Teresa Coelho Moreira

Doutora em Direito. Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho. Membro da Direção da APODIT – Associação Portuguesa de Direito do Trabalho. Membro integrado do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho e coordenadora do Grupo de Investigação em Direitos Humanos do mesmo

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No âmbito da pandemia provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, coloca-se a questão da realização de medição de temperatura dos trabalhadores pelo empregador como uma forma de tentar diminuir o contágio entre pessoas.

Os dados obtidos com esta medição são dados sensíveis, ou categorias especiais de dados pessoais ao abrigo do art. 9.º do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais (RGPD). A regra geral no que concerne este tratamento é a de que não podem ser tratados, a não ser ou com o consentimento do titular dos dados que, neste caso da relação de trabalho, não parece relevar. Na verdade, o RGPD retirou o acento tónico do consentimento como fundamento jurídico válido para o tratamento de dados pessoais quando, nos termos do considerando 43, “exista um desequilíbrio manifesto entre o titular dos dados e o responsável pelo seu tratamento”, como é o caso, claramente, da relação de trabalho. Este considerando é muito importante porque significa que para que um tratamento de dados pessoais realizado pelo empregador seja válido terá de assentar noutros princípios que não o mero consentimento do trabalhador. E esta ideia é reforçada quer pela redação do próprio art. 4.º, ao definir que o consentimento do titular dos dados é “uma manifestação de vontade, livre[1], específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento”, quer pelo próprio art. 7.º, sobretudo os números 1 e 4, que estabelecem, respetivamente, que “quando o tratamento for realizado com base no consentimento, o responsável pelo tratamento deve poder demonstrar que o titular dos dados deu o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais”, e que “ao avaliar se o consentimento é dado livremente, há que verificar com a máxima atenção se, designadamente, a execução de um contrato, inclusive a prestação de um serviço, está subordinada ao consentimento para o tratamento de dados pessoais que não é necessário para a execução desse contrato”.

Parece-nos, sem dúvida, que a noção de consentimento, entendido como uma manifestação de vontade livre, específica e informada, é um conceito de difícil concretização e de difícil preenchimento no contexto de uma relação de trabalho.

Considera-se que, no âmbito laboral, o requisito do consentimento fica relegado para um segundo plano já que o trabalhador interessado se encontra numa posição de desigualdade em relação ao responsável pelo tratamento, isto é, o empregador, desigualdade na sua necessidade de obtenção de um posto de trabalho, no caso dos candidatos a emprego, ou de manutenção do mesmo, no caso de trabalhadores. Não parece que neste tipo de relação se possa falar de um consentimento prestado livremente, principalmente quando o consentimento é requisito para a obtenção de um serviço essencial ou, no caso que aqui nos interessa, para a manutenção de um posto de trabalho, não podendo falar-se aqui de uma verdadeira liberdade de escolha.

Outra situação em que é possível o tratamento é se “for necessário para efeitos do cumprimento de obrigações e do exercício de direitos específicos do responsável pelo tratamento ou do titular dos dados em matéria de legislação laboral, de segurança social e de proteção social, na medida em que esse tratamento seja permitido pelo direito da União ou dos Estados-Membros ou ainda por uma convenção coletiva nos termos do direito dos Estados-Membros que preveja garantias adequadas dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados”[2], ou ainda, e parece-nos ser este o caso nestas situações, “Se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de ação social ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação social com base no direito da União ou dos Estados-Membros ou por força de um contrato com um profissional de saúde, sob reserva das condições e garantias previstas no n.º 3”[3]. E estas garantias estabelecem que “Os dados pessoais referidos no n.º 1 podem ser tratados para os fins referidos no n.º 2, alínea h), se os dados forem tratados por ou sob a responsabilidade de um profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional[4], nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes, ou por outra pessoa igualmente sujeita a uma obrigação de confidencialidade ao abrigo do direito da União ou dos Estados-Membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes”.

