Mateo Scudeler
Candidato ao Doutoramento em Direito pela Universidade do Porto (FDUP). Mestre em Ciências Jurídico-Económicas pela Universidade do Porto (FDUP). Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (FD/UnB). Advogado e Professor voluntário da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Pesquisador nas áreas do Direito Fiscal, Direito Internacional e Direito Económico-Financeiro.
A secção Novos Talentos do Observatório Almedina é dedicada à divulgação de artigos de jovens talentos do mundo jurídico. O presente artigo foi baseado na tese preparada pelo autor no âmbito do Mestrado em Ciências Jurídico-Económicas | Faculdade de Direito da Universidade do Porto. “ Cinco anos de limitação constitucional do défice público no Brasil: do novo regime fiscal ao novo marco fiscal” (link para tese)
Ponto de partida: introitos
A regulamentação da despesa pública no Brasil é objeto de múltiplas normas federais, dentre as quais nomeadamente se destacam a Lei de Responsabilidade Fiscal[1] e as disposições constitucionais referentes à disciplina fiscal.
No âmbito da primeira, sobressaem a meta de resultado primário (entendido como um saldo positivo de receitas menos despesas, excetuados encargos de dívida) e a limitação da despesa com pessoal, enquanto que na ordem constitucional estão positivadas a regra de ouro[2] (impossibilidade de financiamento de despesas correntes com dívida), o teto-limite da despesa pública[3] (inicialmente instituído em 2016 e sucessivamente alterado) e os gatilhos de ajustamento fiscal automático[4] (baseados em percentis das despesas obrigatórias).
Conquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal e a regra de ouro correspondam a importantes e históricos avanços no campo da normatividade fiscal da despesa pública, foi com o Novo Regime Fiscal instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016 que a limitação do endividamento público foi alçada à estatura de norma constitucional, conduzindo a uma melhoria da percepção geral de responsabilidade orçamental e a um decaimento contínuo do incremento da dívida entre 2017 e 2019 (BRASIL, 2020, p. 17).
A pandemia do coronavírus e os seus inimagináveis impactos na ordem económica global que sucederam a partir de 2020, entretanto, consubstanciaram um revés jurídico-institucional significativo nesse cenário, levando não apenas à suspensão das normas limitadoras[5], mas também à deflagração de uma revisão estrutural dessas disposições.
Em face dessas questões, este texto dedica-se a revisitar, atualizar e avaliar pontos da análise do Novo Regime Fiscal brasileiro que foram objeto da investigação de dissertação do autor, especialmente à luz das recentes alterações promovidas no ordenamento constitucional do Brasil pelo Novo Marco Fiscal, no ano de 2021.
O Novo Regime Fiscal no contexto pré-pandémico
A Emenda Constitucional nº 95/2016, enquanto norma fiscal de natureza reforçada, melhorou a expectativa geral acerca da sustentabilidade da despesa e da solvabilidade da dívida pública brasileira, o que se notou da própria redução continuada do prêmio de risco soberano brasileiro (EMBI+ Risco-Brasil) entre 2016 e 2019[6].
Conforme destacado nas investigações técnicas de Levy e Martins (2018, pp. 2-3), apesar da manutenção de um défice elevado, já em 2017 sucedeu o declínio da trajetória de endividamento federal brasileiro, que passou de 2,1% do PIB para 1,5% do PIB no período entre 2017 e 2018.
Não obstante essa redução tenha sido possível também em razão de outras medidas alteradoras da política fiscal[7], que contribuíram para um melhor desempenho conjuntural, certo é que o limite à despesa pública federal imposto pelo Novo Regime Fiscal desempenhou o papel central dessa arquitetura de contenção, pois sua própria observância impositiva incentivou, inclusive, políticas de economia e retração em diversos setores públicos.
De acordo com dados económicos oficiais, a dívida bruta federal brasileira manteve-se estável em 77,7% do PIB entre março e novembro de 2019 (BRASIL, 2020, p. 4), havendo previsão de que alcançasse “pico de 80% do PIB em 2024”, caindo posteriormente “para 75% do PIB em 2030” (idem, p. 19).
