Catarina Serra

Licenciada em Direito, Mestre e Doutora, na especialidade de Ciências Jurídico-Empresariais, pela Universidade de Coimbra. Agregada em Ciências Jurídicas, na especialidade de Ciências Jurídicas Privatísticas, pela Universidade do Minho. Professora Associada com Agregação da Escola de Direito da Universidade do Minho. Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça.

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1. COVID-19, legislação para a crise das empresas e transposição da Directiva sobre reestruturação e insolvência

A COVID-19 provocou uma crise com consequências muito gravosas para as empresas e para a economia. Não estamos perante uma hipótese de crise normal (crisis as usual), aquela para que está pensada a legislação para a crise. Não é possível imputá-la às empresas (a más decisões dos empresários ou a circunstâncias particulares das empresas) e só será possível superá-la por formas diferentes das habituais.

A necessidade vai sendo satisfeita em quase todos os países. O que talvez não haja é plena consciência de que as medidas adoptadas nesta ocasião não devem ser descartáveis; devem ser para ficar. As crises extraordinárias ocorrem periodicamente, fazem parte de uma espécie de rotina cíclica da vida económica (business cycles,deque falava Schumpeter). Exigem que esteja disponível, com carácter de permanência, um programa à medida, pronto a aplicar. Neste contexto, o Direito da insolvência surge como pano de fundo natural.

Nem por coincidência, está em curso, até 21 de Julho de 2021, o prazo para a transposição da Directiva (UE) 2019/1023, de 20 de Julho, sobre reestruturação e insolvência. Isto é um pretexto para uma intervenção legislativa de referência. Já é mais duvidoso que esta seja uma boa altura. Aquilo que a Directiva contém não é fácil de transpor (são muitas as decisões e pouco o tempo disponível para as ponderar). Acresce que a transposição redunda sempre numa lei nova, o que significa dificuldades acrescidas na sua aplicação. Foi, aliás, com este fundamento que, em Itália, o Decreto Liquidità, 8 de Abril de 2020, adiou, por um ano, a entrada em vigor do novo Código da Crise. Por outro lado, é possível que a Directiva não contenha tudo o que é necessário no actual cenário.

2. Para um programa extraordinário para a protecção e a reanimação de empresas em situação de crise de especial magnitude

A COVID-19 expôs que se entende ser a maior lacuna da Directiva: a ausência de um programa extraordinário para a protecção e a reanimação das empresas em situações de crise de especial magnitude.

A primeira característica deste programa é o carácter extraordinário. Assente que as crises extraordinárias dão origem a problemas extraordinários, devem existir regimes reservados e de aplicação automática nestas situações. É inspiradora a lei austríaca [art. 69(2) (a) da Insolvenzordnung], que estende o prazo para a apresentação à insolvência quando a insolvência é imputável a desastre natural, incluídas as pandemias.

As restantes duas características são a concentração e a independência.

O programa deve concentrar em sium conjunto de medidas diversificadas. Além das medidas (óbvias) da paralisação das acções e providências de tipo executivo e da suspensão da obrigação de apresentação à insolvência, é necessário garantir a manutenção dos contratos essenciais à actividade da empresa e criar medidas susceptíveis de predispor a empresa e os credores, primeiro, à renegociação das obrigações que impendem sobre a empresa e, depois, ao seu cumprimento nos (novos) moldes acordados. Para reforçar a vertente da reanimação, são importantes medidas complementares, como a concessão de protecção e de estímulos aos novos financiamentos, em particular os financiamentos dos sócios. Depois, deve ser independente de processos de insolvência ou reestruturação de empresas. Numa crise extraordinária, as empresas devem poder beneficiar daquelas medidas sem necessidade de iniciar processos deste tipo.

Existe na lei portuguesa um regime que se presta bem a estes desígnios – o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE), criado pela Lei n.º 8/2018, de 2 de Março. Depois de um ou dois ajustamentos, fáceis de efectuar, ele tem tudo o que é necessário para o desempenho da função de proteger e reanimar as empresas nestas situações extraordinárias.

3. O RERE como programa extraordinário

3.1. Os benefícios do RERE

O RERE é um regime (não um processo) extrajudicial, distinguindo-se, assim, do outro instrumento pré-insolvência disponível no ordenamento português – o Processo Especial de Revitalização (PER), que é um processo híbrido (judicial e extrajudicial).

Decompõe-se em dois regimes: o regime especial da negociação, que visa promover as negociações para obtenção um acordo de reestruturação entre a empresa e os credores, e o regime especial do acordo, que visa promover a execução do acordo. Cada um tem associada a produção de três grupos de efeitos. O acto fundamental, gerador destes efeitos / benefícios, é o depósito, na Conservatória de Registo Comercial, do protocolo de negociação, no primeiro regime, ou do acordo de reestruturação, no segundo. O RERE assenta, portanto, num binómio – o binómio “depósito / efeitos”.

