Vânia Simões

Advogada, Docente e Investigadora CEDIS-NOVA. Licenciada e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa. Enquanto Docente colaborou no leccionamento de Direito das Pessoas e da Família na FDUNL, colaborando atualmente no leccionamento de Bioética e Direito da Família na ESSCVP. Pós-graduada em Direito da Saúde, Direito da Medicina & Justiça Penal pela Faculdade de Direito de Lisboa. Admitida a Doutoramento em Direito na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa


Pese embora as primeiras críticas sobre a excessiva medicalização remontarem à década de 60/70 do século passado[1], apenas em 2014, a Organização Mundial de Saúde reconheceu na Declaração sobre prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde[2], a ocorrência de violência obstétrica um pouco por todo o mundo.

Na América Latina, a regulamentação sobre violência obstétrica ocorreu no início dos anos 2000, com a Argentina (2004) e a Venezuela (2007), seguindo-se outros países latino-americanos. Atualmente, a Venezuela é o único país no mundo que penaliza a violência obstétrica, tendo sido um país pioneiro quanto à conceptualização da violência obstétrica que define como a “apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, que se expressa num tratamento desumanizado, abuso de medicalização quanto a processos naturais, levando à perda de autonomia e capacidade decisória das mulheres sobre os seus corpos e sexualidade, com impacto negativo na qualidade de vida das mulheres (tradução livre).[3].

Na Europa (tal como em Portugal), é no ano de 2019 que surge o primeiro texto sobre o tema, com a Resolução do Conselho da Europa nº 2306/2019, de 3 de outubro[4], documento em que são exaradas recomendações aos Estados para a sua erradicação, que ainda se encontram por cumprir em Portugal. Espanha (2021), Itália (2016) e França (desde 2018) também têm demonstrado empenho no combate à violência obstétrica nestes últimos anos, com recurso a políticas públicas e alterações legislativas em curso nos seus ordenamentos jurídicos.

Para fazer face ao problema de saúde pública que a violência obstétrica representa em Portugal, em que 1 em cada 3 mulheres alega ter sido vítima de violência obstétrica[5], foi aprovada a Lei 110/2019, de 9 de setembro, que outorga direitos às mulheres em contexto de saúde sexual e reprodutiva na qualidade de utentes/pacientes, sendo o diploma aplicável a entidades públicas, privadas e ao sector social. Este diploma vem reafirmar os direitos das mulheres na qualidade de utentes/pacientes, agravando ainda a responsabilidade médica civil em situações de violência obstétrica, ao prever agora direitos específicos às mulheres, inerentes à qualidade de progenitora (ou potencial progenitora) que não estavam antes consagrados no nosso ordenamento jurídico, como o direito da parturiente à mínima interferência.

Seguiu-se a Resolução 181/2021, de 28/06[6], que recomenda ao Governo a erradicação das práticas de violência obstétrica, que é o primeiro instrumento legislativo em Portugal no qual surge expressamente o termo “violência obstétrica”, termo esse que não consta no seio da Lei 110/2019, de 9 de setembro.

Antes desta Resolução, o termo violência obstétrica tinha surgido numa petição pública submetida à Assembleia da República em 2018, que solicitava a penalização da violência obstétrica em Portugal, a petição nº507/XIII/2ª[7], que não foi aprovada pelo Parlamento por ter sido levada a plenário em outubro de 2019, altura em que a Lei 110/2019, de 9 de setembro, acabava de ser aprovar. O debate português em torno da penalização da violência obstétrica iniciado em 2018, intensificou-se com a pandemia, devido às restrições que ocorreram de direitos das mulheres em contexto de assistência à gravidez, parto e puerpério. Em julho de 2021, o Projeto-lei 912/XIV/2ª[8], da iniciativa da deputada não inscrita Cristina Rodrigues, traria o tema novamente para o Parlamento, tendo a discussão sido interrompida por ocasião da dissolução da Assembleia da República, em 2021. Apesar da dissolução da Assembleia da República e da não recandidatura da ex-deputada, a mesma apresentou uma petição pública como forma de reaproveitar o Projeto-lei apresentado, para o conseguir levar ao Parlamento para aprovação[9].

Mais recentemente, o Bloco de Esquerda preparou um Anteprojeto-legislativo para incorporar o termo “violência obstétrica” na Lei 110/2019, de 9 de setembro[10], bem como, criar a Comissão Nacional para os Direitos na Gravidez e Parto, fomentar formação a públicos diversos como forma de erradicar a violência obstétrica, prevendo ainda sanções para a prática de episiotomias para profissionais de saúde e hospitais.

Embora as mulheres já tivessem tutela no que respeita aos seus direitos em contexto de assistência obstétrica anteriormente a todos estes instrumentos supra mencionados, a ausência de reconhecimento jurídico/legal do fenómeno, da sua conceptualização e a normalização da violência contra as mulheres, tem contribuído para invisibilidade da violência obstétrica nos tribunais, que tem estado ausente no debate jurisprudencial português. E é este o breve retrato legislativo acerca da violência obstétrica em Portugal.


[1] Este debate foi levantado por diversos autores como Foucault – 1973, Arms -1975, Rich-1976, Martin 1987, Katz Rothman 1991, Mitford 1992, Davis-Floyd e Dumit – 1998. Porém, o Women’s Health Movement também desempenharia um importante papel na afirmação dos direitos reprodutivos das mulheres, em que se reivindicou sexualidade para além da reprodução para as mulheres, o que passava pelo reconhecimento do direito ao aborto, mas também à contraceção.

[2]Disponível em https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf

[3] Art. 15º nº 13 da Lei Venezuelana nº38.668 de 23 de abril de 2007

[4] http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=28236&lang=en

[5] Segundo estatísticas da 2ª edição do inquérito de experiências de parto em Portugal 2015-2019 realizado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.

[6] https://dre.pt/dre/detalhe/resolucao-assembleia-republica/181-2021-165865615

[7] https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=13191

[8] https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=121036

[9] https://peticaopublica.com/?pi=PT109414

[10] Disponível em https://www.esquerda.net/sites/default/files/imagens/11-2021/anteprojeto_de_lei_-_violencia_obstetrica.pdf