Edgar Valles

Advogado e autor de vasta obra jurídica.


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Começaram este mês a ser pagos os subsídios de renda, que irão abranger cerca de 150 000 agregados familiares durante um período de cinco anos, aliviando, deste modo, a situação económica de muitas famílias.

Seria natural que esta medida, pela sua relevância social, centrasse as atenções, mas a bruma originada pelos “casos e casinhos” que vão fazendo manchete, relegou-a para segundo plano, tal como sucedeu globalmente em relação às medidas do programa MAIS HABITAÇÃO, anunciado no dia 16 de fevereiro, aprovado na generalidade pela Assembleia da República no dia 19 de maio e, agora,  em fase de discussão na especialidade.

Ainda que a posição ideológica de cada um tenha necessariamente influência na apreciação crítica do MAIS HABITAÇÃO, impõe-se encará-lo numa perspetiva prática, mais exatamente apurar se contribui ou não para minorar a crise da Habitação em Portugal. Só depois de tal apreciação casuística, será possível concluir pela bondade ou não do pacote MAIS HABITAÇÃO

É o que faremos de seguida, após a enunciação sintética das medidas do programa, distribuídas por 10 eixos.

1. Estimular novos projetos privados de arrendamento acessível

As medidas previstas neste eixo visam a cedência de imóveis públicos, linha de financiamento bonificado, previsibilidade das rendas fixadas e incentivos fiscais.

A primeira medida (cedência de imóveis públicos) consubstancia-se na disponibilização, em regime de Contrato de Desenvolvimento para Habitação (CDH), de solos ou edifícios públicos para construção, reconversão ou reabilitação de imóveis destinados a arrendamento acessível.

A segunda medida (linha de financiamento bonificado) contribui para a sustentabilidade financeira dos projetos privados de arrendamento acessível, com a aprovação pelo Governo de uma nova linha de crédito, com garantia mútua e bonificação da taxa de juro, para projetos na área da habitação acessível..

A terceira medida (previsibilidade das rendas fixadas) impõe que a renda definida no momento da certificação do projeto, salvo vontade das partes, não pode ser alterada em função de revisões futuras das medianas do Programa de Apoio ao Arrendamento (PAA).

A quarta medida (incentivos fiscais) concretizar-se-á através da atribuição de um conjunto de benefícios fiscais.

Estas medidas são positivas. Previsivelmente os fogos habitacionais apenas estarão disponibilizados num período temporal não inferior a três anos, atendendo à demora na formalização dos contratos de desenvolvimento para habitação (CDH), licenciamento e construção.

2. Lançar uma nova geração de cooperativas de habitação acessível

As medidas inseridas neste eixo visam a cedência de imóveis públicos, linha de financiamento bonificado, parceria entre o Estado, os municípios e o setor cooperativo e novos projetos-piloto.

De um modo geral, estas medidas são análogas às do primeiro eixo, já referidas, pelo que mantemos a apreciação (positivas).

3. Dar confiança ao mercado de arrendamento

As medidas contidas neste eixo visam a redução de impostos sobre o arrendamento e uma Justiça mais rápida e eficaz, com a finalidade de dar confiança aos senhorios e incentivar o arrendamento.

Pretende-se a criação de um Balcão de Arrendamento que agregue o Balcão Nacional de Arrendamento e o Serviço de Injunção em Matéria de Arrendamento (SIMA), simplificando-se os procedimentos e criando-se um sistema integrado de acesso à informação.

É estabelecido um regime de pagamento pelo Estado da renda devida pelo arrendatário ao fim de três meses de incumprimento, desde que o senhorio já tenha dado entrada do pedido no Balcão de Arrendamento.

Desta forma, o senhorio tem a garantia que a renda lhe será paga, mesmo que a resolução do processo não seja imediata. No caso do inquilino, se houver razão social atendível, o Estado já estará no terreno desde o início do processo.

A redução fiscal torna o arrendamento mais atrativo.