Esse cenário estimado em janeiro de 2020 (anterior à pandemia, portanto) revelou-se deveras mais positivo do que as previsões feitas pelas mesmas autoridades fiscais ainda no ano de 2017, ocasião na qual se afirmara que, seguido o ritmo de endividamento anterior a 2016 e não havendo variação positiva da macroeconomia, a dívida bruta poderia atingir a razão de 124,5% do PIB no ano de 2030 (BRASIL, 2017, p. 12).
Todavia, a grave viragem no quadro socioeconómico global promovida pela pandemia da Covid-19, sentida no Brasil a partir de março de 2020, degradou rapidamente a melhoria acumulada, especialmente porque os parâmetros objetivos de redução do défice estabelecidos pelo Novo Regime Fiscal vinham sendo cumpridos quase que exclusivamente pelo corte de despesas discricionárias da União Federal – as quais foram vertiginosamente retomadas e aceleradas no contexto emergencial que sucedeu.
Disso se pôde constatar que, ao restringir-se a estipular parâmetros objetivos para o défice a partir de uma perspetiva puramente orçamental, a Emenda Constitucional nº 95/2016 não revisou de facto o pacto constitucional brasileiro, que continua a impor uma expansão da despesa obrigatória em moto-contínuo, sobretudo como resultado de diversas opções de prestações sociais positivas e vinculações de receitas tributárias a determinados setores que geram grandes distorções e entraves na máquina pública (SCUDELER, 2018, p. 58).
A correção dessa fragilidade, entretanto, tende a restar prejudicada (ao menos por ora) ante o diferimento da própria disciplina fiscal de limitação global-objetiva da despesa em face das noveis alterações exceptivas promovidas em razão do momento pandémico.
Pandemia e alterações recentes: o Novo Marco Fiscal
Em março de 2020, no seguimento de medidas preliminares do governo federal brasileiro para o enfrentamento da pandemia, o Congresso Nacional[8] editou o Decreto Legislativo nº 6 de 2020, que reconheceu, para os fins do artigo 65 da Lei Complementar nº 101/2000, o estado de calamidade pública federal.
A deflagração desse gatilho liberador operou-se para suspender as contagens de prazos e metas de resultados fiscais para os fins da responsabilização de autoridades públicas submetidas à Lei de Responsabilidade Fiscal.
Já em 27 de maio de 2020, após um melhor dimensionamento da extensão da crise, executivo e legislativo federais avançaram com a edição e sanção da Lei Complementar nº 173/2020, promovendo mudanças no texto da Lei de Responsabilidade Fiscal e instituindo um regime especial de derrogação das metas de responsabilidade fiscal e de endividamento para a pandemia de Covid-19.
Em síntese, as iniciativas dessa legislação[9] importaram em (1) suspensão do pagamento de dívidas contratadas entre entes federados (subnacionais) e a União, (2) restruturação das operações de crédito interno e externo junto a instituições financeiras e (3) transferência de recursos da União para entes federados (inclusive municipalidades)[10].
No curso de 2020, e partindo de projetos de emenda constitucional ao Novo Regime Fiscal que já tramitavam no Congresso Nacional desde antes da pandemia[11], o legislativo federal, provocado por iniciativas do executivo, debruçou-se sobre a revisão da normatividade fiscal instituída pela Emenda Constitucional nº 95/2016, ainda catalisando a crise pandémica como a principal razão justificadora da revisão[12].
Esse processo aperfeiçoou-se em 15 março de 2021, com a promulgação do Novo Marco Fiscal. Trata-se da Emenda Constitucional nº 109/2021, que incorporou e revogou disposições constitucionais atinentes a regras e benesses tributárias, vinculação de receitas, superávit orçamental de fundos públicos, condicionalidades da despesa e concessão de auxílio social emergencial à população de baixa-renda.
Dentre as principais inovações face ao Novo Regime Fiscal, o Novo Marco Fiscal foi além da limitação objetiva da expansão da despesa pública à inflação acumulada, estabelecendo no artigo 167-A da Constituição Federal de 1988 um critério mais amplo de equilíbrio fiscal, lastreado na relação entre despesas e receitas correntes.
