João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra         

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Com o teletrabalho a situação típica inverte‑se, sendo o trabalho que, de algum modo, se desloca até ao trabalhador.

  1. O teletrabalho no Código do Trabalho

“Ir para o trabalho” significa, por norma, que o trabalhador se vai deslocar fisicamente para uma unidade produtiva titulada e gerida por outrem, local onde permanecerá algumas horas por dia e alguns dias por semana, cumprindo as obrigações decorrentes do respetivo contrato. Com efeito, a prestação laboral desenvolve‑se, tipicamente, no quadro de uma empresa, local onde a atividade do trabalhador é coordenada e articulada com a dos seus congéneres e onde se exercem os poderes patronais de direção, fiscalização e disciplina. Ao inserir‑se numa empresa alheia, o trabalhador tem plena consciência de que, aí, se encontra no espaço‑tempo profissional, num espaço‑tempo de heterodisponibilidade, que acaba quando, no termo da jornada laboral, o trabalhador abandona a empresa e regressa a casa, ao seu espaço‑tempo de autodisponibilidade, de privacidade e de intimidade.

Sucede, porém, que nem sempre assim é. Com efeito, cada vez mais trabalhadores vão prestando a sua atividade fora da empresa, inclusive no seu próprio domicílio. E este fenómeno tem‑se acentuado nas sociedades pós‑industriais em que vivemos (a dita “sociedade da informação”), marcadas por um forte progresso científico e tecnológico, através do chamado teletrabalho.Fala‑se, a este propósito, na “empresa virtual”, como centro de convergência de uma rede telemática (termo que exprime a fusão entre a informática e as telecomunicações) que a ligará a fornecedores, clientes e trabalhadores localizados em qualquer parte da nossa “aldeia global”.

As vantagens do teletrabalho são evidentes e têm sido evidenciadas: ele elimina ou reduz os incómodos e as despesas derivados das deslocações constantes do trabalhador para a (e da) empresa; ele diminui o stress, libertando tempo para o trabalhador e permitindo, em tese, uma melhor conciliação e articulação entre a vida profissional e a vida familiar ou privada; ele facilita (quando não possibilita) o acesso ao emprego por parte de pessoas portadoras de deficiências de ordem motora; ele proporciona uma elevação da qualidade de vida para a sociedade em geral (diminuição dos congestionamentos de trânsito, redução da poluição atmosférica, menor consumo de energia, requalificação das zonas suburbanas e, quiçá, das zonas rurais, travagem da especulação imobiliária no centro das cidades, etc.).

É claro que a estas vantagens (reais ou virtuais) há que contrapor os inegáveis inconvenientes do teletrabalho, sobretudo do teletrabalho domiciliário: maior isolamento do trabalhador, com o inerente risco de desenraizamento social, desgaste psicológico, falta de solidariedade e empobrecimento da dimensão coletiva do trabalho; alguma diluição das fronteiras entre a vida profissional e extraprofissional, o que pode ameaçar a reserva da vida privada do trabalhador ou aumentar a conflitualidade familiar, bem como provocar a ultrapassagem dos limites legais em matéria de tempo de trabalho, etc.

Dir‑se‑ia, em suma, que com o teletrabalho a situação típica inverte‑se, sendo o trabalho que, de algum modo, se desloca até ao trabalhador. E as novas tecnologias permitem, justamente, vencer a distância, sendo hoje concebível a existência de uma relação marcada por uma acentuada subordinação jurídica e por um apertado controlo da prestação por banda do empregador entre dois sujeitos separados no espaço por muitos quilómetros – a chamada telesubordinação.

É este teletrabalho subordinado, fenómeno em expansão na área dos serviços e da produção intelectual (banca, seguros, jornalismo, contabilidade, marketing, tradução, etc.), que nos interessa. O CT define‑o no art. 165.º: «Considera‑se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação». Aqui temos, pois, os dois elementos cuja combinação caracteriza o teletrabalho: o elemento geográfico ou topográfico (trabalho realizado à distância) e o elemento tecnológico ou instrumental (recurso a tecnologias de informação e comunicação).