O acesso ao regime especial da negociação acarreta a produção de efeitos processuais (suspensão do processo de insolvência quando a insolvência ainda não tenha sido declarada e a extinção das acções executivas para pagamento de quantia certa e a manutenção da suspensão das acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias), efeitos substantivos (insusceptibilidade de resolução dos contratos de prestação de serviços essenciais pelo período máximo de três meses) e determina ainda a suspensão do prazo para a apresentação à insolvência.

Por sua vez, o acesso ao regime especial do acordo envolve a produção de efeitos processuais (extinção dos processos judiciais respeitantes a créditos incluídos no acordo de reestruturação e dos processos de insolvência, quando a insolvência ainda não tenha sido declarada), efeitos fiscais (isenções de tributação em IRS e IRC, em IS e em IMT, facilitação da dedução de prejuízos em sede de IRC e da qualificação de certos créditos como incobráveis ou de cobrança duvidosa) e efeitos substantivos (insusceptibilidade de resolução em benefício da massa dos negócios jurídicos que envolvam a disponibilização à empresa de novos créditos pecuniários e a constituição, pela empresa, de garantias respeitantes a tais créditos, no caso de insolvência da empresa).

3.2. O RERE corresponde ao tipo de instrumentos preconizados na Directiva

Entre as razões que justificam que se eleição do RERE como base para este programa está o facto de ele corresponder aos instrumentos preconizados na Directiva.

Enquanto durarem as negociações do RERE, ficam restringidos os poderes de acção judicial dos credores, suspensa a obrigação de apresentação à insolvência e vedada a interrupção de fornecimentos essenciais à actividade da empresa. De destacar é ainda a propensão do RERE para (alguma) divisão dos credores em categorias, o relevo dado aos interesses dos trabalhadores, a promoção do recurso a ferramentas de alerta precoce e de autodiagnóstico e a protecção concedida aos novos financiamentos.

3.3. O RERE preenche os requisitos básicos do programa extraordinário

Estão, além disso, presentes no RERE as medidas necessárias para este programa.

Como se viu, num primeiro momento, o RERE propicia as negociações entre a empresa e os seus credores, paralisando as acções e providências de tipo executivo, assegurando a não interrupção dos fornecimentos essenciais à actividade da empresa e a suspensão da obrigação de apresentação à insolvência. O convite à renegociação é reforçado pelo disposto no art. 5.º do RERE, estabelecendo que são aplicáveis os Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores (Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro). Com fundamento no dever (geral) de actuação de acordo com a boa fé (Segundo Princípio Orientador), é sustentável que a empresa tem o dever de apresentar propostas razoáveis de modificação do conteúdo das relações obrigacionais e que, por sua parte, os credores têm o dever de responder razoavelmente. Num segundo momento, para assegurar o respeito das partes pelo acordo já celebrado, põe-se fim às acções e providências acima referidas, atribuem-se benefícios fiscais e concedem-se estímulos e protecção aos novos financiamentos.

3.4. O RERE é preferível ao PER: comporta menos riscos e tem (pode ter) igual alcance

É possível argumentar que o PER produz os mesmos benefícios do RERE e até vai mais longe, assegurando-os em maior grau ou oferecendo benefícios adicionais. O RERE apresenta, contudo, uma vantagem óbvia: não sobrecarrega os tribunais, pois não é processo judicial nem híbrido. E apresenta uma outra, que é fundamental na óptica da empresa: ao contrário do PER, não comporta o risco de declaração de insolvência se as negociações não chegarem a bom porto.

Em contrapartida, há – parece haver – uma fragilidade: o acordo de reestruturação só vincula as partes, por oposição ao plano de recuperação do PER, que vincula todos os credores (mesmo os que não tenham participado nas negociações ou tenham votado, a final, contra o plano).

Mas esta é uma fragilidade aparente ou fácil de superar. O art. 29.º do RERE dispõe que, se o acordo de reestruturação for subscrito por credores que representem as maiorias exigidas para a homologação judicial do plano de recuperação do PER, ou a ele vierem posteriormente a aderir credores suficientes para estas maiorias, pode ter lugar também a sua homologação judicial. Este é um procedimento do tipo fast track court approval procedures, que permite que os efeitos do acordo se estendam a todos os credores.

3.5. A necessidade de “aligeirar” os requisitos do RERE

O que falta é que, num contexto de crise extraordinária, acedam ao RERE empresas que, por causa da crise, não preenchem os requisitos normais de acesso. Concentrando a atenção no essencial (os requisitos substantivos), reduzem-se os aligeiramentos necessários a dois: baixar as exigências quanto ao âmbito de aplicabilidade do RERE e quanto à participação mínima de credores para a entrada no RERE (no regime especial da negociação).

Resulta da disciplina comum do RERE que só as empresas pré-insolventes (em situação económica difícil ou de insolvência iminente) podem submeter-se ao RERE [art. 3.º, n.º 1, al. b), do RERE]. Ainda que, afinal, esta exigência pareça reconduzir-se ao requisito (negativo) de inexistência de insolvência actual [arts. 3.º, n.º 3, e 19.º, n.º 2, al. a), do RERE], a verdade é que, por via dela, o RERE não é hoje um recurso acessível à maioria das empresas portuguesas (insolventes nesta altura).

