Advogado. Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), Mestrado em Direito Comercial na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica) e Pós-Graduação Avançada em M&A e Corporate Litigation (Clássica).


Passando despercebido a muita gente, no passado dia 10 de maio de 2021 deu entrada na Assembleia da República a Proposta de Lei 92/XIV/2 através da qual o Governo propõe alterações a várias normas do Código de Processo Civil. Desengane-se quem pensa que se trata de pequenas alterações formais, sem consequências diretas no dia-a-dia da prática forense cível. Pelo contrário, propõe-se a alteração de mais de 50 normas com impacto em todas as fases processuais.

Custa um pouco a acreditar e a perceber a razão pela qual, num cenário em que existem desafios que exigem medidas bem mais urgentes, o Governo entendeu necessário proceder a alterações tão significativas ao CPC que, recorde-se, foi alterado drasticamente em 2013. Custa ainda mais acreditar quando estas alterações, na nossa modesta opinião, não visam adaptar o CPC à nova realidade (por exemplo, não há uma preocupação com a regulação concreta das audiências por videoconferência), mas repristinar soluções antigas e promover alterações que colocam em causa princípios tão basilares do processo civil como a imediação.

Foquemo-nos em algumas das alterações propostas.

Comecemos pelo alargamento do âmbito da réplica.

Na sequência da reforma de 2013, a réplica passou a existir apenas nos casos em que seja deduzida uma reconvenção por parte do réu na contestação e só para resposta a essa mesma reconvenção. Assim, no regime atual (artigo 584.º do CPC), se não for deduzida reconvenção pelo réu, não há lugar a réplica por parte do autor.

A alteração constante na Proposta de Lei 92/XIV/2 é a admissibilidade de apresentação de réplica não só para defesa da matéria de reconvenção, mas também para resposta, pelo autor, às exceções deduzidas pelo réu na sua contestação. Propõe-se um alargamento do âmbito da réplica passando esta a servir para o autor responder às exceções deduzidas na contestação. É o ressurgimento da solução que já vigorava no CPC anterior (antigo artigo 502.º).

Caso esta alteração venha a efetivar-se, a consequência será lógica: haverá uma generalização da apresentação da réplica (tal como já acontecia antes de 2013). Esta deixará de ser um articulado pontual (a generalidade das contestações não comporta reconvenções) e passará a ser um articulado vulgar (na generalidade das contestações são deduzidas exceções por parte do réu). O uso recorrente da réplica implicará, necessariamente, um prolongamento da fase dos articulados (que será ainda reforçado pelo ressurgimento da tréplica, como veremos) que, no nosso entendimento, é injustificado.

Esta alteração surge em contramão à intenção (diga-se, louvável) do legislador de 2013 de reduzir a fase dos articulados. Não se alcança o benefício imediato da generalização da réplica. Os defensores desta alteração dirão que a resposta às exceções no início das audiências (prévia ou final) é incomportável, face à complexidade dos temas em causa. A verdade é que, muitas vezes, quando as exceções em causa são manifestamente complexas, os tribunais, desde 2013, têm tomado a iniciativa de notificar o autor para lhes responder por escrito. Sendo que, quando tal não acontece, nada obsta a que o autor apresente a sua resposta, por escrito, em sede de audiência prévia ou final, expondo apenas oralmente os pontos principais da sua defesa. Receia-se que esta alteração ao âmbito da réplica venha a ser um convite legal ao autor para responder, encapotadamente, a todos os argumentos invocados na contestação. Esta situação originará muitas vezes uma resposta da parte contrária e, assim, se eternizando a discussão e havendo lugar a desentranhamentos desnecessários.

Concomitantemente a este alargamento do âmbito da réplica, a Proposta de Lei 92/XIV/2 vem repristinar a tréplica.

A tréplica foi eliminada na reforma de 2013 face à restrição do âmbito da réplica. Com o alargamento do âmbito desta, volta a prever-se a tréplica para os casos em que (i) se houver réplica e nesta for modificado o pedido ou a causa de pedir ou (ii) se, no caso de reconvenção, o autor tiver deduzido alguma exceção. A tréplica, que poderá ser apresentada no prazo de 15 dias a contar da notificação da réplica, servirá para o réu responder à modificação do pedido ou causa de pedir e/ou para responder às eventuais exceções deduzidas pelo autor.

