Filipa Calheiros Ferraz

Advogada na Vieira de Almeida e Associados (VdA). Mestre em Direito Administrativo pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Pós-Graduada em Direito Administrativo pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Pós-Graduada em Direito Intelectual pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Licenciada em Direito pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa


A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pela autora no âmbito do Mestrado de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto). Tese disponível neste link.


O artigo 5.º-A n.º 5 do CCP prevê a não aplicação da parte II do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) à formação dos contratos de cooperação horizontal celebrados exclusivamente por duas ou mais entidades adjudicantes quando se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) O contrato estabelece uma cooperação entre as entidades adjudicantes, no âmbito de tarefas públicas que lhes estão atribuídas e que apresentam uma conexão relevante entre si;

b) A cooperação é regida exclusivamente por considerações de interesse público; e

c) As entidades adjudicantes não exercem no mercado livre 20% ou mais das atividades abrangidas pelo contrato de cooperação.  

Os requisitos da cooperação horizontal começaram por ser indicados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu (“TJUE”) através sobretudo do Acórdão Comissão contra Alemanha[1] que criou a doutrina Hamburgo e do Acórdão Azienda[2]. As diretivas de 2014 de contratação pública[3] consagraram os requisitos dos contratos de cooperação horizontal, que posteriormente foram transpostos para o CCP em 2017 e revistos em 2021[4].

Pretende-se através desta análise aos requisitos que compõem os contratos de cooperação horizontal entre entidades públicas no CCP apresentar o nosso entendimento sobre a interpretação e o alcance dos requisitos legalmente consagrados[5].

1. Âmbito de tarefas públicas que lhes estão atribuídas e com conexão relevante entre si

1.1. O conceito de “tarefa pública” vs “serviço público”

O considerando 33 da diretiva 2014/24/UE inclui no conceito de cooperação “todos os tipos de atividades relacionados com o desempenho de serviços e responsabilidades atribuídos às autoridades participantes”, sendo, por isso, difícil encontrar uma atividade técnica ou material que não se encontre incluída neste conceito[6].

No texto da diretiva, a cooperação horizontal visa a realização de “serviços públicos”, enquanto no CCP se prevê a execução de “tarefas públicas”.  Consideramos a formulação do CCP tecnicamente mais adequada porque o conceito “tarefa pública” evidencia uma estratégia comum e conjunta baseada na troca e concertação dos respetivos interesses.

1.2 Tarefas públicas que lhes estão atribuídas

É indispensável a verificação de atribuição expressa de uma tarefa pública a cada uma das partes no contrato, não sendo admitida a prossecução de uma tarefa apenas por uma das partes, enquanto a outra parte assume essa tarefa que lhe é alheia por não lhe ter sido atribuída uma missão pública.

1.3. Tarefas a executar com uma “conexão relevante entre si”

O legislador europeu no artigo 12.º n.º 4 da diretiva não quis restringir o objeto do contrato a atribuições materialmente idênticas e coincidentes entre as partes, dado que isso reduziria, quase em exclusivo, a cooperação horizontal. Com efeito, o considerando 33 da diretiva prevê que os serviços a prosseguir pelas entidades poderão não ser necessariamente idênticos, desde que sejam complementares.

O CCP adotou a formulação de tarefas com “uma conexão relevante entre si”, não impondo que o contrato assegure a execução de missões públicas comuns às entidades. Ou seja, acolhe a complementaridade das tarefas públicas que a diretiva, inequivocamente, abraçou.

Por isso, cremos que a formulação contida no artigo 5.º-A, n.º 5 a) é mais clara do que a do artigo 12.º n.º 4 da diretiva por ser mais evidente a abrangência de tarefas idênticas, e de tarefas que, não o sendo, concretizam uma finalidade de interesse público muito próxima a ambas as partes.

1.4. Prestação remuneratória

Nota-se uma certa preocupação na doutrina em relação à prestação remuneratória para evitar que a cooperação se subsuma a um mero pagamento. Aceita-se que o contrato de cooperação preveja uma prestação pecuniária, porém, não é consensual saber se a prestação de uma parte se pode cingir apenas a uma remuneração.