Vendo‑se confrontado com o fenómeno do teletrabalho subordinado, o nosso legislador destinou algumas normas do CT a esta nova modalidade contratual. Desde logo, pergunta‑se: quem poderá exercer a correspondente atividade em regime de teletrabalho? Decorre do n.º 1 do art. 166.º que essa atividade tanto poderá passar a ser exercida por um trabalhador “típico” da empresa (teletrabalho interno) como por um trabalhador admitido, ab initio, em regime de teletrabalho (teletrabalho externo). Mas importa distinguir: neste último caso, a liberdade contratual vigora sem peias, vale dizer, o teletrabalhador pode sê‑lo por período determinado ou a título definitivo e as partes poderão, por mútuo acordo, modificar esse contrato, passando o teletrabalhador a laborar no regime dos demais trabalhadores da empresa, seja a título definitivo, seja por período determinado (n.º 6 do art. 166.º); naquele caso, porém, a lei mostra‑se mais cautelosa quanto à faculdade de as partes modificarem o contrato de trabalho, convertendo‑o num contrato para prestação subordinada de teletrabalho, dado que não permite que tal modificação opere a título definitivo, antes estabelece como limite máximo o período inicial de três anos, decerto por uma questão de prudência, desta forma permitindo que o teletrabalhador retome a prestação “normal” de trabalho caso alguma das partes assim o deseje no termo do prazo acordado (art. 167.º). Acresce que este acordo modificativo poderá ainda ser denunciado por qualquer dos sujeitos, durante os primeiros 30 dias da sua execução (n.º 2 do art. 167.º). O que, uma vez mais, prova que a lei encara com mais reserva a passagem do trabalho típico para o teletrabalho do que a hipótese inversa.

Em princípio, o teletrabalho funda‑se, necessariamente, no consenso de ambos os sujeitos. Assim, o empregador não pode, arrimado apenas no seu poder de direção, converter uma relação laboral típica numa relação telelaboral. E o trabalhador também não goza de tal direito de conversão unilateral. Há, porém, desvios a esta regra da necessidade de acordo: assim, verificadas que sejam as condições previstas no n.º 1 do art. 195.º do CT, o trabalhador que tenha sido vítima de violência doméstica terá direito a passar a exercer a atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada (n.º 2 do art. 166.º); por outro lado, o CT dispõe ainda que o trabalhador com filho com idade até 3 anos tem direito a exercer a atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada e a entidade patronal disponha de recursos e meios para o efeito (n.º 3 do art. 166.º), não podendo o empregador opor-se ao correspondente pedido do trabalhador (n.º 4 do mesmo preceito).

2.A COVID-19 e os seus reflexos no teletrabalho

A situação de pandemia resultante do novo Coronavirús, agente causador da doença COVID-19, levou o Governo a aprovar medidas legislativas de emergência, excecionais e temporárias, incidindo sobre os mais variados domínios de atividade, entre eles, naturalmente, o trabalho e o teletrabalho. Tal foi feito, desde logo, através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, cujo art. 29.º foi dedicado ao teletrabalho, sendo estabelecida a seguinte regra, no n.º 1 desse preceito: «Durante a vigência do presente decreto-lei, o regime de prestação subordinada de teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerido pelo trabalhador, sem necessidade de acordo das partes, desde que compatível com as funções exercidas». O n.º 2 do art. 29.º ressalva, entretanto, os trabalhadores abrangidos pelo disposto no art. 10.º do diploma, isto é, aqueles que desenvolvem atividades em serviços essenciais (desde logo, por exemplo, os profissionais de saúde, das forças e serviços de segurança e de socorro, incluindo os bombeiros voluntários, e das forças armadas, os trabalhadores dos serviços públicos essenciais ou de gestão e manutenção de infraestruturas essenciais), aos quais a regra do n.º 1 não se aplica.

Nos termos da nova regra, estabelecida no contexto de uma grave situação epidemiológica que impõe um elevado grau de isolamento social, como forma de prevenir o contágio, o recurso ao teletrabalho no domicílio surge como expediente alternativo particularmente interessante e adequado, pelo que o legislador resolveu prescindir da necessidade de consenso das partes para que o trabalho passe a ser efetuado em regime de teletrabalho. Ao abrigo do novo preceito, o empregador poderá ordenar que o trabalhador passe a prestar a sua atividade em regime de teletrabalho, assim como o próprio trabalhador poderá requerer a passagem para tal situação telelaboral, sem necessidade de acordo da contraparte. Tudo isto, claro, desde que as funções em causa assim o permitam, pois, como se sabe, há atividades que, pela sua própria natureza, não podem ser efetuadas à distância (atividades manuais, em regra), sem esquecer a ressalva dos serviços essenciais, feita pelo n.º 2 do art. 29.º

A situação pandémica que vivemos poderá, assim, funcionar como estímulo para que muitos hábitos se modifiquem quanto à forma como prestamos o nosso trabalho. A utilização mais frequente do teletrabalho pode ter chegado para ficar, mesmo quando a crise sanitária for superada e as pessoas puderem regressar aos seus tradicionais locais de trabalho. Por essa altura, talvez os hábitos já tenham mudado, talvez muitos trabalhadores e empregadores tenham descoberto que, realmente, há muito trabalho que pode ser prestado à distância, sem necessidade de deslocação quotidiana do trabalhador para a empresa. Talvez seja um efeito positivo, este. Como alguém escreveu, uma das coisas que a COVID-19 parece ter provado aos trabalhadores consiste em que “the job you were told couldn’t me done remotely can be done remotely”.

