Mariana Fontes da Costa

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto na área do Direito Privado e Docente em Colaboração da Porto Business School. Investigadora do CIJE – Centro de Investigação Jurídico-Económica da Faculdade de Direito da U. Porto. 

Conheça a sua obra em www.almedina.net


Escreveu Bernhard Windscheid, em 1892[1]: “[a]tirada pela porta, ela [a problemática da alteração superveniente das circunstâncias] regressará sempre pela janela”.

            Estas palavras adquirem, hoje, todo o peso de uma profecia cumprida.

            Em menos de quinze anos, a estabilidade do tráfego negocial foi (rectius, é) posta à prova, em Portugal, por duas grandes perturbações sociais, causalmente independentes: a crise económico-financeira de 2008 e a atual pandemia de Covid-19.

Se a primeira gerou desequilíbrios graves, tuteláveis e alguns mesmo tutelados por uma rica jurisprudência nacional em matéria de alteração superveniente das circunstâncias, é expectável que o mesmo volte a ocorrer agora, em consequência da pandemia que hoje enfrentamos e que obrigou a medidas extraordinárias de contenção, com impactos incomensuráveis na economia e no dia-a-dia das empresas e das relações comerciais.

Sem prejuízo da necessidade inultrapassável de uma análise casuística, será de prever que, no que respeita à estabilidade dos contratos, as consequências da pandemia de Covid-19 e das medidas legislativas adotadas sejam enquadráveis, sobretudo, ao nível de quatro institutos jurídicos: a impossibilidade da prestação por causa não imputável ao devedor; a impossibilidade de cumprimento por frustração do interesse do credor; a mora do credor e a alteração superveniente das circunstâncias. Em alguns casos a distinção na prática será simples e o enquadramento jurídico resultará óbvio, mas é expectável que nem sempre assim ocorra, havendo situações de fronteira nas quais se suscitarão difíceis problemas de delimitação e enquadramento. Exigir-se-á, nesses casos, ao intérprete um afinado e cuidadoso exercício de exegese, que excede o âmbito destas linhas.

Neste texto centrar-nos-emos, apenas, nas situações subsumíveis ao instituto da alteração superveniente das circunstâncias.

1. Das perturbações da grande base do negócio

            A distinção entre a designada “pequena base do negócio” («kleine Geschäftsgrundlage») e “grande base do negócio” («groβen Geschäftsgrundlage») remonta aos escritos das décadas de 40 e 50 do século passado, pelo punho de Gerhard Kegel[2]. Enquanto a pequena base do negócio diz respeito a perturbações que ocorrem em períodos ditos de normalidade social, o conceito de grande base do negócio visa descrever as perturbações de largo espectro que afetam todo o equilíbrio da vida social daquela comunidade, situando-se fora do controlo e esfera de influência das partes contratantes.

            Os eventos categorizados como perturbações da grande base do negócio constituem conturbações estruturais nas condições políticas, económicas e/ou sociais da comunidade, pondo em causa o seu modo de vida e afetam uma multiplicidade de sujeitos, setores económicos e relações negociais.

No elenco de eventos associados a estas perturbações de grande espectro encontram-se eventos naturais, como sismos e erupções vulcânicas e eventos humanos como guerras, revoluções e grandes crises económicas. São normalmente apontados como exemplos paradigmáticos de perturbações da grande base do negócio no século XX as duas grandes guerras mundiais, a crise financeira de 1929 e a crise do petróleo nos anos setenta. Em Portugal destaca-se, pela sua importância, a Revolução de 25 de abril de 1974.

Já no século XXI, o problema colocou-se a propósito da crise económico-financeira de 2008, dividindo a opinião de autores e decisores judiciais. Defendemos à data, e mantemos a nossa posição, de que deve este acontecimento ser integrado no elenco das perturbações da grande base do negócio, dada a dimensão e gravidade que assumiu, a severidade das suas consequências para o setor financeiro e para o tecido empresarial português e, por consequência, o impacto com que se fez sentir em toda a vida social nacional, com o aumento da carga fiscal, o crescimento exponencial do desemprego, a retração no consumo e na concessão de crédito.

No entanto, se a qualificação da crise económico-financeira de 2008 como uma perturbação da grande base do negócio não gozou de unanimidade, o mesmo não será expectável que aconteça com o atual contexto de pandemia, que preenche, em toda a sua nefasta magnitude – entendemos – o conceito Kegeliano de perturbação da grande base do negócio.