A nosso ver, não se pronunciando o artigo 12.º n.º 4 da diretiva sobre a remuneração, o considerando 33 vem permitir a existência de remuneração, desde que esse montante remuneratório respeite o interesse público. No fundo, a diretiva permite, inclusive, uma remuneração cujo valor vá para além do mero reembolso dos custos incorridos, criando uma certa margem lucrativa para a entidade que a recebe, conquanto ainda se satisfaçam e se respeitem, exclusivamente, interesses públicos. Em todo o caso, objeto do contrato será sempre a execução de uma missão pública comum, indo mais além da execução de uma tarefa contra uma simples remuneração[7].

1.5. Tarefas principais ou possibilidade de executar tarefas acessórias?

O considerando 33 da diretiva prevê que a cooperação não obriga a que “todas as autoridades participantes assumam a execução das principais obrigações contratuais, conquanto sejam assumidos compromissos de contribuir para a execução em cooperação do serviço público em causa”, contrariando o entendimento clássico do TJUE de que a execução de atividades acessórias das entidades, não relacionadas com o exercício de poderes de autoridade pública, não consubstanciava uma missão pública comum.

Nessa senda, entendemos que basta as partes assumirem o compromisso de contribuir conjuntamente para a tarefa pública, não sendo necessária a vinculação ao desempenho de tarefas principais[8]. Têm de ser prestações que realizem um objetivo comum, não relevando a sua natureza principal/acessória ou o maior/menor contributo de uma parte em relação à outra.

1.6. Tarefas públicas apenas de tipo público ou idênticas às prestadas por privados?

Os contratos de cooperação horizontal serão, em princípio, mais frequentes em áreas de natureza pública, por não terem tradicionalmente uma natureza lucrativa. Porém, surge a dúvida, quanto à exclusão da concorrência de contratos interadministrativos que incluam tarefas tipicamente prestadas por privados em contratos de prestação de serviços.

O TJUE teve reservas em relação a esta possibilidade, porém, atualmente, a alínea c) do artigo 5.º-A n.º 5 do CCP vem permitir que o objeto do contrato se prenda com atividades comerciais normalmente prestadas no mercado privado, desde que não se exceda o limite dos 20% de atividade exercida no mercado.

2. Regida exclusivamente por considerações de interesse público

Alguma doutrina receia que o conceito de “interesses públicos” traga incerteza jurídica, por não ter sido definido nas diretivas[9], desde logo nos quatro aspetos que trataremos de seguida.

2.1. Valor da remuneração

O valor da remuneração deve respeitar o interesse público. Mas, podemos questionar-nos se o interesse público é na mesma prosseguido se a prestação remuneratória efetuada por uma entidade adjudicante aportar lucro à outra entidade adjudicante parte no contrato.

Para garantir a presença exclusiva dos fins de interesse público, o TJUE considera que o contrato não perde a sua onerosidade pelo facto de a remuneração se limitar aos custos incorridos com a execução da tarefa pública[10].

É certo que a limitação da remuneração aos custos incorridos é sempre um indício forte para a verificação da prossecução exclusiva de interesses públicos no contrato[11]. Porém, entendemos que há que interpretar a não adoção do requisito remuneratório pela diretiva no artigo 12.º n.º 4 com o considerando 33, que exige que as transferências financeiras sejam exclusivamente regidas pelo interesse público. Ou seja, perceber em que medida o valor remuneratório deve ser limitado em respeito pela prossecução do interesse público.

Certamente, deve permitir-se a obtenção do lucro, desde que seja razoável. Por isso defendemos que o lucro pode ser totalmente reutilizado para aumentar a qualidade do serviço público, por a qualidade e a performance estarem intrinsecamente ligadas à exclusividade do interesse público. Não pode é o preço estipulado ser superior àquele que praticam os mercados nem a entidade decidir não reinvestir o lucro obtido no serviço público prestado. Porém, se o objetivo da entidade for a obtenção de lucro a título principal, sem observância do interesse público, o contrato sujeitar-se-ia à concorrência.

2.2. Participação privada nas entidades adjudicantes

A participação de privados no mercado (plano do mercado) distingue-se da participação privada detida por entidades privadas nas entidades adjudicantes (plano do contrato), porque a participação de privados no mercado, isto é, de entidades privadas com escopo lucrativo é bem distinta da existência de participação privada nas entidades adjudicantes que prosseguem o interesse público.