Nem tudo, porém, são vantagens. E a resposta do legislador, neste quadro excecional que atravessamos, também confirma que um dos grandes perigos do teletrabalho é o de mesclar a vida profissional com a vida privada e familiar, dissolvendo esta naquela. O teletrabalho, diz-se, permite conciliar melhor ambas, mas o risco é, justamente, o de essa suposta conciliação se traduzir numa total quebra de fronteiras entre essas distintas esferas, com a vida profissional a invadir o lar do teletrabalhador e a neutralizar, na prática, as normas que limitam a jornada de trabalho, que impõem o descanso semanal e que tentam preservar um tempo de autodisponibilidade pessoal e familiar para o trabalhador.

A forma como a lei regula a justificação de faltas ao trabalho motivadas por assistência inadiável a filho ou outro dependente a cargo menor de 12 anos, ou, independentemente da idade, com deficiência ou doença crónica, decorrentes de suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais em estabelecimento escolar ou equipamento social de apoio à primeira infância ou deficiência (art. 22.º do DL n.º 10-A/2020), ilustra bem como, para o legislador, se um pai trabalhador estiver em regime de teletrabalho, então esse mesmo pai poderá, em simultâneo, trabalhar e dar assistência ao(s) seu(s) filho(s). Na verdade, o art. 23.º desse diploma prevê a concessão de um apoio excecional mensal, ou proporcional, correspondente a dois terços da remuneração base do trabalhador, pago em partes iguais pela entidade empregadora e pela segurança social, tendo por limite mínimo uma remuneração mínima mensal garantida (RMMG) e por limite máximo três RMMG, sendo que, nos termos do seu n.º 3, «o apoio a que se refere o presente artigo é deferido de forma automática após requerimento da entidade empregadora, desde que não existam outas formas de prestação da atividade, nomeadamente por teletrabalho» (itálico nosso).

Desta forma, parece resultar do disposto nos arts. 22.º e 23.º do DL n.º 10-A/2020 que, se ambos os progenitores forem trabalhadores e um deles passar a laborar em regime de teletrabalho, o outro, se faltar ao trabalho para dar assistência a filho menor de 12 anos (ou situação equiparada), ainda que veja a sua falta ser considerada justificada, já não beneficiará do apoio excecional à família, nos termos do art. 23.º ─ por isso mesmo que, na ótica do legislador, havendo um progenitor em casa, ainda que a teletrabalhar, esse já poderá, de algum modo, ocupar-se também do filho ou filhos. Vale dizer, aparentemente, o teletrabalho, na perspetiva da lei, permitirá ao pai trabalhador ou à mãe trabalhadora fazer “dois em um”, podendo assim, em simultâneo, prestar a sua atividade laboral à distância (e, portanto, não faltar ao trabalho) e dar assistência aos seus filhos, retidos em casa em virtude do encerramento das escolas. O que, convenhamos, se pode compreender-se num contexto de emergência, em que a todos se pede um esforço adicional e até por questões de contenção de custos da segurança social, não deixa de exprimir uma certa ideia de que o teletrabalho permite, de algum modo, uma intermitência ou um abrandamento na atividade laboral, deixando algum tempo para que o trabalhador tenha um olho no trabalho e outro nos seus filhos…

Como quer que seja, o teletrabalho, que até agora não tinha experimentado o crescimento significativo, na prática, que muitos haviam prognosticado, consiste, seguramente, numa forma alternativa de prestar trabalho que vai ser estimulada pela COVID-19. Não por acaso, e na sequência da declaração do estado de emergência em Portugal, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, o Governo logo aprovou um diploma estabelecendo os termos das medidas a implementar durante a vigência do estado de emergência (Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março), no qual o teletrabalho não foi esquecido, muito pelo contrário. Nos termos do art. 6.º do referido decreto, o Governo determinou, sem ambiguidades, que «é obrigatória a adoção do regime de teletrabalho, independentemente do vínculo laboral, sempre que as funções em causa o permitam». Ou seja, mais do que uma opção, mais do que um direito que pode ser invocado perante a contraparte, o recurso ao teletrabalho, quando as funções em causa o permitam, volveu-se numa obrigação para ambos os sujeitos da relação laboral, enquanto vigorar o estado de emergência.

Em suma, as coisas vão mudar, já estão a mudar muito, em matéria de teletrabalho. E talvez os hábitos entretanto adquiridos por empresas e trabalhadores assentem arraiais, fazendo com que o mundo do trabalho, quando a pandemia desaparecer, não volte a ser exatamente aquilo que antes tinha sido. A ver vamos, se a pandemia nos permitir!