À semelhança do que tem sido defendido por A. Menezes Cordeiro[3], consideramos que a solução mais adequada para dar resposta às perturbações geradas por uma alteração da grande base do negócio é, em primeira linha, de natureza legislativa, de modo a que o seu impacto seja assumido e diluído pela comunidade como um todo – em resposta a uma realidade que, no limite, afeta todos -, através do Estado. Isto mesmo tem procurado fazer, em certa medida, o Estado Português nas últimas semanas, através de diversos diplomas legislativos e medidas orientadas a tipos contratuais e setores específicos, como sejam o contrato de trabalho e de arrendamento e o setor financeiro.

Contudo, a natureza esparsa e direcionada das medidas legislativas adotadas até à data, resultantes de uma estratégia de política legislativa focada, sobretudo, na salvaguarda dos setores-chave à proteção das pessoas singulares e à sobrevivência e recuperação das pequenas e médias empresas, deixa antever o não acautelamento pela via legislativa, no imediato ou mesmo no futuro próximo, de uma profusão de desequilíbrios contratuais já ocorridos, em curso, ou em vias de ocorrer nos tempos que se seguem.

O instituto da alteração superveniente das circunstâncias pode e deve ser chamado a dar resposta a estes casos para os quais a legislação extraordinária não fornece resposta adequada, no respeito pela sua natureza subsidiária e pelo preenchimento estrito dos seus requisitos e no aproveitamento pleno da riqueza das soluções constantes da sua estatuição.

2. O preenchimento dos requisitos de atribuição de relevância jurídica à alteração das circunstâncias no contexto da atual pandemia

            Sem pretensões de exaustividade, e de forma muito sintética, enunciaremos, de seguida, algumas especificidades ao nível da invocação dos requisitos legais de atribuição de relevância jurídica a uma alteração das circunstâncias originada pela atual pandemia. De modo a evitar uma excessiva extensão do texto, abordaremos apenas aqueles requisitos face aos quais admitimos que a natureza e dimensão da pandemia terá impacto decisivo na avaliação do seu preenchimento. São eles: o não cabimento da alteração nos riscos próprios do contrato, a sua imprevisibilidade, a inimputabilidade do lesado e a inexigibilidade do cumprimento.

2.1. A concretização da fronteira, necessariamente casuística, entre os riscos próprios do contrato e os riscos que o excedem tem de ser aferida através da interpretação do contrato no seio do qual se haja materializado o risco, merecendo especial atenção a consideração dos riscos atribuídos por cláusula contratual e a distribuição de riscos por norma legal específica, bem como o tipo contratual, os usos e a motivação individual com reflexos no conteúdo negocial.

Fazendo um juízo probabilístico comparativo entre a delimitação dos riscos próprios do contrato num contexto de perturbações da pequena base do negócio e de perturbações da grande base do negócio, parece seguro afirmar que estas últimas terão muito maior probabilidade de excederem os riscos típicos do tráfego negocial, não encontrando cabimento na generalidade dos modelos e tipos contratuais.

Dito de outro modo, salvaguardando a necessária análise casuística inerente ao juízo de que falámos, será de prever que a atual pandemia representa um risco que excede claramente os riscos típicos associados à grande maioria dos contratos por ela afetados. Ressalvem-se os casos em que a disciplina legal do tipo contratual em causa consagra uma norma específica de distribuição de riscos e os casos em que as partes regulam expressamente o risco de epidemia através de cláusula contratual. No entanto, note-se que, mesmo nestes casos, caberá ao intérprete avaliar se a disciplina contida no contrato ou na norma jurídica em causa, e que numa interpretação declarativa parece dar resposta à situação de pandemia que vivemos, fornece, de facto, uma solução cuja rationem regulae engloba ainda uma efetiva ponderação da potencial ocorrência da alteração entretanto verificada, seja na sua identidade, seja na sua dimensão. Defendemos, assim, que a relação que se estabelece entre as regras contratuais e legais de distribuição de risco e o regime legal da alteração superveniente das circunstâncias é uma relação de complementaridade subsidiária – e não necessariamente de exclusão – do segundo face às primeiras.

