocar o plenário não tem consequências, por exemplo, ao nível mais drástico, e também mais forte, da aprovação de uma moção de censura, que só o plenário pode efetivar. 

          Como não parece suficiente que o controlo do Governo, em caso de Assembleia da República dissolvida, se faça por parte do Presidente da República, na medida em que este só acede a uma parte, e não à totalidade, da atividade jurídico-pública desenvolvida pelo Governo.

          IV. Daí que se nos afigure válida a afirmação de que há aqui uma verdadeira lacuna constitucional[7]: o legislador da Constituição nada disse – e devia ter dito – acerca da hipótese de o Governo ser demitido no caso de dissolução da Assembleia da República.

          Nenhuma das causas que são elencadas no texto constitucional se destinam a resolver este problema, que é a inconveniência de manter em plenitude de funções o Governo quando a Assembleia da República, de que politicamente depende, fica dissolvida, não se apresentando, por isso, operacional para a esmagadora maioria das suas competências.

          A faculdade de demitir o Governo, conferida ao Presidente da República, não tem aqui aplicação porque se destina a calibrar um poder de demissão de um órgão de soberania diferente, que é o Governo e não a Assembleia da República.

4. Os elementos extraliterais para a integração da lacuna jurídico-constitucional sobre a necessidade de o Governo ser demitido na sequência de anterior dissolução parlamentar

I. Um primeiro critério para o preenchimento desta lacuna constitucional pode ser o da aplicação analógica do preceito constitucional que estabelece o regime da dissolução das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas.

Depois da revisão constitucional de 2004, fixou-se a regra da entrada em gestão do Governo Regional após a dissolução da Assembleia Legislativa: “A dissolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma acarreta a demissão do Governo Regional, que fica limitado à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos, até à tomada de posse do novo Governo após a realização de eleições”[8].

O mesmo raciocínio podemos fazer, sendo certo que se mantém um mesmo substrato fiduciário entre a Assembleia da República e o Governo, tal como sucede no plano regional, até com mais intensidade, entre a Assembleia Legislativa e o Governo Regional.

II. Outro critério viável para o preenchimento da mencionada lacuna apoia-se numa visão mais substancialista ditada pela analogia iuris: a aplicação do princípio constitucional da responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República.

Nestes termos, se a subsistência política do Governo depende da vontade da Assembleia da República, na sua atividade normal, ela ainda será mais óbvia no caso de o órgão jurídico-público em causa se encontrar impedido de exercer a totalidade das suas funções, não parecendo que a “criatura” se possa “libertar” do “criador”.

Acresce que há ainda um paralelismo com outros casos de idêntica importância político-constitucional que semelhantemente acarretam a demissão do Governo: eis mais uma razão para considerar que a dissolução da Assembleia da República deve automaticamente implicar a demissão do Governo[9].

III. Se a conclusão de que a dissolução parlamentar deve provocar a demissão do Governo é um exercício espinhoso, não obstante o lamentável esquecimento por parte do legislador constitucional, o mesmo já não se pode dizer da amplitude dos poderes de gestão que deverão caracterizar o exercício das funções governativas durante esse período[10].

          Estranhar-se-ia esta afirmação por o texto constitucional dizer – com razoável determinação, conquanto não clareza – que o estatuto do Governo demitido integra uma forte atenuação das suas competências, assim designado por Governo de gestão: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”[11].

          Só que é também verdade que essa orientação geral – tendo de bom a sua existência, à qual se alia um certo desejo de uniformidade – não revela ductilidade à diversidade das situações, nem sequer foi especificamente feita a pensar na hipótese, que não estava prevista, de competências governativas de gestão na sequência de dissolução parlamentar.


[1] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 703.

[2] Diogo Freitas do Amaral, Governos de Gestão, 2ª ed., Cascais, 2004, p. 14.

[3] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, II, Coimbra, 2006, p. 588.

[4] Art. 190º da Constituição.

[5] Art. 191º, nº 1, da Constituição.

[6] Art. 191º, nº 2, da Constituição.

[7] Quanto ao sentido das lacunas constitucionais em geral, v. Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional, Braga, 1979, p. 361; Pablo Lucas Verdú, Curso de Derecho Político, II, 3ª ed., Madrid, 1986, pp. 559 e ss.; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 58 e 59; José João Gonçalves Proença, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1995, pp. 135 e ss.; Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., São Paulo, 2001, pp. 106 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, I, 7ª ed., Coimbra, 2021, pp. 678 e ss.

[8] Art. 234º, nº 2, da Constituição.

[9] No contexto da dissolução da Assembleia da República ocorrida em 2005, foi exatamente essa a posição do Primeiro-Ministro do XVI Governo Constitucional, que depois de saber da decisão de dissolução da Assembleia da República, imediatamente pediu a sua demissão de Primeiro-Ministro, de alguma forma assim se corrigindo pela prática política a deficiência do texto constitucional.

[10] Sobre a limitação da competência dos Governos de gestão em geral, v., por todos, Diogo Freitas do Amaral, Governos de Gestão, 2ª ed., pp. 28 e ss. Cfr. também Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição…, II, pp. 645 e ss.

[11] Art. 186º, nº 5, da Constituição.