Maria do Rosário Epifânio

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Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Advogada, Diretora da Revista de Direito da Insolvência.


I. A situação pandémica que vivemos desde o início de 2020 originou uma crise sanitária, social, económica e financeira à escala mundial cuja dimensão ainda não conseguimos estimar. Impõem-se, por isso, desde já, respostas em múltiplas frentes, designadamente, no Direito da Insolvência. Efetivamente, este “ramo” do Direito tem a potencialidade de oferecer um enquadramento jurídico a certos instrumentos que permitem minimizar o impacto da atual crise. É urgente prestar assistência legal a empresas “infetadas” pela crise pandémica, evitando a destruição de estruturas empresariais viáveis, mas cuja tesouraria se encontra provisoriamente estrangulada.

Até ao momento, foram introduzidas alterações cirúrgicas e temporárias na disciplina do processo de insolvência, do processo especial de revitalização (PER), do processo especial para acordo de pagamento (PEAP) e do regime extrajudicial e recuperação de empresas (RERE)[1].

Para além disso, foram criados dois novos mecanismos recuperatórios que importa analisar em detalhe – o processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE)[2] e o sistema público de apoio à conciliação no sobre-endividamento (SISPACSE)[3]. Estas novas oportunidades criadas pelo legislador pátrio não devem ser desperdiçadas pelo devedor, que deverá resistir à tentação de nelas se entrincheirar para evitar uma insolvência inadiável. Por seu turno, aos credores deve ser demonstrada a essencialidade destas novas ferramentas para a minimização de prejuízos, inevitáveis no contexto pandémico atual.

II. Comecemos pelo PEVE. Trata-se de um processo extraordinário e temporário (com a sua vigência predefinida para o período de 28 de novembro de 2020 a 31 de dezembro de 2021, podendo, todavia, ser prorrogada por Decreto-Lei) destinado à recuperação de empresas insolventes ou pré-insolventes em virtude da pandemia da COVID-19[4], mas que ainda sejam viáveis.

Apostando na promoção da prévia negociação voluntária de um acordo de viabilização entre a empresa e a maioria dos seus credores (sem dúvida, aquela que promove o melhor ambiente negocial entre ambos), convoca, todavia, a intervenção do tribunal na estrita medida do necessário ao alargamento da sua eficácia a certos credores não subscritores do mesmo – integra, assim, a classe dos processos “híbridos”. É, por isso, um processo urgentíssimo, pois goza de precedência sobre a tramitação e o julgamento dos restantes processos pré-insolvenciais (PER ou PEAP) e dos processos insolvenciais.

Sem custas processuais, a empresa suportará a remuneração do administrador judicial provisório, mas beneficiará da proteção do financiamento interno (que goza de privilégio creditório mobiliário geral, escapando assim à sua classificação como crédito subordinado) e de vantagens fiscais (redução ou perdão de juros) associadas a eventuais planos prestacionais aceites pela Autoridade Tributária ou pela Segurança Social.

Por fim, para evitar utilizações abusivas, assegurando o delicado equilíbrio de interesses entre os vários stakeholders, é um processo de utilização única, que pressupõe não só a demonstração do nexo causal entre a situação de insolvência e a pandemia da COVID-19, como também um inédito controlo jurisdicional da aptidão do acordo para oferecer “perspetivas razoáveis de garantir a viabilidade da empresa”.

III. O SISPACSE é um mecanismo puramente extrajudicial expressamente assumido como um sistema público que visa promover a “resolução alternativa de litígios” entre o devedor e os seus credores, através da intervenção de um “profissional habilitado a usar técnicas que promovam essa contratualização” (designado de conciliador) (Preâmbulo do respetivo diploma de aprovação). Contrariamente ao PEVE, promove-se, aqui, a adoção de soluções puramente conciliatórias sem a intervenção do tribunal e sem prazo de validade (esta solução não é excecional ou temporária).

Destina-se a devedores pessoas singulares (empresários ou não) que pretendam renegociar as suas dívidas pecuniárias que incumpriram, definitiva ou temporariamente, ou ameacem não cumprir (não se exigindo, em rigor, que o devedor esteja numa situação de sobre-endividamento, não obstante a referência expressa que é feita no Preâmbulo do respetivo diploma de aprovação e na designação da figura). Estão, porém, expressamente excluídas as dívidas tributárias e à segurança social, bem como as dívidas enquadráveis num PARI ou num PERSI[5]. Apesar de abranger um círculo muito restrito de dívidas pecuniárias, esta ferramenta jurídica poderá revelar-se de grande utilidade nos tempos vindouros – o levantamento das moratórias (nos contratos de arrendamento, para habitação ou comércio) vai “desligar da máquina” muitos devedores que terão que estar preparados para o embate que se avizinha.

Enquanto solução conciliatória, apresenta inúmeras vantagens para as partes envolvidas (devedor, credores e garantes) – celeridade, eficiência, redução de custos. Em particular, e no que respeita aos credores, é voluntário, pois os credores negoceiam, se quiserem; subscrevem o acordo, se assim o pretenderem. Depois, e ainda quanto aos credores, habilita-os, de forma rápida e económica, a um título executivo. Já no que concerne ao devedor, permite-lhe superar (ou, pelo menos, ensaiar uma tentativa de superação) uma situação de risco de incumprimento, de incumprimento temporário ou incumprimento definitivo de obrigações pecuniárias – prevenindo ou regularizando uma situação de sobre-endividamento. Ademais, com exceção de uma quantia inicial de 30€ e das despesas com as notificações postais, suportadas pelo devedor, este procedimento não tem outros custos ou encargos, sendo os honorários do conciliador pagos pela Direção Geral da Política de Justiça. Por último, a abertura deste Sistema à participação dos garantes constitui uma mais valia deste mecanismo face a outros instrumentos recuperatórios.

Enquanto solução conciliatória apresenta também algumas fragilidades de que poderão advir resistências da parte dos seus intervenientes. Na verdade, e desde logo, a figura do conciliador (que, segundo a lei, “acompanha o devedor”, mas que, em simultâneo, deve ter o “dom da imparcialidade”) que obrigatoriamente conduz o SISPACSE poderá causar alguma resistência aos credores – primeira fragilidade.

Em segundo lugar, o SISPACSE apresenta alguns momentos injuntivos para os credores: é desencadeado unilateralmente pelo devedor, obriga os credores a assistirem a uma sessão informativa ministrada pelo conciliador onde serão prestados esclarecimentos sobre “os objetivos a alcançar através do SISPACSE, as técnicas a utilizar e a eficácia jurídica dos acordos concluídos no seu âmbito” – segunda fragilidade.

Em terceiro e último lugar, e agora quanto ao devedor, do seu âmbito de aplicação estão expressamente excluídos os débitos pecuniários mais relevantes: dívidas ao fisco ou à segurança social, financiamentos para aquisição de habitação, financiamentos garantidos por hipoteca, financiamentos enquadrados em contratos de crédito a consumidores, entre outros – terceira fragilidade.


[1] Através do Decreto-Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro.

[2] Pela Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro.

[3] Pelo Decreto-Lei n.º 105/2020, de 23 de dezembro.

[4] Em regra, pois há situações excecionais em que a lei dispensa este nexo causal.

[5] Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), regulados pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.