Isto é particularmente relevante em sede de perturbações da grande base do negócio, as quais, pelo impacto que geram na própria raiz da vida comunitária não estão, em regra, contidas nos juízos subjetivo-normativos subjacentes à distribuição contratual ou legal de risco, salvo quando interpretação diversa seja imposta pelo seu teor específico.

2.2. Ao nível da imprevisibilidade, os principais problemas que se poderão colocar prendem-se com o facto de a pandemia não constituir um fenómeno instantâneo, antes se tendo afirmado progressivamente ao longo de um período alargado de tempo, durante o qual os indícios do seu impacto se foram tornando cada vez mais fortes pela experiência de outros países e se foi tornando cada vez mais claro o cenário que, entretanto, se materializou em Portugal.

Dir-se-á que, num juízo abstrato, para os contratos celebrados até ao final de 2019 poucas dúvidas restarão da natureza imprevisível da pandemia de Covid-19, bem como da dimensão dos seus efeitos. Com o agravamento da situação em Itália, a partir de meados de fevereiro de 2020, começa a ser duvidoso o preenchimento do requisito da imprevisibilidade da pandemia nos contratos celebrados em data posterior, sendo que dificilmente se poderá fazer este juízo afirmativo quanto aos contratos celebrados depois do dia 11 de março, data em que a OMS declara a pandemia.

Um importante ensinamento salientado na crise económico-financeira de 2008 prende-se com o impacto que poderá ter sobre o juízo de imprevisibilidade uma renovação ou renegociação de contrato anterior, ainda que com o intuito de fazer face às atuais circunstâncias. Esta nova manifestação de vontade contratual no contexto em que os efeitos da pandemia se fazem de pleno sentir põe em causa o preenchimento do requisito da imprevisibilidade, afastando, quando assim é, a possibilidade de invocação da alteração das circunstâncias em benefício do lesado (neste sentido, o acórdão do STJ, de 10-jan-2013 (processo n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1), e o acórdão da Relação de Lisboa, de 19-set-2014 (processo n.º 400/14.9YRLSB.L1-2), ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

2.3. Quanto ao requisito da inimputabilidade do lesado, admite-se que o problema não se colocará primariamente ao nível da responsabilidade pela ocorrência dos danos, mas sobretudo ao nível da delimitação da diligência que era exigível ao lesado na adoção de medidas razoáveis de mitigação dos danos; veja-se, a este propósito, o esforço de readaptação de inúmeras empresas para se manterem em atividade dentro das contingências legais.

2.4. Por fim, no âmbito da inexigibilidade do cumprimento, não será de excluir a possibilidade de, em consequência da pandemia, o cumprimento das obrigações contratuais acarretar prejuízo para ambas as partes. Nestes casos, deve ser admitido que qualquer uma delas poderá recorrer ao instituto da alteração superveniente das circunstâncias, desde que prove o preenchimento dos respetivos requisitos.

Por força da experiência resultante da jurisprudência nesta matéria a propósito da crise económico-financeira de 2008 admite-se, porém, que um dos principais problemas em matéria de inexigibilidade se prenderá com a prova da causalidade entre a ocorrência da pandemia e a materialização do prejuízo no cumprimento do contrato. Esta questão coloca-se, sobretudo, ao nível do reconhecimento de relevância negativa à existência de causa virtual, quando resulte dos elementos disponíveis e das regras da experiência que, ainda que não tivesse ocorrido a pandemia, o lesado teria, com toda a probabilidade, enfrentado igualmente o dano com que se confronta (veja-se, a este propósito, o já citado acórdão do STJ, de 10-jan-2013, no qual o Tribunal invocou que, no caso em apreço, a factualidade apurada não permitia associar as dificuldades de tesouraria da autora à crise económico-financeira, em face do grau já existente de endividamento anterior).

3. Consequências do preenchimento dos requisitos de atribuição de relevância jurídica à alteração das circunstâncias no contexto da atual pandemia

            Ao nível das consequências da verificação de uma efetiva situação de alteração superveniente das circunstâncias no contexto de uma relação contratual, a principal especificidade em sede de perturbações da grande base do negócio, como a atual pandemia, encontra-se no modo de distribuição dos prejuízos sofridos pelo lesado.