Quanto ao Balcão de Arrendamento, importa que a simplificação se traduza em efetiva desburocratização, pois não está a cumprir a finalidade com que foi criado, já que os requerimentos de despejo são rejeitados sistematicamente. Quem a ele recorre não fica, regra geral, satisfeito.

Temos algumas dúvidas sobre o pagamento pelo Estado da renda devida pelo arrendatário decorridos três meses de incumprimento, pelos abusos que poderá gerar. Não seria melhor garantir antes a rápida concretização do despejo, no caso de falta de pagamento de rendas (exceto em caso de razões sociais atendíveis), em vez de transferir para o Estado o encargo do pagamento?

4. Dar confiança às pessoas- novos apoios 

As medidas contidas neste eixo concretizam-se em candidaturas abertas em contínuo no Porta 65 Jovem, criação do Porta 65 + para quebra de rendimentos, proteção dos inquilinos com arrendamentos mais antigos e arrendar para subarrendar.

Pretende-se simplificar a atribuição do Porta 65 Jovem e aumentar os beneficiários.  A atribuição do Porta 65 Jovem deixa de estar afeta a períodos de candidatura, funcionando de forma continua ao longo do ano.

Quanto ao arrendar para subarrendar, o Estado vai propor o arrendamento voluntário de imóveis a privados, nomeadamente aqueles que estejam devolutos, mas prontos a habitar, subarrendando depois a agregados da classe média, com taxas de esforço máximo de 35% e dando prioridade às situações de quebra de rendimento, famílias monoparentais e aos jovens.

Este regime pode ser utilizado pelas câmaras municipais e juntas de freguesia.

Outra medida consiste na possibilidade de o arrendatário poder registar o contrato nas Finanças, caso o senhorio não o faça no prazo legal, garantindo, com isso, a elegibilidade para os vários benefícios.

Parte substancial destas medidas já se encontra em vigor, pois constam do Decreto-Lei n.º 38/2023, de 29 de maio. Assim, o Porta 65 passou a ser de acesso contínuo este ano.
No que respeita ao arrendar para subarrendar,
os contratos de arrendamento terão, regra geral, uma duração de cinco anos, sendo renovados automática e sucessivamente por iguais períodos, salvo oposição expressa de qualquer uma das partes. As partes poderão estipular um prazo mais curto, mas este nunca poderá ser inferior a três anos.
Como vai funcionar o subarrendamento de casas pelo Estado?
Os proprietários que permitam que o Estado subarrende as suas casas terão direito ao regime fiscal previsto no PAA (Programa de Arrendamento Acessível), ou seja, beneficiarão de isenção total de tributação de IRS ou IRC sobre os rendimentos prediais.
Consideramos no geral muito positivas todas as medidas contidas neste eixo.

No caso dos contratos anteriores a 1990, cuja passagem para o NRAU fica sem efeito, está por definir o mecanismo de compensação do senhorio. Poderiam apenas ser protegidos os arrendatários que estivessem em situação de parcos recursos, em vez de a medida abranger a globalidade. Segundo os censos de 2021, dos 923 000 contratos de arrendamento existentes em Portugal, cerca de 152 000 são anteriores a 1990, o que constitui uma proporção relativamente elevada.

Poder-se-á dizer que haverá certamente abusos e conluios para obter benefícios do Estado. Mas tais riscos existem em todas as medidas de cariz social, como sucede com o RSI (Rendimento Social de Inserção).

5. Dar confiança às pessoas-apoios já em vigor

Estas medidas, já aprovadas, reforçam o apoio à renda, apoio ao crédito à habitação e disponibilização de taxas fixas pelos Bancos.

6. Dar confiança às pessoas-Combater a especulação

Medidas enunciadas como fazendo parte deste eixo: fim dos Vistos Gold, garantia de renda justa e revenda de 3 para 1 ano.

