Diana Leiras
Doutora em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela. Docente da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave. Solicitadora. Investigadora do Instituto Jurídico Portucalense.
Como confirmam as estatísticas publicadas pela Direção Geral da Política de Justiça (DGPJ), o testamento tem um papel proeminente no seio da sociedade portuguesa (nos últimos dez anos o número de testamentos públicos celebrados tem excedido 20.000/ano – no ano pandémico de 2020, foram celebrados 24.460 testamentos públicos)[1].
Tal não nos causa qualquer surpresa, já que se trata de um instrumento que, pese embora não possa ser utilizado de forma irrestrita (máxime por força do sistema de legítimas), prestigia a autonomia da vontade do testador, e a sucessão contratual só em casos muitos excecionais é admitida[2].
Quem
pretenda outorgar testamento poderá fazê-lo em qualquer cartório notarial do
território nacional. O notário, salvo disposição legal em contrário, pode
praticar, dentro da área do concelho em que se encontra sediado o seu cartório
notarial, todos os atos da sua competência que lhe sejam requisitados, mesmo que
respeitem a pessoas domiciliadas ou a bens situados fora dessa área[3]. Desta forma, nada impede que
uma pessoa outorgue dois ou mais testamentos em diferentes cartórios notariais.
Por exemplo, pode outorgar um primeiro testamento num cartório notarial e um
segundo noutro cartório notarial, podendo este testamento mais recente implicar
ou não a revogação (total ou parcial) do anterior[4].
Assim,
no que respeita ao testamento público, embora não sejam raros os casos em que o
beneficiado conhece essa sua condição através do próprio testador, e nesse
instrumento intervenham, por regra, duas testemunhas, que podem, cessado o seu
dever de sigilo, dar conta da existência do testamento, a unilateralidade e a
livre revogabilidade que caraterizam este negócio jurídico, conjugadas com a possibilidade
de o mesmo poder ser outorgado em qualquer cartório notarial, dificultam o
apuramento das últimas vontades do de cujus[5].
Posto isto, cumpre-nos salientar os seguintes aspetos:
– Os notários têm a obrigação de remeter à Conservatória dos Registos Centrais (CRC) a informação com a identificação dos testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito ou abertura de testamentos cerrados e de testamentos internacionais, escrituras de revogação de testamentos e escrituras de renúncia ou repúdio de herança ou legado que hajam sido lavrados no mês anterior, bem como a identificação dos respetivos testadores ou outorgantes (art. 187.º, n.º 1, alínea a), CN).
O artigo 187.º, n.º 1, proémio, determina que a participação é feita “por via eletrónica, nos termos a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”. Porém, ainda que esta norma tenha a redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 324/2007, de 18 de setembro, só muito recentemente a dita portaria foi publicada. Em causa, a Portaria n.º 121/2021, de 9 de junho, que prevê que, até à disponibilização de um sistema de informação da responsabilidade do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN, I. P.), que integre os índices gerais de títulos e que permita operar uma comunicação entre sistemas, a participação dos atos seja efetuada através do envio de ficheiro eletrónico à CRC, nos termos definidos em protocolo celebrado entre a Ordem dos Notários e o IRN, I. P.
A aludida Portaria entrará em vigor seis meses após a sua publicação[6]. Até então, os notários continuarão a fazer tais comunicações à CRC através do preenchimento e envio de uma ficha de modelo aprovado, em conformidade com as instruções fixadas numa Circular de 3 de dezembro de 1954 da antiga DGRN-Direção Geral dos Registos e do Notariado.
– Com base em tais comunicações, a CRC detém um registo central de testamentos. Esse registo contém um índice geral de testamentos, escrituras de revogação destes e de renúncia e repúdio da herança ou legado, registados na CRC desde 1950, estando organizado por ordem alfabética dos nomes dos testadores e outorgantes[7].
– A lei impõe sobre a CRC o dever de prestar as informações que lhe forem solicitadas pelos interessados sobre a existência dos testamentos e das escrituras registadas no índice geral e sobre a data e repartição em que esses documentos foram lavrados. Estas informações só podem ser prestadas após a verificação do falecimento do testador ou, em vida deste, a seu pedido ou do seu procurador com poderes especiais (art. 207.º, n.ºs 1 e 2, CN)[8].