Assim, parece-nos claramente possível a realização de testes aos trabalhadores e, por isso, concorda-se com o que está previsto no art. 13º-C, com a epígrafe Controlo de temperatura corporal, do DL n.º 20/2020, de 1 de maio. Neste artigo estabelece-se:

“1 — No atual contexto da doença COVID-19, e exclusivamente por motivos de proteção da saúde do próprio e de terceiros, podem ser realizadas medições de temperatura corporal a trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho.

2 — O disposto no número anterior não prejudica o direito à proteção individual de dados, sendo expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma.

 3 — Caso haja medições de temperatura superiores à normal temperatura corporal, pode ser impedido o acesso dessa pessoa ao local de trabalho”.

Ora, atendendo ao disposto nesta norma, realizado no âmbito de uma situação excecional, conforme referido no preâmbulo do diploma legal, no “âmbito da emergência de saúde pública de âmbito internacional causada pela doença COVID-19”, justifica-se a necessidade de medir a temperatura corporal dos trabalhadores, já que se sabe que um dos possíveis sintomas da existência deste vírus é febre.

O empregador, dentro dos seus deveres fundamentais, tem o dever de proporcionar boas condições de trabalho, protegendo a segurança e saúde do trabalhador. Este, por seu lado, também tem de respeitar as regras sobre segurança e saúde no trabalho.

Tendo em atenção este quadro normativo, defende-se a possibilidade de realização deste controlo. Assim, a questão que se coloca é sobre como e de que forma pode ser realizado o mesmo. E aqui parece-nos fundamental lembrar o previsto no RGPD, mas também o previsto no art. 19.º do CT, que estabelece, sob a epígrafe Testes e exames médicos, que “1 – Para além das situações previstas em legislação relativa a segurança e saúde no trabalho, o empregador não pode, para efeitos de admissão ou permanência no emprego, exigir a candidato a emprego ou a trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem, devendo em qualquer caso ser fornecida por escrito ao candidato a emprego ou trabalhador a respetiva fundamentação.

2 – O empregador não pode, em circunstância alguma, exigir a candidata a emprego ou a trabalhadora a realização ou apresentação de testes ou exames de gravidez.

 3 – O médico responsável pelos testes e exames médicos só pode comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a atividade[5].

4 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.ºs 1 ou 2.”

Assim, quando no n.º 2 do art. 13.º-C do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, estabelece que “O disposto no número anterior não prejudica o direito à proteção individual de dados, sendo expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, salvo com expressa autorização da mesma”, parece-nos que quando o legislador se refere a não prejudicar o direito à proteção individual de dados, tem de ser interpretado no sentido de que apenas os profissionais de saúde ou sob a responsabilidade deste, e sujeitos ao sigilo profissional, poderão realizar esta medição.

Repete-se, não é proibida a medição da temperatura. A questão está na forma como será efetuada e, sobretudo, por quem será efetuada. E, atendendo ao quadro normativo aplicável, secunda-se o defendido pela CNPD, na Orientação sobre recolha de dados de saúde dos trabalhadores, quando escreve que “a necessidade de prevenção de contágio pelo novo coronavírus não legitima, sem mais, a adoção de toda e qualquer medida por parte da entidade empregadora”, assim como quando preconiza que os empregadores devem abster-se “de adotar iniciativas que impliquem a recolha de dados pessoais de saúde dos seus trabalhadores quando as mesmas não tenham base legal”.

Agora, com este diploma legal, sem dúvida, a base legal existe. O RGPD possibilita, no considerando 46, que se tratem determinados dados pessoais “se o tratamento for necessário para fins humanitários, incluindo a monitorização de epidemias e da sua propagação”, assim como no próprio considerando 54, que “O tratamento de categorias especiais de dados pessoais pode ser necessário por razões de interesse público nos domínios da saúde pública, sem o consentimento do titular dos dados. Esse tratamento deverá ser objeto de medidas adequadas e específicas, a fim de defender os direitos e liberdades das pessoas singulares”.