Na linha do referido quanto ao alargamento do âmbito da réplica, não nos parece que esta alteração venha trazer um benefício evidente e claro para a tramitação célere e eficaz dos processos judiciais. A concessão de um prazo adicional de 15 dias para o réu responder à réplica vai servir para que se dê o prolongamento da fase dos articulados. Não se entende a razão de se promover alterações que favoreçam a existência de mais articulados, dando às partes a oportunidade para aperfeiçoarem a sua narrativa e o seus argumentos a cada nova resposta. Acima de tudo estas alterações representam uma contrarreforma clara à reforma de 2013 que procurou restringir o processo aos factos essenciais e não promover a eternização das discussões entre as partes nos articulados. É um manifesto passo atrás.

A Proposta de Lei 92/XIV/2 comporta também algumas alterações no plano da prova testemunhal. Destacamos duas.

A primeira prende-se com o facto de se pretender voltar a introduzir uma limitação ao número de testemunhas que podem depor sobre cada facto. Em concreto, propõe-se que “sobre cada um dos factos que se propõe provar, não pode a parte produzir mais de três testemunhas, não se contando as que tenham declarado nada saber, sem prejuízo de o juiz, se não tiver ficado suficientemente esclarecido, poder admitir a inquirição de número superior, por decisão irrecorrível” (redação proposta para o n.º 5 do artigo 511.º).

Como se sabe, o CPC anterior a 2013 consagrava que as partes não podiam produzir mais de cinco testemunhas por cada um dos factos que se propusessem provar (antigo artigo 633.º). O CPC atual nada dispõe sobre esta matéria.

Esta alteração, se for aprovada, trará um problema significativo para a preparação e dinâmica dos julgamentos. No CPC de 2013, foi eliminado o limite das cinco testemunhas por cada facto, face à reconfiguração da fase da instrução, tendo desaparecido o tradicional sistema de “base instrutória” e passando-se a consagrar uma nova formulação assente nos tão famosos “temas da prova”. A limitação de testemunhas por factos implica necessariamente que exista um “questionário”, ou seja, o elenco detalhado de todos os factos que terão de ser comprovados pela prova testemunhal em sede de audiência de julgamento. Esta limitação não está pensada para os temas da prova, que são naturalmente abrangentes e que comportam em si um elenco, muitas vezes, significativo de factos. A incorporação desta limitação conduzirá, acreditamos nós, a que os juízes deixem de lado os temas da prova e regressem aos antigos questionários, elaborando intermináveis despachos saneadores, muitas vezes indecifráveis e de leitura impossível, com as dezenas, centenas, milhares de factos alegados pelas partes nos articulados e que são matéria controvertida. Isto será um retrocesso significativo. Apesar de ter tido um nascimento difícil, é pacífico para os vários sujeitos processuais que os temas da prova trouxeram uma simplificação dos processos, uma agilização dos julgamentos e, acima de tudo, simplificaram a produção de prova testemunhal.  

Saliente-se que a própria Associação Sindical dos Juízes Portugueses considera que esta limitação só se justificava face à anterior base instrutória, sendo que esta limitação “não tem qualquer sentido e utilidade, constituindo um retrocesso na simplificação e agilização processual, implicando um esforço acrescido para o tribunal e para os mandatários, na medida em que a enunciação dos temas de prova não corresponde à fixação dos factos controvertidos a que se reportava a base instrutória”, assim “obriga o tribunal e os mandatários a uma prévia fixação dos factos efetivamente controvertidos, sob pena de tal tarefa ocorrer durante a própria audiência final, o que, inevitavelmente, reconduzirá a uma maior e inútil morosidade dos trabalhos, com expedientes processuais que só entorpecerão a audiência” (cf. parecer da ASJP disponível em www.parlamento.pt).


A segunda alteração que gostaríamos de destacar, também relacionada com a prova testemunhal, prende-se com o alargamento do depoimento testemunhal por escrito.

O CPC atual consagra (artigo 518.º) que pode haver lugar ao depoimento da testemunha por escrito quando (i) se verificar a impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal, (ii) houver autorização do juiz e (iii) acordo das partes.

