João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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  1. Os requisitos do lay-off simplificado

Segundo relata a comunicação social, alguns clubes do nosso futebol profissional – os primeiros foram o Belenenses e o Chaves, mas outros se seguiram ou seguirão – terão já recorrido ao chamado “lay-off simplificado”, em ordem a reduzirem substancialmente as despesas com os salários dos seus jogadores nestes tempos de crise pandémica e de paralisação das competições, fazendo a segurança social suportar ainda uma fatia desses salários, a título de compensação retributiva, e lançando assim mão de uma figura que os próprios clubes assumem que determina a suspensão dos contratos de trabalho desportivo dos respetivos jogadores.

É discutível se os clubes preenchem os requisitos legais para recorrerem ao lay-off. As medidas excecionais previstas no diploma (o DL n.º 10-G/2020, de 26 de março) aplicam-se aos empregadores de natureza privada e aos trabalhadores ao seu serviço, afetados pela pandemia da COVID-19 e que se encontrem, em consequência, em situação de crise empresarial, mediante requerimento eletrónico apresentado pela entidade empregadora junto dos serviços da Segurança Social. E a situação de crise empresarial, pressuposto de aplicação destas medidas, encontra-se definida no art. 3.º, compreendendo, designadamente, as seguintes hipóteses: i) o encerramento total ou parcial da empresa ou estabelecimento, decorrente do dever de encerramento de instalações e estabelecimentos; ii) a paragem total ou parcial da atividade da empresa ou estabelecimento que resulte da interrupção das cadeias de abastecimento globais, ou da suspensão ou cancelamento de encomendas, que possam ser documentalmente comprovadas (pode tratar-se de uma paragem de atividade ainda não registada, mas tornada inevitável, em função do cancelamento de encomendas ou de reservas, dos quais resulte que a utilização da empresa ou da unidade afetada será reduzida em mais de 40 % da sua capacidade de produção ou de ocupação no mês seguinte ao do pedido de apoio); iii) a quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40 % da faturação no período de trinta dias anterior ao do pedido junto dos serviços competentes da segurança social, com referência à média mensal dos dois meses anteriores a esse período, ou face ao período homólogo do ano anterior ou, ainda, para quem tenha iniciado a atividade há menos de 12 meses, à média desse período.

Das três hipóteses de crise empresarial previstas pelo legislador, afigura-se que a segunda não parece encontrar aplicação em sede futebolística, ao passo que a terceira, relativa à quebra abrupta e acentuada de faturação, é decerto possível, mas terá de ser comprovada, caso a caso. Já a primeira, relativa ao encerramento de instalações e estabelecimentos, não parece também encontrar aplicação em matéria de desporto profissional, dado que o diploma que regulamenta a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, o DL n.º 2-B/2020, de 2 de abril, ao proceder à enumeração das instalações e estabelecimentos que devem ser encerrados, nos termos do seu art. 9.º, refere um vasto elenco de instalações desportivas (campos de futebol, pavilhões ou recintos fechados, estádios, etc.), mas não deixa de ressalvar, de forma expressa, as instalações destinadas à atividade dos praticantes desportivos profissionais, em contexto de treino (anexo I, n.º 3). Ou seja, o legislador permite que essas instalações desportivas continuem abertas e em funcionamento, para o treino dos atletas profissionais. E esses atletas também não estão impedidos de se deslocarem a essas instalações para treinar, pois o dever de recolhimento ou confinamento domiciliário conhece numerosas exceções, entre elas a das deslocações para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas (art. 5.º, n.º 1, al. b) do DL n.º 2-B/2020).

Vale dizer, sem prejuízo de as competições desportivas estarem suspensas, não há um dever legal de encerramento das instalações desportivas que os praticantes profissionais utilizam para o treino, pelo que, salvo melhor opinião, não se vê como este argumento do “encerramento imposto” possa sustentar o recurso ao lay-off por parte dos clubes de futebol, ao menos relativamente aos jogadores (a resposta poderá ser diferente em relação a outros trabalhadores dos clubes, como o pessoal administrativo, por exemplo). A lei autoriza o lay-off, neste caso, na hipótese de «encerramento total ou parcial da empresa ou estabelecimento, decorrente do dever de encerramento de instalações e estabelecimentos, (…) relativamente ao estabelecimento ou empresa efetivamente encerrados e abrangendo os trabalhadores a estes diretamente afetos». Ora, pelas razões expostas, os jogadores profissionais de futebol não se contam entre estes últimos, diretamente afetos ao estabelecimento encerrado, pelo contrário, as instalações desportivas afetas aos treinos encontram-se dispensadas de encerrar, por expressa autorização do legislador. De resto, no momento em que escrevo este texto a comunicação social noticia que o Nacional da Madeira irá retomar os treinos nas instalações do clube, de forma cautelosa e condicionada, cumprindo, de forma escrupulosa, o disposto no DL n.º 2-B/2020, já a partir de 13 de abril.

Em suma, ainda que, em tese, o diploma relativo ao “lay-off simplificado” se aplique também aos clubes de futebol (porque são empresas) e aos seus jogadores profissionais (porque são trabalhadores), é óbvio que para o efeito é necessário que aqueles preencham os pertinentes requisitos legais, constantes do n.º 1 do art. 3.º do DL n.º 10-G/2020. E note-se que o preenchimento destes requisitos pode ser fiscalizado, a posteriori, pelas entidades públicas competentes, como se lê no n.º 2 do mesmo art. 3.º E, se vier a verificar-se que um clube lançou indevidamente mão deste instituto, por não satisfazer os requisitos impostos pela lei, é claro que esse clube terá de restituir as importâncias indevidamente recebidas da Segurança Social, assim como terá de pagar, na íntegra, as remunerações devidas aos jogadores que, irregularmente, esse clube colocou em lay-off.         

