Jorge Morais Carvalho

Professor Associado da NOVA School of Law. Investigador do CEDIS – Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade. Diretor do NOVA Consumer Lab e do NOVA Law & Tech.
Autor de mais de cem livros e artigos científicos e participação em mais de cem seminários e congressos nacionais e internacionais, nas áreas do direito civil, do direito comercial, do direito do consumo, do direito processual civil, da resolução alternativa de litígios e do direito comparado.
Editor da EuCML – Journal of European Consumer and Market Law.

Consulte a sua obra neste link.


Para uma visão geral sobre este tema recomendamos: “Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei Nº 84/2021, de 18 de Outubro”, Almedina, lançamento 13 janeiro 2022 (link).


A muito aguardada transposição das Diretivas (UE) 2019/770 e 2019/771 viu finalmente a luz. Como se previa, tendo em conta o projeto anteriormente apresentado, a transposição foi feita num único diploma, o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

O diploma tem cinco capítulos: (i) disposições gerais; (ii) regime aplicável à compra e venda de bens; (iii) regime aplicável ao fornecimento de conteúdos e serviços digitais; (iv) disposições comuns; (v) disposições complementares e finais.

O primeiro contém disposições gerais, parte das quais delimitam essencialmente, sem referência expressa, o âmbito de aplicação dos dois capítulos seguintes.

O segundo capítulo trata da compra e venda de coisas corpóreas, transpondo, no essencial (e o essencial), (d)a Diretiva (UE) 2019/771. Encontra-se subdividido em três secções, a primeira dedicada aos requisitos subjetivos e objetivos de conformidade, a segunda à responsabilidade do profissional, aos prazos de conformidade, ao ónus da prova e aos direitos do consumidor e a terceira às coisas imóveis.

Na secção dedicada aos requisitos de conformidade surgem, surpreendentemente, as matérias da obrigação de entrega e do risco (previstas na Diretiva 2011/83/UE e anteriormente inseridas nos arts. 9.º-B e 9.º-C da Lei de Defesa do Consumidor, revogados pelo novo diploma legal). Admitindo a adequação de uma solução que passe por regular num mesmo diploma a obrigação de entrega e a obrigação de conformidade, a técnica legislativa é bastante infeliz. Com efeito, o art. 11.º, que tem por epígrafe “entrega do bem ao consumidor” e trata conjuntamente a entrega e o risco, está, como referido, incluído numa secção do diploma intitulada “requisitos objetivos e subjetivos de conformidade”. A norma surge, aliás, depois das que se dedicam aos requisitos de conformidade, problema logicamente subsequente ao da entrega.

A segunda secção do capítulo junta uma série de tópicos diversificados e dificilmente agrupáveis, como se torna evidente pela extensão do título, com sucessão de temas.

A terceira secção trata da obrigação de conformidade relativamente às coisas imóveis. Desconhece-se a razão pela qual se optou por ter um regime diferente para as coisas móveis e para as coisas imóveis. Mantiveram-se, aliás, para as coisas imóveis, no essencial, as normas do regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, que regulava anteriormente a venda de bens de consumo, não distinguindo entre coisas móveis e imóveis. Não se pode dizer que esse regime é mais adequado para as coisas imóveis, uma vez que o DL 67/2003 resultava da transposição de uma diretiva europeia que se aplicava apenas a coisa móveis (Diretiva 1999/44/CE). A solução não é lógica. Por um lado, os critérios de conformidade passam a ser menos exigentes para os imóveis do que para os móveis. Por outro lado, continua a não haver uma hierarquia entre os direitos dos consumidores no caso de desconformidade da coisa imóvel vendida, podendo o consumidor resolver de imediato o contrato (salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso do direito, nos termos gerais), ao contrário do que sucede se se tratar de uma coisa móvel.

O terceiro capítulo é dedicado aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais. Encontra-se dividido em duas secções. A primeira trata da obrigação de fornecimento e da obrigação de conformidade. Ao contrário do que sucede no capítulo anterior, aqui segue-se a sequência lógica fornecimento-conformidade. O título da segunda secção aponta para o tratamento das questões da responsabilidade do profissional, do ónus da prova e dos direitos do consumidor, mas inclui igualmente a importante matéria das alterações aos conteúdos e serviços digitais nos contratos de execução duradoura.

O quarto capítulo contém algumas normas que se aplicam quer aos contratos de compra e venda de coisas móveis quer aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais. A secção 1 regula a responsabilidade do produtor, o direito de regresso do profissional e a garantia comercial. A secção 2 é tão inovadora quanto problemática, prevendo de forma bastante alargada a responsabilidade direta das plataformas digitais de intermediação perante o consumidor. A secção 3 trata da fiscalização do cumprimento das normas do diploma e das contraordenações aplicáveis em caso de incumprimento. Há aqui uma diferença muito significativa em relação ao regime anterior, uma vez que a generalidade das normas do diploma tem associada uma sanção contraordenacional em caso de incumprimento.