Apesar do exposto, a lei não exige, para a prática de quaisquer trâmites da sucessão mortis causa, a apresentação de certidão emitida pela CRC que contenha a referida informação – a chamada “certidão sobre a existência de testamento, escritura de renúncia ou repúdio de herança ou legado”, à qual nos referiremos de forma abreviada como certidão sobre a existência de testamento, por ser sobre esta matéria que versam as presentes reflexões.
Assim, a informação que é prestada, para os devidos efeitos, de que o falecido não deixou testamento, ou de que não deixou outro testamento para além daquele que se apresenta, e, por conseguinte, que não existem outros herdeiros que prefiram e concorram à herança com os habilitandos, não carece de comprovação documental, sendo meramente declarativa. É a pessoa que alega a existência do testamento, que nele pode ter sido instituída herdeira, nomeada legatária, ou perfilhada, por exemplo, que tem de comprovar essa existência, e, para esse efeito, poderá ter de oficiar à CRC sobre a existência de testamento do autor da sucessão em causa[9].
Posto isto, o sistema jurídico permite que seja participada a transmissão gratuita para efeitos de imposto do selo por óbito à Autoridade Tributária[10], assim como realizada a habilitação de herdeiros, e a partilha de herança, sem que sejam conhecidas e respeitadas as disposições testamentárias que o autor da sucessão possa ter outorgado de forma válida e eficaz.
Permite
também a declaração de vacância da herança, sendo o Estado declarado herdeiro
legítimo (art. 2152.º a 2155.º, CC), por se desconhecer a existência de
testamento do autor da sucessão no qual este dispôs, válida e eficazmente, de
todos os seus bens, ou fez uma perfilhação, casos em que fica prejudicada a
abertura da sucessão legítima. A solicitação ao serviço competente sobre se o
falecido deixou testamento não constitui trâmite do processo especial tendente
ao reconhecimento da inexistência de outros sucessíveis, procedendo a
declaração de vacância da herança se, após a citação por éditos de quaisquer
interessados incertos sem ter havido habilitação como herdeiro ou tendo sido
julgada improcedente a habilitação deduzida[11].
Dito isto, partilhamos a nossa opinião no sentido de que a apresentação da certidão sobre a existência de testamento deveria obrigatoriamente acompanhar a Modelo 1 do Imposto do Selo, com o que sairia reforçada a segurança jurídica na identificação dos beneficiários da transmissão gratuita dos bens do falecido (herdeiros/legatários), e dos respetivos direitos.
A este propósito, notamos que a referida declaração tributária não produz apenas efeitos fiscais. Pensamos no regime especial que decorre do art. 25.º, n.ºs 3 a 5, do Regulamento do Registo Automóvel (DL n.º 55/75, de 12 de fevereiro), que estipula que o registo de propriedade de veículos pode ser feito com base em certidão que prove ter sido instaurado o processo fiscal relativo à transmissão sucessória, da qual conste a indicação dos herdeiros e a identificação do veículo (em alternativa ao documento comprovativo da habilitação de herdeiros), e admite, ainda, a requerimento de todos os herdeiros, que o registo seja efetuado apenas a favor de algum ou alguns deles.
No que concerne à habilitação de herdeiros, chamamos à colação o art. 85.º CN, relativo à habilitação notarial, os arts. 351.º e seguintes do CPC, quanto ao incidente de habilitação dos sucessores da parte falecida, e o art. 1097.º também do CPC, sobre a habilitação no âmbito do processo de inventário, para evidenciarmos que nenhum destes preceitos se refere à certidão sobre a existência de testamento no âmbito da prova que tem de ser produzida quanto à qualidade sucessória dos habilitandos.
Como a habilitação de herdeiros atesta que determinada ou determinadas pessoas são herdeiras, e que não há mais quem tenha idêntica ou melhor posição hereditária, os habilitados ficam legitimados para proceder à partilha da herança (em relação à pessoa falecida e à herança deixada por esta).
Ademais,
estando a herança indivisa, podem aqueles praticar os atos que estão especificamente
previstos nas alíneas do n.º 1 do art. 86.º, CN. Segundo este preceito, a
habilitação notarial tem os mesmos efeitos da habilitação judicial e é título
bastante para que se possam fazer em comum, a favor de todos os herdeiros e do
cônjuge meeiro, atos de registo nas conservatórias, de averbamento de títulos
de crédito e da transmissão de direitos de propriedade literária, científica,
artística ou industrial, e de levantamentos de dinheiro ou de outros valores[12].