António Costa anunciou oficialmente o fim dos vistos gold no dia 16 de fevereiro, garantindo que os novos pedidos não seriam aceites desde essa data. Fê-lo com o objetivo de evitar uma corrida à obtenção deste tipo de autorizações de residência, como sucedeu aquando das alterações aos requisitos para obtenção da nacionalidade por tarde dos judeus sefarditas. Porém, o anúncio verbal não tinha força de lei, pelo que o fim dos vistos gold apenas se concretizará quando entrar em vigor legislação por aprovar na Assembleia da República.

De notar que o Parlamento Europeu aprovou em 9/03/2022, com 87 % dos votos, o fim dos vistos Gold. Foi lembrado, na discussão, que “os russos são o maior grupo de cidadãos que beneficiaram com os passaportes dourados e vistos Gold”, tendo a comissária para os Assuntos Internos, Ylva Johanson concordado que os vistos Gold “são esquemas que dão aos ricos atalhos para a liberdade de movimentos no espaço da União Europeia”. O Governo vem, assim, de encontro com a orientação do Parlamento Europeu.

A garantia de renda justa em novos contratos baseia-se na limitação de rendas em novos contratos, quando o anterior tenha sido celebrado nos últimos cinco anos.Assim, nos imóveis que já se encontravam no mercado de arrendamento nos últimos 5 anos, a renda inicial nos novos contratos não pode ultrapassar os 2 % face à renda anterior, salvo nas rendas em que se pratiquem valores enquadrados dentro do PAA.

Finalmente, a terceira medida consiste na redução do prazo de isenção de IMT nas compras para revenda, que atualmente é de três anos e passará a ser de um ano. Pretende-se, com esta medida, evitar que o proprietário, nos casos em que a aquisição se destinou a revenda, não fique muito tempo com o imóvel, colocando-o no mercado mais cedo.

Que dizer destas três medidas? São todas positivas, justificando-se plenamente. A garantia de renda justa não irá certamente possibilitar a renda esperada pelo inquilino, mas travará a especulação que se tem registado nos últimos anos, especialmente nos principais centros urbanos.

7. Mobilizar património disponível

Mais património público devoluto para habitação, linha de financiamento para a promoção de obras coercivas pelos municípios, mobilização de apartamentos devolutos há mais de dois anos para o arrendamento, cobrança de IMI urbano a prédios rústicos que estão em perímetro urbano e equilibrar o alojamento local e o arrendamento fora dos territórios de baixa densidade, eis as medidas deste eixo.

As mais controversas dizem respeito à “mobilização de apartamentos devolutos há mais de dois anos para o arrendamento” , já denominado “arrendamento coercivo, e as que relativas ao alojamento local.

As medidas relativas ao alojamento local preveem a suspensão de novas licenças e a reapreciação das atuais em 2030. Por outro lado, haverá um novo regime fiscal, com uma  contribuição especial  de 35 %.:

Quanto ao “arrendamento coercivo”, Sidónio Pardal, em publicado no “Expresso”, não foi meigo: “O arrendamento urbano coercivo aumenta a conflitualidade entre o Estado e os senhorios e ignora o problema real que se prende com os lotes por edificar e com os edifícios em estado de ruína e abandono. O Estado não tem razão nem necessidade de afrontar os direitos da propriedade privada para pôr em prática uma eficiente política de habitação, bastando fazer urbanismo e assegurar a gestão de uma oferta pública de arrendamento com escala para se constituir como uma referência merecedora de respeito” (10/03/2023). Por seu turno, as associações do setor consideraram que as medidas previstas para o alojamento local constituírão a morte de um setor pujante; a aplicação da taxa adicional “implica o encerramento do alojamento” declarou Ricardo Guimarães, do Confidencial Imobiliário (17/03/2023).

Que dizer de tais críticas contundentes?

