António Correia de Campos
Presidente do Conselho Económico e Social. Foi duas vezes Secretário de Estado e duas vezes Ministro da Saúde. Foi deputado à Assembleia da República e Deputado ao Parlamento Europeu. Professor Catedrático da ENSP/UNL, na situação de reforma. Estudou em Lisboa, Coimbra, França, Estados Unidos e Reino Unido. Ensinou e escreveu sobre Economia e Administração de Saúde, Gestão Pública e Políticas Públicas. Presidiu ao INA, à Comissão do Livro Branco da Segurança Social, ao Conselho Científico do Instituto Europeu de Administração Pública (Maastricht), e ao Conselho Científico da ENSP/UNL. Trabalhou no Ministério da Saúde, na FLAD, no Banco Mundial, e foi consultor de diversas organizações internacionais.
Conheça a sua obra em www.almedina.net
Várias têm sido as analogias identificadas entre a luta contra o COVID-19 e uma situação de guerra. Na verdade, apesar das similitudes, existem diferenças importantes. Comecemos pelas similitudes:
O COVID-19 veio de fora, é um invasor. Invasão rápida, invisível e silenciosa, como operação de comandos ingleses nas costas da Noruega no início da II Guerra Mundial. Uma invasão que encontra mal preparadas as defesas locais e que transforma por completo a vida da população. Uma ofensiva que ataca pessoas e deixa de fora o património, como a bomba de neutrões. Que põe dramaticamente à prova a logística nacional: trabalho, deslocações, aprovisionamentos, escolas, diversões e famílias. E paralisa a economia, desde a da vida corrente à atividade produtiva para consumo interno e externo, esvaindo poupanças e recursos. Com a continuação, divide a frente interna, depois de a ter inicialmente unido. Uma invasão que transforma a informação em arma e a opinião pública em campo de batalha. Um conflito que com o tempo gera apoiantes e detratores alimenta descrentes e idolatra generais. Louva constantemente os combatentes, mesmo quando raciona munições (testes, fardamentos, cuidados intensivos e dispositivos de proteção). Sitia, cerca e confina população civil gerando síndromes de cativeiro. Tem duração imprecisa, embora termo garantido. Cria o ambiente para se desenvolverem teorias conspirativas, demonizando inimigos externos. E finalmente congrega ouvintes e expectadores a colherem notícias a horas certas, gerando gregarismo de grupo, alimentado por ansiedade coletiva.
São muitas as diferenças, todavia. O inimigo não é humano, mas um ente biológico de dimensão insignificante, ansiando pela sobrevivência, multiplicando-se à custa do hospedeiro. Não ocupa territórios, contamina e incapacita pessoas. Não todas, as mais frágeis, sobretudo homens, castigando-os pela sua maior exposição. A estratégia da resistência do hospedeiro baseia-se apenas no conhecimento e na experiência, ambos escassos. O arsenal preventivo, vacinas, é futuro e incerto; o arsenal curativo é lateral e inseguro. As baixas são seletivas, sobretudo reféns civis. Os combatentes, apesar de expostos, são mais poupados que em outros conflitos. Desconhecem-se alianças entre os agressores, mas esperam-se novos assaltos, vencida a primeira vaga. Entre as vagas terá que haver quartel de inverno. A defesa assenta na informação, no conhecimento e no armamento psicológico dos expostos. A indisciplina nos atacados é dificilmente mantida, por não haver punições senão morais. Só a persuasão e a aceitação garantem o acatamento de instruções entre os atacados. A crítica à tática e mesmo à estratégia são livres, não há tribunal militar por o teatro de guerra ser virtual. Como os discordantes e objetores não podem ser deslocados da frente de combate, a disciplina pode enfraquecer e diluir-se. E pela primeira vez na história, o feminino predomina no comando.
Como organizar então o combate contra um inimigo desconhecido, invisível, mutante e resiliente? São pouquíssimas as armas. A mais potente será o conhecimento do agente agressor, o qual só se obtém da informação e da experiência. Eis por que é tão importante a informação em todas as guerras e sobretudo nesta sobre um desconhecido. O conhecimento vem de duas fontes, a nacional e a internacional. Da nacional impõe-se colher tudo o que tenha significado e validade, da internacional decorre a comparação entre estratégias, táticas e resultados, permitida pela distância interpretativa. Como se estivéssemos todos os dias a escrever história. De cada uma destas fontes só brota água se houver cooperação. Se a cooperação internacional está de há muito institucionalizada, a cooperação nacional será mais difícil: atores locais e nacionais de egos inflamados, cientistas à procura de uma oportunidade, tecnólogos ansiosos por serem úteis e também reconhecidos, epidemiologistas de geração espontânea e crescimento acelerado, políticos à espera de um passo em falso para atacarem o pobre exército, comentadores grávidos de sabedoria e bom senso, conselheiros acácios em cada folha. Uma taxonomia complexa, oscilando entre a generosidade e o parasitismo. Claro que é indispensável informar a comunidade de modo constante, autêntico e completo. Que é necessário corrigir em tempo útil erros e omissões. Que os egos inflamados têm que ser arrefecidos, que a defesa civil do território tem que ser mais persuasiva que repressiva. Naturalmente, haverá que temporariamente meter os partidarismos no congelador. Mas não basta. Haverá sempre que prevenir e combater a demagogia e a mentira.
Será bom que recordemos da História que as guerras nem sempre se extinguem por haver um vencedor. Muitas vezes foi por exaustão dos vencidos, levando à retirada, mesmo quando ainda poderosos: foi assim com os alemães no final da I Grande Guerra, com os franceses em Dien Bien Phu, com os americanos no Vietnam, com os soviéticos no Afganistão. Temos que conseguir exaurir o nosso adversário COVID-19, cortando-lhe as possibilidades de multiplicação.
Esta guerra é muito
diferente de outras, no que respeita ao seu esperado termo. A economia foi
abruptamente congelada e são enormes as pressões para o descongelamento. Mas a
ocasião impõe que consideremos outras pressões: as que nos aconselham outra
economia, menos agressiva do ambiente, gerando menos desigualdades, atribuindo
menos poder ao setor financeiro e mais consideração às pessoas. Não é forçoso
que de cada guerra nasça um nacionalismo feroz. Versalhes aconteceu apenas uma
vez e bastou. Sair bem ou sair mal desta guerra depende apenas de nós. Temos
condições para sairmos mais solidários e menos arrogantes, governos,
administrações e cidadãos. A recessão será enorme, todos o sabemos, mas a
vontade de reconstruir pode ser mais forte. O social-democrata Steinmein,
Presidente da Alemanha declarou há dias que a crise do COVID-19 não era uma
guerra, mas uma prova de vida da humanidade e que se todos desejarmos ter
vizinhos fortes e saudáveis poderemos sair desta provação mais reforçados na cooperação
europeia e internacional.
[1] Artigo aguardando publicação em “Revista Militar”. Agradece-se a autorização concedida para publicação neste Observatório.