Portanto, embora a habilitação de herdeiros produza efeitos jurídicos relevantes (não só substantivos), a mesma pode não estar conforme as disposições testamentárias que o de cujos outorgou com observância do disposto na lei, e isto pode perfeitamente acontecer porque não foram feitas buscas completas nos cartórios notariais, e não houve a cautela de obter junto da CRC uma certidão que confirmasse os resultados de tais buscas. Podem nem sequer terem sido feitas quaisquer buscas…
Por razões de diversa ordem, em especial para salvaguarda da autonomia da vontade do autor da sucessão, na qual se funda a liberdade de dispor por morte, a apresentação da certidão sobre a existência de testamento deveria passar a ser um documento obrigatório para a determinação dos sucessores (herdeiros e legatários) da pessoa falecida.
Ademais, as aquisições de bens da herança beneficiariam de maior segurança jurídica. Neste âmbito, alertamos para a possível verificação de questões jurídicas por motivo da desconsideração da existência de testamento na habilitação de herdeiros e na partilha (máxime a impugnação judicial de tais atos pelo herdeiro preterido[13]).
Embora esta medida não se enquadre no fenómeno, que temos vindo a assistir, de tendencial simplificação e desburocratização de procedimentos, antes contrastando com ele, o certo é que esse caminho poderá não ser adequado em todos os casos, e o documento que está aqui em causa pode fazer a diferença no âmbito da aplicação de determinados princípios basilares do nosso ordenamento jurídico.
O procedimento para solicitar a certidão sobre a existência de testamento está descrito no sítio https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/a_registral/registos-centrais/existencia-de-testamento.
A certidão tem caráter público, pelo que qualquer pessoa que esteja interessada em obter informação sobre a existência de testamento relativamente a determinada pessoa falecida pode, por si, ou através de procurador com poderes especiais solicitá-la à CRC.
Está previsto um prazo de 10 dias úteis após a data do óbito para se obter a certidão. Esta pode ser obtida num prazo inferior, mas nesse caso a informação disponibilizada será a existente na CRC à data da sua emissão.
O procedimento está simplificado desde que a Portaria n.º 182/2017, de 31 de maio veio regular os termos do pedido online da certidão (sítio https://www.sit.irn.mj.pt/portal/).
Independentemente
da forma do pedido, a certidão é emitida em papel e tem o custo de 25 euros[14].
À semelhança do que acontece com outras certidões que são obtidas junto de entidades públicas, inclusive da CRC (certidões de óbito, de nascimento…), o requerente deveria poder optar entre a emissão da certidão em papel ou em formato eletrónico.
A emissão da certidão em formato eletrónico (online) é um passo necessário para tornar o procedimento mais desburocratizado e célere para o requerente, que não teria de aguardar pela expedição postal do documento. Ademais, o impacto dessa medida ao nível das esperas nos serviços seria positivo, certamente. Outro aspeto que tornaria a certidão online mais tentadora do que a certidão em papel seria o custo associado, já que o emolumento devido poderia e deveria ser inferior ao de uma certidão em papel.
De
todo o modo, se a certidão passar a ter caráter obrigatório, como nos parece
adequado, justificar-se-ia a redução do emolumento que atualmente é cobrado
pela sua emissão, bem como a fixação de um prazo máximo para a sua emissão, um
prazo curto naturalmente[15].
[1] Https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/Atos_cartorios_notariais.aspx (data da consulta: 24/06/2021).
[2] A disciplina jurídica do testamento consta dos artigos 2179.º a 2334.º do Código Civil (CC). As formas comuns do testamento são o testamento público e o testamento cerrado (art. 2204.º CC). O primeiro é escrito pelo notário no seu livro de notas; o segundo é escrito e assinado pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo, ou escrito por outra pessoa a rogo do testador e por este assinado (arts. 2205.º e 2206.º CC).
[3] Cfr. art. 4.º, n.º 2, alínea a), e 3 do Código do Notariado (CN).
[4] A faculdade de revogação é irrenunciável (art. 2311.º, n.º 1, CC). A revogação dos testamentos rege-se pelos arts. 2311.º e ss., CC. Relativamente à revogação tácita, cfr. art. 2313.º, CC.
[5] A unipessoalidade e a livre revogabilidade estão presentes na noção legal de testamento. Art. 2179.º, n.º 1, CC: “Diz-se testamento o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”. A unilateralidade do testamento decorre ainda da proibição do testamento de mão comum (art. 2181.º CC). Quanto à livre revogabilidade, cfr. a nota infra.