Consideramos que, em tese, o “arrendamento coercivo” se justifica, pois é inadmissível a existência de fogos devolutos, casas fechadas durante anos e anos, quando poderiam estar arrendadas. O legislador pode prosseguir a política económica que entende necessária para o cumprimento das normas constitucionais que consagram direitos sociais, como o direito à habitação, desse que cumpra as restantes disposições constitucionais. Não se está a expropriar, mas apenas a colocar a habitação ao serviço do bem geral, sem sacrifício do proprietário, já que é paga uma renda.

Todavia, apesar de concordarmos em abstrato com o “arrendamento coercivo”, entendemos que a sociedade portuguesa não está preparada para o aceitar, atendendo à natureza sacrossanta que a propriedade privada assume em Portugal. Como tal, apesar de corajoso, constituirá um erro de “casting” avançar, tanto mais que grande parte dos municípios não tem meios para efetuar a inventariação dos fogos devolutos.

Quanto ao alojamento local, entendemos que a sua limitação deve ser definida pelas câmaras municipais, pois os responsáveis autárquicos conhecem a realidade dos seus territórios, sendo os mais aptos para a adoção de medidas restritivas. Também não podemos olvidar que os índices de crescimento económico de Portugal, que o situam em lugar cimeiro na União Europeia, se devem essencialmente ao turismo e não à existência de um aparelho produtivo nacional, há muito desmantelado com a entrada de Portugal na União Europeia e a globalização no comércio mundial. Como tal, restringir o alojamento local, penalizando-o com elevadas “contribuições extraordinárias” (35 %), quando a taxa de IRC para as pequenas e médias empresas em geral em Portugal é de 17 %, afigura-se imprudente.

8. Pacote fiscal

Este eixo prevê a descida de impostos e a isenção de mais valias na venda para amortização do crédito habitação própria.

A segunda medida tem grande alcance; ficarão isentas de IRS as mais-valias geradas na venda de terrenos para construção ou imóveis habitacionais que não sejam habitação própria e permanente do sujeito passivo ou agregado familiar, ocorridas desde 1 de janeiro de 2022, caso o valor da venda se destine a amortizar o crédito da habitação própria e permanente do proprietário ou descendentes

9. Simplex Urbanístico

As medidas previstas neste eixo visam um licenciamento mais célere mobilização de solos para habitação, mobilização de solos para habitação e simplificação de transação de edifícios para reabilitação (sem licença de utilização). No âmbito da segunda medida, os projetos de arquitetura e de especialidades deixam de estar sujeitos a licenciamento municipal, passando a haver um termo de responsabilidade dos projetistas, ficando o licenciamento municipal limitado às exigências urbanísticas.

Discordamos desta segunda medida, que priva as câmaras municipais de um efetivo controlo urbanístico, pois as normas legais e regulamentares não são suscetíveis de abranger toda a matéria construtiva e estética, sendo necessário uma apreciação técnica isenta, que não pode ser ser substituída por termos de responsabilidade subscritas por técnicos contratados pelo interessado.

10. Acelerar o PRR

Pretende-se desburocratizar o programa 1º Direito, simplificando o acesso ao programa, tendo em vista acelerar a execução dos investimentos previstos nas Estratégias Locais de Habitação e o acesso aos fundos do PRR, bem como agilizar as relações entre as entidades públicas intervenientes, designadamente o IHRU e os Municípios.

PROGRAMA AMBICIOSO E POSITIVO

Concluída esta revisitação do MAIS HABITAÇÃO, podemos extrair esta conclusão: as medidas são globalmente positivas, consubstanciando uma reforma de fundo. Não resolverão o magno problema da Habitação em Portugal, mas em muito contribuirão para  melhorar a atual situação caótica. Necessitam de alguma “afinação”.

Não devem ser liminarmente rejeitadas, seja por preconceito ideológico seja por resistência às mudanças (que ninguém ousa assumir) …

Daí que se possa considerar o programa como constituindo uma reforma estrutural profunda, de que não há memória no país, demonstrativa da possibilidade de fazer relegar para segundo plano a bruma dos “casos e casinhos” ….