A ausência de participação de entidades privadas nas entidades adjudicantes[12] não é requisito das diretivas de 2014, por força do considerando 32[13]. Por isso, contrariamente ao entendimento do TJUE, as diretivas estipulam que não se sujeita automaticamente o contrato à concorrência pela mera existência de participação privada nas entidades adjudicantes.

A doutrina tem-se dividido a respeito da admissibilidade de participação privada nas entidades adjudicantes, mas, a nosso ver, é difícil que um contrato de cooperação regido exclusivamente por considerações de interesse público seja compatível com a admissibilidade de participação privada nas partes do contrato, sem qualquer limitação.

É certo que as diretivas não criam limites à participação privada nas entidades adjudicantes. Porém, apesar da permissibilidade das diretivas, cremos que a existência de participação privada nas entidades adjudicantes pode obstar às considerações de interesse público, que devem ser exclusivamente prosseguidas, ao permitir a criação de vantagens na esfera dos acionistas privados através do contrato de cooperação celebrado. A não ser no caso de a participação privada ser de tal forma residual que não permita aos acionistas privados influenciar as decisões a tomar relacionadas com a missão pública vertida no contrato e não tenham possibilidade de controlar o modo de atuação da entidade adjudicante.

2.3. Subcontratação

O TJUE considera que basta a mera previsão de subcontratação no contrato de cooperação horizontal para o mesmo se submeter à concorrência. Já as diretivas não apresentam uma solução concreta.

Quanto a nós, entendemos que o contrato não poderá permitir a subcontratação de privados, mesmo que se substituam a entidades públicas adjudicantes que tenham sido parte inicial no contrato, dado não se garantir a inexistência de outros interesses em jogo. No entanto, se se tratar de um subcontratado com natureza pública, parece-nos que deve ser admitida, se o subcontratado for capaz de cumprir com as restantes condições da cooperação horizontal.

2.4. Exigência de pagamento de preço por terceiros utilizadores

A questão que se coloca (e que está igualmente interligada com a exclusividade da prossecução do interesse público) é a de saber se os contratos de cooperação para o exercício de tarefas públicas legitimam a cobrança de um preço a terceiros que usufruam da tarefa pública desempenhada pelas partes. Ou se, pelo contrário, a remuneração somente pode existir no lado das entidades contratantes, pelo facto de a função do contrato ser a garantia da prossecução exclusiva do interesse público através da concretização da missão pública comum às entidades adjudicantes.

As diretivas e a jurisprudência do TJUE não colocam entrave à possibilidade de cobrança de um preço a terceiros. Não consideramos que o facto de os utilizadores também financiarem o serviço público que estão a utilizar seja impeditivo da realização da missão pública comum a cargo das entidades adjudicantes e objeto do contrato.

Tal como Villar Rojas[14], entendemos que a execução coordenada e conjunta da missão de serviço público comum substitui a execução com meios próprios, exercida a título individual, por cada entidade adjudicante, se não tiverem celebrado o contrato de cooperação horizontal. Assim, e por maioria de razão, deve também ser admissível que, ao prestar serviços aos cidadãos através do contrato de cooperação, se possa, igualmente, exigir um pagamento de uma taxa, como acontece, se for o caso, na execução individualizada da tarefa pública.

3. As entidades adjudicantes não exercem no mercado livre 20% ou mais das atividades abrangidas pelo contrato de cooperação  

A formulação legal da alínea c) do artigo 5.º-A n.º 5 do CCP encontra-se em sintonia com a diretiva e com a jurisprudência do TJUE que permite que a atividade do contrato seja exercida no mercado com caráter marginal.

Esta alínea foi alterada recentemente pela Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, e deve manter-se a sua interpretação no sentido de pelo menos 80% da atividade das entidades adjudicantes ter de ser destinada à prossecução de missões de serviço público sem finalidade lucrativa principal, permitindo-se que apenas menos de 20% da atividade seja prestada no mercado privado.

No fundo, a cooperação horizontal não deixa de prosseguir unicamente interesses públicos se, a título acessório e meramente marginal, uma percentagem residual da atividade das entidades adjudicantes se efetuar no mercado livre. Por isso, consideramos que a entidade pública pode integrar um contrato de cooperação e exercer, ao mesmo tempo, uma reduzidíssima atividade no mercado, se não utilizar o contrato para reforçar a sua posição no mercado (através, por exemplo, de economias de escala) prejudicando, assim, outros privados, para não distorcer, dessa forma, a concorrência.