A nova redação que a Proposta de Lei 92/XIV/2 sugere para o artigo 518.º é uma alteração significativa a este regime. De acordo com a Proposta, para que possa ser prestado depoimento testemunhal por escrito basta que (i) haja acordo das partes e (ii) a testemunha tenha conhecimento de factos por virtude do exercício das suas funções. Face a esta redação proposta, (i) cai a necessidade de autorização do tribunal, sem prejuízo de o juiz, oficiosamente, ou a requerimento de uma das partes, poder determinar a renovação do depoimento na sua presença, (ii) cai também o requisito da impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal, e (iii) introduz-se a exigência de a testemunha ter conhecimento dos factos em virtude do exercício das suas funções.

Não podemos concordar com esta proposta de alteração. Estamos perante uma modificação que afeta os princípios da imediação e da oralidade que são essenciais para a apreciação da prova testemunhal. Acima de tudo, entendemos que o requisito da impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal deveria ser mantido, bem como a necessidade de autorização prévia do tribunal. O depoimento testemunhal por escrito deve ser um caso excecional e não uma possibilidade recorrente. A aprovação desta nova redação proposta é contranatura à essência da prática forense cível. Como refere a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a “valoração do depoimento de uma testemunha vai além da linguagem verbal, assumindo a linguagem não verbal uma importância essencial na apreciação do depoimento e na formação da convicção” (cf. parecer da ASJP disponível em www.parlamento.pt).

De igual modo, diga-se que não se concorda com a alteração quanto ao regime da inquirição por acordo das partes (artigo 517.º do CPC), no sentido de as custas do processo serem reduzidas para metade quando, até ao despacho que marque a audiência final, for apresentada ata de inquirição da totalidade das testemunhas arroladas pelas partes (redação proposta para o novo número 3 do artigo 517.º). A garantia da imediação é claramente um alvo da Proposta de Lei 92/XIV/2. O que não pode ser acolhido de ânimo leve. Além disso, potencia-se uma eventual prevalência de quem tem vantagem económica, porquanto a redução das custas para metade pode ser persuasiva em relação a quem não tem essa vantagem. O que não pode ser aceite.

Por último, um breve comentário quanto a uma alteração que, no nosso entendimento, só pode ser promovida por quem não exerce, no seu dia-a-dia, uma advocacia de tribunal e não está sujeito ao stress diário dos prazos judiciais.

O CPC atual consagra que, caso o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição de recurso (e de resposta) acrescem 10 dias, originando que o prazo de recurso seja de 40 dias ou de 25 dias, se for um processo urgente (artigo 638.º, n.ºs 1 e 7).

De forma que consideramos algo surpreendente que a Proposta de Lei 92/XIV/2 proponha a eliminação de prazo adicional de 10 dias em caso de reapreciação da prova gravada.

Ao contrário do que se possa pensar, a elaboração de um recurso que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada não é comparável à de um recurso que não verse sobre essa matéria. Para além de a complexidade ser maior, o nível de detalhe é muito mais elevado. Os mandatários terão neste caso de ouvir as gravações das sessões de julgamento (que, muitas vezes, são dezenas), indicar o início e fim dos depoimentos e transcrever as partes relevantes (que, muitas vezes, são dezenas de páginas). E para aqueles mandatários que recorrem a serviços de transcrição é, muitas vezes, neste prazo adicional de 10 dias que têm acesso às mesmas e que precisam de as analisar e identificar os pontos relevantes. Este prazo adicional de 10 dias é de uma importância inegociável para os mandatários. Retirar esse prazo de 10 dias ao mesmo tempo em que se mantém (e ainda se reforça) os requisitos relativamente ao ónus do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto prevista no artigo 640.º do CPC é, salvo o devido respeito, uma proposta de quem nunca teve que preparar um recurso com reapreciação da prova gravada.

Não deixa de ser engraçado que, uma vez mais, o legislador volta a preocupar-se com os prazos concedidos às partes para exercerem os seus direitos, mas volta a esquecer-se que a razão dos atrasos nos processos judiciais está, essencialmente, do lado dos tribunais a quem, uma vez mais, não se impõe prazos concretos para dar sequência aos processos.

Não nos parece que estas alterações venham no sentido mais correto. É esta também a opinião transversal da Ordem dos Advogados e, em alguns casos, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, cujos pareceres constam do site do Parlamento. Tudo isto ainda são propostas que carecem de ser discutidas e aprovadas. No entanto, não conseguimos deixar de pensar que esta Proposta de Lei 92/XIV/2 não augura nada de bom.