Alexandre Guerreiro

Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias), FDUL (2021); Investigador FDUL (Direito Internacional Público); Formador CES-Universidade Coimbra (Direito Internacional Público, Direito Europeu e Direito Penal);
Assessor Parlamentar da Assembleia da República;
Analista de Informações (SIED);
Comentador TVI para assuntos de Justiça, Segurança e Internacionais (2016-2020).

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As dinâmicas verificadas no Afeganistão ao longo das últimas décadas nos domínios da política e da segurança têm trazido consigo inúmeros aspectos que justificam uma reflexão aprofundada na óptica do Direito Internacional Público. Em concreto, assistimos a eventos sucessivos que exigem um exercício analítico no contexto da ingerência, na medida em que se cruzam com o uso da força, o resgate de cidadãos nacionais no estrangeiro, a ingerência por convite, a aplicação de medidas hostis unilaterais, o patrocínio de grupos armados, o combate às ameaças assimétricas (terrorismo) e até a autodeterminação.

Todas estas realidades estão presentes no Afeganistão e são temas que exploro com detalhe na obra da minha autoria lançada há dias pela Almedina intitulada “A ingerência interestatal no quadro do Direito Internacional Público” (link). Com a conquista do território afegão conduzida pela milícia talibã e que culminou com o controlo de Cabul no passado Domingo, a situação no Afeganistão traz, na perspectiva do Direito Internacional Público, um novo problema, não menos complexo que os anteriores: a questão sobre a entidade que representa oficialmente o Afeganistão como poder soberano do país junto da comunidade internacional.

Neste aspecto, é importante considerar casos anteriores de modo a tentar identificar uma norma costumeira ou convencional, algum padrão em casos anteriores ou critérios utilizados por parte da comunidade de Estados que permitam determinar se a liderança talibã poderá aspirar, realisticamente, a assumir-se como entidade representativa legítima do povo afegão com vista à condução das relações internacionais do Afeganistão e enquanto entidade que exerce exclusivamente os poderes soberanos no país.

Olhando à situação em apreço, constatamos que existem três critérios possíveis para determinar a entidade legítima de representação de um Estado soberano: o exercício do controlo efectivo sobre um dado território e sobre o aparato militar e de segurança de um país num cenário de conflito armado, a legitimidade democrática por via da vontade expressa pela população e a designação, pelo Conselho de Segurança, de uma entidade estranha a estes dois critérios.

Desde a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), vários casos de legitimidade foram colocados em perspectiva. Um dos mais icónicos verificou-se, sem dúvida, no contexto da descolonização, sendo reconhecido aos povos autóctones o direito à legítima defesa contra as potências colonizadoras, reconhecendo-se às estruturas populares não inseridas no aparelho do Estado colonizador o direito a representarem os respectivos povos. Ao longo do tempo, outros casos mereceram uma tomada de posição da comunidade internacional, sobretudo no contexto de revoluções, de autodeterminação ou de golpes de Estado. Aqui, a unificação do Vietname, o Irão após a revolução de 1979 e o Kosovo emergem como casos de estudo mais relevantes.

Não obstante esta evidência, importa recordar a tomada de posição do Conselho de Segurança, em 1994, no sentido de autorizar os Estados a recorrerem a todos os meios necessários para restituir o poder a Jean-Bertrand Aristide, que havia sido deposto através de golpe de Estado, no Haiti, três anos antes. Aqui, o controlo efectivo do território, por mais que tenha sido consolidado pelos autores do golpe, foi desconsiderado como critério neste caso concreto. Todavia, se olharmos para outros contextos, percebemos as dificuldades em identificar um padrão consistente que permita descartar definitivamente o controlo efectivo como critério para o reconhecimento de uma entidade como representativa de um povo.

No contexto africano, por exemplo, observamos que as respostas dos Estados a mudanças de Governo inconstitucionais variam em função do caso concreto e a legitimidade democrática não se impôs como requisito para reconhecimento de um Governo. Nos últimos anos, identificamos casos semelhantes, como a queda de Viktor Yanukovych na Ucrânia, em 2014, e as lideranças políticas alvejadas pela Primavera Árabe. Em todos estes locais, as regras de afastamento do poder violou a ordem constitucional e a realização de um referendo ou de eleições livres, em alguns casos, ou não tiveram lugar ou não decorreram de acordo com requisitos que não firam a legitimidade do vencedor.

Podemos, assim, concluir que o controlo efectivo do território, por mais que tenha sido consolidado pelos autores de um golpe de Estado, não é um critério consensual para reconhecer a legitimidade de um novo poder soberano, mas também não é um critério a descartar em qualquer situação de transferência de poder contrária à ordem constitucional do país visado. Contudo, por outro lado, a democraticidade num Estado como forma de uma dada entidade recorrer à expressão popular para afirmar a sua legitimidade ainda não é um factor preponderante para assegurar o reconhecimento de um Governo como legítimo. Os mais recentes casos desta realidade são a Venezuela, a Bielorrússia e a Síria, países onde foram realizados sufrágios recentes, mas em que o bloco formado por um conjunto de Estados ocidentais alega que os escrutínios não obedeceram aos padrões básicos democráticos.

No final, a representação diplomática junto da ONU permite definir com maior rigor quem tem legitimidade para nomear os seus representantes junto deste órgão. Nos três últimos casos referidos, apesar do protesto ocidental, são os vencedores desses actos eleitorais que continuam a indicar os diplomatas que os representam na ONU, organização esta que os reconhece como tal, nunca tendo outras entidades sido capazes de atingir o mesmo tipo de afirmação.

Talvez, afinal, esteja aqui o segredo para o reconhecimento de uma liderança talibã no Afeganistão: num contexto em que Rússia e China já tomaram posições públicas que inclinam estes dois Estados para a defesa da teoria do controlo efectivo sobre o território afegão, encetando desde cedo conversações diplomáticas com os talibãs, as reservas ainda evidentes no bloco ocidental poderão ser ultrapassadas a partir do momento em que seja destacado para a ONU o primeiro elemento oficial da missão diplomática do Emirado Islâmico do Afeganistão. Perante esta realidade, restaria apenas perceber se seriam impostas condições ao novo poder de Cabul como exigência necessária para uma conformação internacional geral com a mudança constitucional no país.

Imagem: UGC via Associated Press