O artigo 5.º-A n.º 6 do CCP em linha com o artigo 12.º n.º 5 da diretiva prevê que a percentagem de atividade exercida no mercado privado obedece à forma de cálculo da contratação in-house, isto é, tem em conta o volume médio total de negócios, ou uma medida alternativa adequada, baseada na atividade, tais como os custos suportados pela pessoa coletiva em causa no que diz respeito a serviços, fornecimentos ou obras, nos três anos anteriores ou, quando não tenha três anos de atividade concluídos, a projeção de atividades a desenvolver.

O facto de as diretivas não preverem expressamente o modo de cálculo da percentagem de atividade no artigo 12.º n.º 4, remetendo para o critério do in-house, deve-se apenas, no nosso entender, à consagração, em primeiro lugar, da contratação in-house pelo legislador europeu, não pondo em causa a autonomia e independência da cooperação horizontal.

Conclusão

Em suma, os contratos de cooperação horizontal apresentam inúmeras vantagens para as entidades adjudicantes na realização das suas tarefas públicas. Resultam de uma oposição constante entre o princípio da concorrência e a livre escolha pelos Estados-Membros da forma em que executam as suas tarefas públicas em prossecução do interesse público. E é justamente nesta tarefa árdua de equilibrar essa tensão existente que reside a problemática da figura, tendo as diretivas de 2014 consagrado a cooperação horizontal de forma mais flexível em relação ao TJUE e às instituições europeias, aportando maior certeza jurídica.

Todavia ficaram por esclarecer alguns aspetos dos requisitos destes contratos já existentes ou que decorrem do texto da diretiva: seja porque não foram abordados pelo legislador, ou porque a sua abordagem não é consensual na doutrina, cabendo à jurisprudência e à doutrina contribuir para a sua densificação.


[1] Acórdão do TJUE de 9 de Junho de 2009 (proc. C-480/06).

[2] Acórdão do TJUE 19 de Dezembro de 2012 (proc. C-159/11).

[3] Referimo-nos à diretiva 2014/24/UE por maior aplicabilidade prática, encontrando-se a cooperação horizontal prevista nas diretivas 2014/23/UE e 2014/25/UE.

[4] Cf. Lei 30/2021, de 21 de Maio.

[5] Este texto corresponde a uma breve síntese atualizada de um dos capítulos da dissertação de Mestrado em Direito Administrativo da Autora defendida em Novembro de 2018 na Escola de Direito do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Para uma leitura mais aprofundada sobre os contratos de cooperação horizontal entre entidades públicas, veja-se a dissertação de Mestrado da Autora, que se encontra publicada em formato digital pela Universidade Católica Editora:

FILIPA CALHEIROS FERRAZ, “Contratos de Cooperação “Horizontal” entre Entidades Públicas: da jurisprudência do TJUE à consagração nas Diretivas Europeias de 2014 e no Código dos Contratos Públicos” in Raquel Carvalho, Catarina Santos Botelho (coords.), Yearbook: Mestrado da Faculdade de Direito – Escola do Porto / Universidade Católica Portuguesa Vol I, 2018.

[6] Villar Rojas, “Los contratos para la prestación conjunta de servicios públicos locales”, Revista de Estudios de la Administración Local y Autonómica, 7, 2017, p. 9.

[7] Ibidem, p. 15.

[8] Ibidem, p. 10.

[9] Janssen, “The institutionalised and non-institutionalised exemptions from the EU public procurement law: Towards a more coherent approach?”, Utrecht Law Review, 10, 2014, p. 180.

[10] Cf. ponto 29 do Acórdão Azienda.

[11] Sue Arrowsmith, The law of public and utilities procurement: Regulation in the EU and UK, vol.1, 2014, London, Sweet and Maxwell, p. 530 e Miguel Assis Raimundo, “Primeira Análise das novas diretivas (parte II), Revista de Contratos Públicos, 9, 2013, p. 135.

[12] Para Arrowsmith, a falta do requisito na cooperação horizontal evidencia a sua inexistência, porque foi expressamente consagrado como requisito do in-house nas Diretivas 2014, cf. Sue Arrowsmith, The law of public …, p. 528.

[13] Raquel Carvalho, “Cooperação entre entidades públicas adjudicantes”, Direito e Processo Administrativo, 2016, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, p. 116.

[14] Villar Rojas, “Los contratos …”, p. 14.