Para alterar as coisas basta admitir que acedam também empresas insolventes quando a sua insolvência se deva à crise extraordinária. Cabe notar que a aplicabilidade do RERE a empresas insolventes não é inédita. Durante 18 meses a contar da data de entrada em vigor do RERE, puderam recorrer ao RERE empresas insolventes (art. 35.º, n.º 1, do RERE), o que comprova que, além de utilidade, ele tem aptidão para se aplicar no cenário alternativo da insolvência, sem prejuízo para o seu funcionamento como instrumento pré-insolvencial.

É preciso, no entanto, algum cuidado para assegurar que a medida se aplica nos casos (extraordinários) em que se justifica mas se aplica em todos eles. O meio mais comum para realizar o primeiro objectivo é a imposição de requisitos (positivos). Mas estes fazem recair sobre as empresas o ónus da prova, o que as sobrecarrega excessivamente e pode fazer perigar a realização do segundo objectivo.

Uma fórmula alternativa é a que foi recentemente usada na Alemanha para a suspensão da obrigação de apresentação à insolvência (§ 1 da COVID-19 Insolvenzaussetzungsgesetz, 27 de Março de 2020). Dispõe-se aí que esta obrigação fica provisoriamente suspensa mas que a suspensão não se aplica quando a insolvência não é uma consequência da crise COVID-19 ou quando não haja perspectivas de evitar a insolvência, presumindo-se que a insolvência é consequência da crise COVID-19 sempre que, em 31 de Dezembro de 2019, a empresa não estivesse em insolvente ou houvesse perspectivas de a evitar a insolvência. Aproveitando esta fórmula, o ideal é, então, a consagração da medida com ressalvas, reforçando o seu carácter extraordinário, mas, ao mesmo tempo, conferindo-lhe um certo automatismo. Fixando requisitos, pela negativa, basta a verificação de um deles (não existir um nexo causal entre a insolvência e a crise extraordinária ou não existirem perspectivas de evitar a insolvência) para afastar a aplicação da medida. Os dois requisitos positivos daqui resultantes são cumulativos (a existência de um nexo causal entre a insolvência e a crise e a existência de perspectivas de evitar a insolvência) mas estão facilitados por presunções. É razoável, de facto, presumir que empresas que não estavam insolventes ou não tinham problemas afins A.C. (antes da crise) são empresas cuja situação D.C. (depois da crise) é uma consequência directa da crise, o que, por sua vez, indicia uma insolvência temporária e superável.

O segundo “aligeiramento” necessário respeita ao regime especial da negociação. O art. 6.º, n.º 1, do RERE dispõe que o depósito do protocolo de negociação na Conservatória do Registo Comercial deve ser promovido pela empresa e por credor ou credores que representem, pelo menos, quinze por cento do passivo não subordinado. Tendo em conta que a exigência homóloga é mais baixa no PER, é razoável a sua nivelação por esta, ou seja, a redução a dez por cento do passivo não subordinado.

3.6. A oportunidade para favorecer o autofinanciamento

Outras pequenas alterações elevariam as probabilidades de o RERE ser bem-sucedido no desígnio de reanimar as empresas. Uma das mais importantes prende-se com os estímulos ao autofinanciamento, em especial os empréstimos dos sócios, o que implica a remoção de obstáculos e a criação de benefícios.

Assente que a iliquidez é um resultado inevitável das crises extraordinárias, o heterofinanciamento deve ser diminuído. As ofertas de crédito são escassas ou têm taxas demasiado elevadas; por estar já sobreendividada, a maioria das empresas não tem condições para as aceitar. Por outro lado, os terceiros, seja quando concedem, seja quando investem no capital social, participando, nomeadamente em operações de turnaround, esperam retirar do financiamento o máximo proveito e não perseguem a recuperação da empresa como um fim em si mesmo. Depois de uma crise como a COVID-19, o cenário é propício a estratégias loan-to-own: as empresas são viáveis com uma fragilidade única: a iliquidez (good business, bad balance sheet).

Ora, a lei portuguesa presume que os empréstimos dos sócios à sociedade são suprimentos por presunção (art. 243.º, n.ºs 2 e 3, do Código das Sociedades). No processo de insolvência da sociedade, os suprimentos são créditos subordinados e os últimos dos créditos subordinados [art. 48.º, al. g), do Código da Insolvência] , o que significa que só são pagos quando tenham sido pagos todos os outros.

A solução é afastar esta subordinação, como se fez em Itália, com o Decreto Liquidità. Todos empréstimos dos sócios (suprimentos ou não) passariam, então, a beneficiar da tutela concedida aos novos financiamentos, designadamente, são insusceptíveis de resolução em benefício da massa no caso de insolvência da empresa.

Removido este obstáculo, é preciso ainda motivar os sócios. A solução é, também aqui, razoavelmente simples. Passa por prever, expressis verbis, à imagem do que acontece no PER, uma preferência no pagamento destes créditos – uma mais forte do que o privilégio creditório mobiliário geral, que, manifestamente, não é uma compensação à altura dos riscos.