2. Os efeitos do lay-off simplificado

Em qualquer caso, mesmo admitindo que os clubes preencham os requisitos legais para colocarem em lay-off os seus jogadores, confesso que o recurso a esta figura por parte dos clubes de futebol, na presente conjuntura, me parece surgir como uma autêntica bizarria. Sim, as competições estão temporariamente suspensas, mas isso, obviamente, não implica que os contratos de trabalho dos jogadores fiquem, também eles, suspensos. Os jogadores não estão a jogar, mas estão a treinar, estão, decerto, a ser acompanhados, monitorizados, instruídos e vigiados, dentro do possível, pelos clubes. Ora, se os contratos ficarem suspensos, em virtude do lay-off unilateralmente promovido pelos clubes, isso implica, nos termos da lei, que ficam também suspensos os deveres dos jogadores para com os clubes, aqueles deveres ligados à efetiva prestação de atividade desportiva. Os jogadores ficarão, assim, subtraídos ao poder de direção, vigilância e fiscalização da sua entidade empregadora, o que significa que ficam dispensados da obrigação de treinar, de seguir os programas de preparação física, técnica e psicológica, ministrados pelo clube, de acatar as instruções do clube sobre a forma como se devem comportar durante o período de suspensão, etc.

            O contrato de trabalho suspenso fica, como por vezes se diz, em estado de “hibernação jurídica”. É isto que os clubes pretendem com o recurso ao lay-off? Querem colocar os jogadores em hibernação? Admitem deixar, transitoriamente, de ter poder diretivo e de fiscalização e vigilância sobre os seus atletas? Visam libertar os atletas da obrigação de treinar e de lhes obedecer quanto ao modo como devem conduzir a sua preparação física, neste período de recolhimento? Não creio. Creio que os clubes só estão a ver metade do lay-off, aquele segmento que lhes agrada, de deixarem de pagar boa parte do salário aos jogadores. Mas há o outro lado da moeda da suspensão, pois se esta reduz as despesas para o clube-empregador, também liberta o jogador-trabalhador de muitas das suas obrigações para com o seu clube, máxime as respeitantes ao treino e à obediência às ordens da entidade empregadora desportiva.

            De resto, a lei vai mesmo mais longe, prevendo a «prestação de trabalho à própria entidade empregadora por trabalhador abrangido pela medida de apoio extraordinário à manutenção de contrato de trabalho na modalidade de suspensão do contrato» como forma de incumprimento das obrigações que recaem sobre a entidade empregadora beneficiária dos apoios financeiros previstos em matéria de lay-off, implicando, por isso mesmo, a restituição dos montantes entretanto recebidos pelo incumpridor (art. 14.º, n.º 1, al. g), do DL n.º 10-G/2020). Mais do que libertar o jogador-trabalhador dos seus deveres de obediência e treino, o diploma proíbe mesmo que o jogador-trabalhador preste trabalho à sua entidade empregadora desportiva, durante o período de suspensão contratual. E, como é óbvio, para um jogador profissional de futebol, treinar é, tal como jogar, trabalhar!

O que os clubes querem, aliás compreensivelmente, é outra coisa: é reduzir despesas, nesta fase difícil que todos atravessamos, mas manter os atletas, tanto quanto possível, em forma, de modo a permitir um rápido retorno à competição, assim que o vírus o permita. Para isso, não faz qualquer sentido lançarem mão de uma figura, como a suspensão do contrato, que priva os clubes do seu poder diretivo sobre os jogadores e que dispensa estes de treinarem. Para isso, o que é imperioso é dialogar, os clubes com os jogadores, a liga com o sindicato, em ordem a tentar encontrar um compromisso razoável, que satisfaça todas as partes envolvidas. Mas esse diálogo deve ocorrer com os contratos a vigorar plenamente, com os jogadores a tentarem manter a forma física e mental em patamares elevados, submetidos ao dever de se preparem diariamente segundo as instruções ministradas pelo clube e tendo este o poder de fiscalizar o cumprimento dessas instruções – coisa que, repete-se, não acontece, por definição, se o contrato de trabalho desportivo ficar suspenso.

Repito: o lay-off suspende o contrato, não se limita a reduzir o salário pago aos jogadores. Há que ter a noção exata da extensão dos efeitos da figura em causa, da “hibernação jurídica” que ela implica. Os clubes simplesmente não podem suspender os contratos dos seus jogadores nestas circunstâncias, porque vão precisar de os manter a trabalhar e a treinar (quiçá com uma pequena pausa para gozo de férias, se é que é possível gozar férias neste período de pandemia), preparando-os para que, quando a competição retomar o seu curso, daqui a dois ou três meses, eles estejam em condições de lutar pela almejada vitória. É, afinal, a tão decantada especificidade do desporto a fazer-se sentir, impedindo que, nesta sede, se utilizem instrumentos pensados para outras indústrias, outras empresas e outros trabalhadores.

Uma última nota a este respeito, menos técnico-jurídica mas, ainda assim, não despicienda. Os clubes não devem menosprezar o impacto que uma medida destas, de carácter unilateral e imposta aos jogadores, pode ter no plano psicológico. Estamos a falar de competição desportiva profissional, em que os aspetos motivacionais e o espírito de grupo pesam decisivamente, na hora de disputar os jogos. Também nesse plano, creio não haver margem para dúvidas que uma redução ou uma moratória salarial negociada, proposta, consensual, será muito mais vantajosa para o clube do que o recurso unilateral ao lay-off, imposto aos jogadores sem que estes tenham uma palavra a dizer na matéria. Aquela solução agrega e mobiliza, esta cria distância e hostiliza. Na hora da competição, isso pode pesar.