Conforme foi assinalado acima, estando em causa riscos que afetam a comunidade como um todo, o ideal será que os mesmos sejam suportados também por essa comunidade como um todo, através da intervenção estadual. Contudo, quando assim não ocorre, cabe ao julgador determinar de que modo será distribuído o prejuízo entre os contraentes. Nas palavras de M. Carneiro da Frada[4], “[a]s “grandes” alterações das circunstâncias, enquanto alterações globais dos parâmetros fundamentais da coexistência social, são na realidade um risco de todos, a que todos estão sujeitos, a cujos danos ninguém pode pretender eximir-se à custa de outrem e que não devem conduzir a permitir benefícios integrais a uma das partes com prejuízo da outra”.

Nos casos em que esteja em causa a modificação do contrato, deverá o juiz procurar uma solução que promova a distribuição equitativa, por ambas as partes, dos prejuízos que resultam da materialização dos riscos não cobertos pelo contrato, em medida que elimine a situação de inexigibilidade de cumprimento em que se encontra o lesado, mas tendo como barreira a não colocação da contraparte numa situação de inexigibilidade de cumprimento em consequência da modificação.

            Neste difícil exercício de ponderação, terá o tribunal de atender, desde logo, à vontade real das partes, manifestada através do pedido de modificação do contrato e através da contestação a esse pedido. Será igualmente relevante a vontade hipotética das partes, procurando identificar o equilíbrio contratual que as partes provavelmente teriam fixado se houvessem previsto a possibilidade de ocorrência da pandemia. Deverá igualmente atender-se ao comportamento das partes e aos investimentos feitos para atenuar a dimensão dos danos, por um lado, e ao investimento feito antes da ocorrência da pandemia, assente na confiança depositada na estabilidade do regime negocial, por outro.

Dada a natureza equitativa do juízo, parece de admitir que relevem aqui também elementos de análise económica do direito, atendendo o juiz a qual das partes corresponde ao “superior risk bearer”, ou seja, se encontra em melhor posição para evitar a propagação do risco e minorar os seus efeitos, bem como ao impacto que a assunção dos prejuízos terá sobre outras relações contratuais das partes. Sempre que adequado, deverá o juiz ponderar a fixação de uma moratória no cumprimento do contrato.

Entendemos que apenas nos casos extremos em que não seja possível encontrar elementos suficientes para determinar a medida de danos que deve caber a cada parte com base nos critérios acima indicados, e em todos os demais que encontrem na equidade a sua fonte, na senda de Kegel[5] restará ao juiz promover a repartição igualitária dos danos em causa entre os dois contraentes, sempre no limite do respeito pelas barreiras inultrapassáveis da inexigibilidade.

O futuro próximo adivinha-se difícil, mas neste período conturbado é útil recordar que o ordenamento jurídico português dispõe de instrumentos que, devidamente utilizados, contribuem para atenuar as consequências negativas que se irão fazer sentir no tráfego negocial em consequência da pandemia.

Nota: este texto retoma, à luz da realidade atual, algumas das conclusões expostas na nossa obra “Da Alteração Superveniente das Circunstâncias: em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais”, Almedina, 2017.


[1] B. Windscheid, Die Voraussetzung, Archiv für die civilistische Praxis, 78, 1892, p. 197.

[2] G. Kegel, Empfiehlt es sich, den Einfluβ grundlegender Veränderungen des Wirtschaftslebens auf Verträge gesetzlich zu regeln und in welchem Sinn? (Geschäftsgrundlage, Vertragshilfe, Leistungsverweigerungsrecht), in Gutachten für den 40. Deutschen Juristentag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1953, pp. 138 ss. e já anteriormente, de modo menos desenvolvido, G.Kegel, H. Rupp e K. Zweigert, Die Einwirkung des Krieges auf Verträge in der Rechtsprechung Deutschlands, Frankreichs, Englands und der Vereinigten Staaten von Amerika, Walter de Gruyter, Berlin, 1941.

[3] A. Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil. Vol. IX. Direito das obrigações. Cumprimento e não cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 693, nota 2509.

[4] M. Carneiro da Frada, Crise financeira mundial e alteração das circunstâncias: contratos de depósito vs. contratos de gestão de carteiras, Revista da Ordem dos Advogados, ano 69, vol. III/IV, 2009, p. 683.

[5] G. KEGEL, Empfiehlt es sich cit., pp. 202 ss.