O quinto capítulo tem uma série de normas soltas, incluindo temas variados como o conceito de consumidor, estabelecendo-se que, em caso de uso misto (profissional e não profissional), vale o critério do uso predominante, o caráter imperativo do diploma ou a sua aplicação no tempo.

A propósito desta questão, salienta-se que o diploma entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2022, aplicando-se, no essencial, aos contratos celebrados após essa data. Excetuam-se os contratos de execução duradoura de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais (por exemplo, um contrato celebrado entre um consumidor e um fornecedor de serviços de streaming), aos quais é imediatamente aplicável o regime, no que diz respeito aos conteúdos ou serviços digitais fornecidos após o dia 1 de janeiro de 2022.

São muitas as novidades trazidas por este diploma, mas destacamos aqui cinco, algumas das quais já foram referidas neste texto.

A principal novidade é o alargamento do prazo da responsabilidade do vendedor na compra e venda de coisas móveis para três anos (ao invés dos atuais dois anos) e na compra e venda de coisas imóveis para dez anos no caso de elementos construtivos estruturais (ao invés dos atuais cinco anos). No caso de coisas móveis usadas, o prazo pode ser reduzido para até um ano e meio, por acordo das partes, sendo que, no regime anterior, essa redução poderia, havendo acordo, ser para até um ano. Trata-se de normas relevantes, que podem constituir instrumentos, ainda que tímidos, contra a obsolescência programada.

A segunda grande novidade tem uma relação umbilical com a primeira. Ao contrário do que resulta, desde a primeira vez que a matéria foi objeto de tratamento legislativo específico em matéria de consumo em Portugal, na Lei de Defesa do consumidor, em 1996, o prazo de responsabilidade do vendedor (na compra e venda de coisas móveis e no fornecimento de conteúdos ou serviços digitais) não coincide com o período da presunção de que a desconformidade já existia no momento da entrega. O primeiro prazo é agora de três anos, enquanto o segundo é de dois anos. Após os primeiros dois anos a contar da entrega, o consumidor tem de provar não apenas a desconformidade, mas também que esta já existia no momento da entrega. Esta prova é diabólica e torna o exercício dos direitos mais difícil. Se já era discutível a utilização da palavra “garantia” face ao Decreto-Lei n.º 67/2003, essa expressão é ainda mais enganosa com o novo regime. Na minha perspetiva, não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Reforçando a ideia, parece-me estar mais próximo de um eventual prazo de “garantia” o período da presunção de anterioridade da desconformidade do que o prazo de responsabilidade do vendedor.

A terceira grande novidade é a previsão de uma hierarquia no que respeita aos direitos do consumidor em caso de desconformidade. Em regra, apenas após ser tentada a reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição, passa a ser possível a resolução do contrato (ou a redução do preço). Excetuam-se os casos em que a desconformidade se manifeste nos primeiros trinta dias. Esta exceção encontra-se prevista no art. 16.º, norma que tem vários problemas. Em primeiro lugar, ao contrário do que parece resultar da epígrafe (direito de rejeição), não se trata de um direito novo, com uma designação nova. Está em causa o direito de resolução, sendo apenas um problema de hierarquia dos direitos. Em segundo lugar, a referência à substituição nesta norma é inadequada. Com efeito, não existe hierarquia entre a reparação e a substituição, pelo que esta pode ser sempre exigida pelo consumidor, salvo impossibilidade ou abuso de direito (nomeadamente, a desproporção dos custos face ao outro direito), independentemente de terem passado mais do que os 30 dias previstos na norma.

As quarta e quinta grandes novidades já foram abordadas neste texto e passam pela incompreensível separação dos regimes da compra e venda de coisas móveis e de coisas imóveis e pela responsabilização direta das plataformas digitais de intermediação em termos bastante alargados.

Não consideramos aqui novidade, uma vez que era totalmente expectável, tendo em conta a Diretiva (UE) 2019/770, a regulação, pela primeira vez em Portugal, dos contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais.

Há outros aspetos muito interessantes no Decreto-Lei n.º 84/2021, como os novos requisitos de conformidade, a limitação da responsabilidade do profissional pela publicidade, a maior liberdade do profissional quanto ao prazo para a reposição da conformidade das coisas móveis, que deixa de ser impreterivelmente de 30 dias, a eliminação do prazo de denúncia da desconformidade, a introdução do conceito de “bens com elementos digitais”, o aumento do prazo de “garantia” em caso de reparação da coisa móvel (prazo de responsabilidade do vendedor, o período relativo à presunção de anterioridade ou ambos?) ou o direito a um serviço pós-venda e disponibilização de peças, que certamente irão levantar muita discussão na doutrina nacional.

Quis deixar aqui apenas algumas notas iniciais sobre o diploma, esperando que suscitem o debate.

* Agradeço ao Carlos Filipe Costa, ao Eduardo Freitas, à Maria Miguel Oliveira da Silva, à Paula Ribeiro Alves e à Sara Fernandes Garcia pela leitura e pelos comentários feitos a uma primeira versão deste texto. É uma felicidade poder partilhar a investigação com uma equipa fantástica no NOVA Consumer Lab.