Não obstante tenha constitucionalizado e reforçado em parte a lógica limitadora da Lei de Responsabilidade Fiscal, reforçando os gatilhos de acionamento e o papel fiscalizador das Cortes de Contas do país – o que, em tese, reforçaria a normatividade da responsabilidade fiscal –, a Emenda Constitucional nº 109/2021 estabeleceu, por outro lado, um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações públicas enquanto durar o período de calamidade pública pandémica, bem como um limite adicional de despesa para o exercício orçamental de 2021 na ordem de 44 mil milhões de reais[13].
As contrapartidas para manutenção do equilíbrio orçamental global[14], todavia, foram diferidas para momentos e atos legislativos futuros e incertos[15], a redundar em uma efetiva mutilação da limitação absoluta de despesa global federal originariamente instituída pelo Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional nº 95/2016).
Desafios e perspectivas
A condição de sustentabilidade das dívidas públicas é dada pela equação , “onde p* representa o saldo primário do Orçamento (isto é, sem juros), em percentagem do PIB, i a taxa de juro média paga pela dívida, y a taxa de crescimento (nominal) do PIB e b o stock de dívida, também em percentagem do PIB, no início do período” (BENTO, 2013, p. 63)
Transposta a conta para a realidade brasileira anterior à pandemia (dados de 2019, portanto), partindo-se de (1) défice primário de 1,5%[16] [p], (2) taxa de juro (SELIC) de 4,25%[17] [i], (3) crescimento médio nominal do PIB de 1%[18] [y] e (4) índice de endividamento de 77,7% do PIB [b], o desequilíbrio relacional seria manifesto, a indicar a necessidade de um superávit primário mínimo de cerca de 4% do PIB para estabilização de um curso ascendente de dívida.
Em 2021, após dois anos de flexibilizações substanciais no Novo regime Fiscal, a contrario sensu do que se esperaria, não se observou uma pioria na razão do endividamento brasileiro; ao contrário, o apurado de 2021 representou melhoria em face de 2019, não obstante algum regresso no défice primário em 2020[19].
Na verdade, o facto é que outros fatores macroeconómicos, tais quais o despenhamento do câmbio do real brasileiro em face do dólar americano, a forte inflação interna, o aumento da arrecadação tributária (esta, em boa medida, por decorrência daquela) e a abertura de espaço orçamental com a protelação do pagamento de títulos da dívida pública (precatórios federais) ajudaram fortemente no bom desempenho das contas públicas (BRASIL, 2022, pp. 16 e ss.).
Se é certo que a complexa conjuntura económica brasileira do período recente impede uma leitura exata dos impactos normativos do Novo Marco Fiscal na fiscalidade do Brasil, também o é que, juridicamente, à luz dos estudos gerais e específicos sobre a relação estreita entre disciplina fiscal e normatividade reforçada[20], as regras fiscais nacionais, especialmente quando de natureza reforçada, beneficiam as avaliações de mercado da solvabilidade e sustentabilidade das dívidas públicas, a representar, dessa feita, uma maneira eficaz de implementação da disciplina fiscal.
Especificamente no caso brasileiro em estudo, pode-se afirmar que o Novo Marco Fiscal arrisca, em certa medida, a percepção de confiabilidade do compromisso político e governamental do Brasil com a sustentabilidade e disciplina fiscal, seja pelas concessões orçamentais que faz, seja pelo curto espaço de tempo havido entre a edição do Novo Regime Fiscal (2016) e essa superveniente alteração (2021).
Rememore-se que a Emenda Constitucional nº 95/2016 congelara a expansão proporcional da dívida-PIB por dez anos (até 2026, portanto), sendo que, na metade desse caminho a Emenda Constitucional nº 109/2021 já lhe fez concessões.
Não se descura que o impacto socioeconómico da pandemia afeta a perspectiva de imutabilidade dessas normas. Tanto assim que o próprio Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia foi derrogado com justificação em um quadro orçamental europeu de recessão económica acentuada[21].
Porém, a trajetória da alteração normativa brasileira, prenunciada desde antes da pandemia pela Proposta de Emenda à Constituição n° 186/2019 – apresentada apenas três anos depois do Novo Regime Fiscal –, revela que a insegurança jurídica derivada de alterações legislativas-constitucionais de conveniência ou ocasião ainda é um risco à posição que o Brasil pretende consolidar entre as nações economicamente avançadas.