Relativamente à intervenção de testemunhas nos testamentos públicos (e ainda nos instrumentos de aprovação ou de abertura de testamentos cerrados e internacionais e nas escrituras de revogação de testamentos), cfr. art. 67.º CN. O n.º 3 deste preceito admite a intervenção de peritos médicos para abonarem a sanidade mental dos outorgantes, a pedido destes ou do notário. Sendo o testamento um ato confidencial, as testemunhas estão vinculadas ao dever de sigilo consagrado no art. 32.º, n.º 2, CN.
[6] Cfr. art. 23.º desta Portaria.
[7] Cfr. art. 188.º, n.º 1, alínea a), CN.
[8] Do conteúdo dos testamentos públicos, escrituras de revogação de testamentos, instrumentos de depósito de testamentos cerrados e internacionais e dos respetivos registos, só podem ser extraídas certidões, sendo vivos os testadores, quando estes ou procuradores com poderes especiais as requeiram e, depois de falecidos os testadores, quando esteja averbado o falecimento deles (art. 164.º, n.º 1, alínea a), CN). Sobre o averbamento do falecimento do testador ao testamento e à escritura de revogação deste, cfr. art. 135.º CN.
[9] Cfr. Acórdão do TRC, de 08-11-2011, proc. n.º 79/09.0TBSPS.C2 (relator: Fonte Ramos), que a respeito de um incidente de habilitação de herdeiros, consignou: “Sem quebra do respeito devido por opinião em contrário, não vemos como fazer radicar neste artigo do Código do Notariado (em causa o art. 187.º CN) o ónus de oficiar à Conservatória dos Registos Centrais sobre a existência de outro testamento outorgado pela falecida A. e juntar aos autos o ofício em resposta para se provar ou não da existência de outros sucessores testamentários, não apenas porque as normas atinentes da lei processual civil não estabelecem qualquer ónus (ou obrigação) nesse sentido, quer porque o próprio regime decorrente do Código do Notariado indica a razão de ser da estatuição em causa e define o acesso à respetiva informação (cf., v. g., os art.ºs 202º, 204º e 207º, na redação conferida pelo DL n.º 324/2007, de 28.9)”.
[10] Deve ser efetuada até ao final do terceiro mês seguinte ao do óbito, cfr. art. 26.º do Código do Imposto do Selo.
[11] Cfr. arts. 938.º e ss., CPC. Nos trâmites deste processo poderia ser inserida norma análoga ao art. 885.º CPC (“conhecimento do testamento do ausente), relativa ao processo especial de justificação de ausência.
[12] A legitimidade dos legatários quanto aos bens legados resulta do testamento. Porém, quando aqueles forem indeterminados ou instituídos genericamente ou quando a herança for toda distribuída em legados, pode ser realizada habilitação de legatários. As normas relativas à habilitação dos herdeiros são aplicáveis, “com as necessárias adaptações, à habilitação de legatários, quando estes forem indeterminados ou instituídos genericamente ou quando a herança for toda distribuída em legados” (art. 88.º CN).
[13] Cfr. o art. 87.º, CN, relativo à impugnação da habilitação notarial; e os arts. 1127.º e 1128.º, CPC, que regulam, no âmbito do processo de inventário, a anulação da partilha e a composição do quinhão ao herdeiro preterido com dinheiro, respetivamente. Relativamente à partilha extrajudicial, o art. 2121.º, CC dispõe que a mesma só é impugnável nos casos em que o sejam os contratos.
[14] Cfr. art. 18.º, 10.2 do Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado (Decreto-lei n.º 322-A/2001, de 14 de dezembro).
[15] Na vizinha Espanha, o documento análogo a esta certidão – o denominado “certificado de actos de última voluntad” –, sem o qual nenhuma sucessão pode ser tramitada, tem o custo de 3,70 euros. Este certificado pode ser obtido após 15 dias úteis desde a data do óbito, e é emitido no momento se for pedido presencialmente (pode ser necessário esperar até 3 dias úteis), no prazo de 10 dias úteis, se é solicitado por correio postal, ou de 5 dias úteis, se o pedido é efetuado por via telemática. https://www.mjusticia.gob.es/ca/ciudadanos/registros/ultima-voluntad-seguros-vida/registro-actosultima-voluntad (data da consulta: 02/07/2021) .