Atendendo a estes considerandos, o tratamento de dados de saúde pode ser realizado, mas respeitando os princípios de proteção de dados pessoais, ou seja, desde logo o princípio da finalidade legítima que está assegurado no n.º 1 do art. 13º-C, o princípio da proporcionalidade, sendo realizado pelas autoridades habilitadas e sujeitas ao sigilo profissional, e o princípio da transparência, pois têm de existir regras concretas sobre esta matéria.

Mas este artigo não deixa de suscitar-nos várias dúvidas. Assim, e desde logo, qual é a temperatura corporal normal? 37 graus? 37,5? No ordenamento jurídico italiano estabeleceu-se 37,5 graus, mas em Portugal não há qualquer referência.

Por outro lado, se o trabalhador apresentar uma temperatura corporal acima da média pode ser impedido de aceder ao local de trabalho. Ora, neste caso, qual a consequência para o trabalhador? Não parece existir aqui uma falta no conceito legal, pois o trabalhador apresenta-se no local e no tempo de trabalho para trabalhar. Há é, sim, uma ausência ordenada pela entidade empregadora, que terá de ser suportada pela mesma. E por quanto tempo? Terá o empregador de pagar estas ausências até o trabalhador saber o resultado dos testes médicos para saber se é ou não portador do vírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19?

O trabalhador que é impedido de trabalhar tem a obrigação de entrar em contacto com as entidades competentes para ir realizar um teste de deteção? Parece-nos que a resposta terá de ser afirmativa, atendendo ao dever geral que incumbe a todos os cidadãos e, neste caso particular, ao trabalhador, que também tem de cumprir com as regras de segurança e saúde no trabalho.

Mas, para quem defenda que esta medição pode ser feita por qualquer trabalhador, nomeadamente os seguranças no local de trabalho, como se conseguirá o anonimato destas decisões? E se a medição tiver de ser feita por um profissional de saúde, ou sob a sua responsabilidade, por quem está sujeito a sigilo profissional, como parece ter de ser, isso será possível, realisticamente, pragmaticamente, sobretudo no âmbito das micro e pequenas empresas?

Por outro lado, como será possível respeitar a proibição do registo da temperatura corporal associado à identidade da pessoa, quando a temperatura for acima do normal? É necessário realizar-se o registo por uma questão de saúde. Parece-nos mais um argumento para justificar que seja um técnico de saúde, obrigado ao sigilo profissional, a realizá-lo, até para depois ficar registado na ficha clínica o resultado do exame.

Outra questão ainda nos surge neste contexto. Se o resultado for positivo, terá o trabalhador de informar o empregador para que os colegas que tenham tido contacto com este trabalhador possam estar avisados e irem fazer o teste? Não deverá ser antes o médico do trabalho ou alguém responsável nesta área que deverá conduzir o processo? Não será preferível avisar-se em geral todos os trabalhadores que há um caso positivo para todos procederem à realização de teste? Na verdade, conforme se sabe de vários estudos que foram realizados, há uma percentagem de pessoas assintomáticas. Ora, numa altura em que se começa a realizar o desconfinamento, a identificação de cadeias de transmissão volta a adquirir enorme importância.

Assim, conclui-se, defendendo que é possível a realização da medição da temperatura corporal dos trabalhadores, mas com regras que respeitem sempre a proteção de dados pessoais. Na prática, as questões surgem, precisamente, na forma de conciliar a resposta positiva do legislador quanto à possibilidade de medição de temperatura corporal dos trabalhadores com a devida proteção dos seus dados pessoais. A quadratura do círculo?


[1] Sublinhado nosso, sendo que este é o que falta numa relação de trabalho.

[2] Art. 9.º, n.º 2, alínea b) do RGPD.

[3] Art. 9.º, n.º 2, alínea h) do RGPD.

[4] Negrito nosso.

[5] Negrito nosso.