Ponto da situação: conclusões
Partindo de uma investigação qualitativa do quadro normativo constitucional brasileiro da responsabilidade fiscal e limitação do endividamento público, este breve estudo propõe-se a descrever a conjuntura atual do ordenamento jurídico do Brasil no que concerne à fiscalidade, seguindo, ato contínuo, para uma avaliação descritiva das alterações promovidas pelo Novo Marco Fiscal de 2021 no Novo Regime Fiscal de 2016.
Recorrendo ainda a instrumentos de análise económica do Direito, consubstanciados sobretudo na incorporação de conceitos, dados e cálculos económicos para demonstração de premissas ou hipóteses, o artigo pretende robustecer o argumento consequencialista de que o Direito, enquanto ferramenta reguladora da realidade, precisa ater-se a parâmetros concretos para promoção de normas eficientes.
Essa tese, por sua vez, já houvera sido desenvolvida pelo autor desde a confecção da sua dissertação de mestrado[22]. E a presente atualização avaliativa do estado da arte do ordenamento jurídico constitucional da fiscalidade brasileira, corresponde, portanto, a interessante exercício de reflexão dialética entre hipóteses a partir de desdobramentos da realidade.
No caso concreto, quer parecer que o teste redundou em confirmação das conclusões lançadas por ocasião da redação da tese originária, haja vista que, na visão do autor, as regras fiscais nacionais, especialmente quando de natureza reforçada, redundam em aumento da disciplina fiscal, a qual, por sua vez, conduz a um quadro socioeconómico mais estável e com maior responsabilidade intergeracional.
Importante relembrar, à guisa de conclusão, que, do ponto de vista jurídico, o conceito constitucional de Estado Social não é necessariamente dependente da existência de défice público. Assegurar a um determinado grupo de cidadãos o máximo de benefícios e direitos positivos, portanto, não necessariamente requer o endividamento do Estado que firma esse compromisso ou, menos ainda, a sua atuação além das possibilidades.
Trata-se de transpor para o campo orçamental do antigo princípio jurídico de origem germânica da reserva do possível, que, na realidade brasileira, apesar de alguns revezes recentes (em certa medida), tem contribuído para uma melhoria do equilíbrio fiscal estatal.
[1] Lei Complementar nº 101/2020.
[2] Artigo 167 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
[3] Emenda Constitucional nº 95/2016 (Novo Regime Fiscal)
[4] Mais recentemente alterados pela Emenda Constitucional nº 109/2021
[5] Como sucedeu com as regras de disciplina orçamental da União Europeia, a partir da derrogação geral até 31.12.2022, pelo menos, suscitada pela Comissão na sua comunicação de 20 de março de 2020 e aprovada pelos ministros de Finanças dos Estados-Membros.
[6] Para a série histórica brasileira do EMBI+ Risco-Brasil, vide dados consolidados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). In <http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=40940&module=M>.
[7] Sobretudo a devolução de recursos pelo BNDES ao Tesouro Nacional e a desvalorização cambial de cerca de 32,4% do real em face ao dólar americano no período (LEVY; MARTINS, 2018, p. 3)
[8] Formado pela reunião das câmaras alta (Senado) e baixa (Câmara dos Deputados) do parlamento brasileiro.
[9] Conforme § 1º do artigo 1º da Lei Complementar nº 173/2020.
[10] Ainda segundo o artigo 5º da lei, o valor total do auxílio financeiro aos entes federados atingiu sessenta mil milhões de reais (aproximadamente onze mil e quinhentos milhões de dólares americanos).
[11] Nomeadamente, a Proposta de Emenda à Constituição n° 186/2019.
[12] Nesse sentido, a própria ementa da Emenda Constitucional nº 109/2021 justifica a medida como sendo um mecanismo jurídico para “enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19”. In <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc109.htm>.
[13] Destinada ao custeio de auxílio social e não subordinada aos limites e gatilhos do Novo Regime Fiscal.
[14] Nomeadamente, revogação de benefícios e incentivos fiscais.
[15] Vide, por exemplo, disposições dos artigos 4º e seguintes da Emenda Constitucional nº 109/2021.
[16] Conforme dados do Tesouro Nacional expostos no Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) da IFI/Senado de janeiro de 2020, disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-ifi>.
[17] Vigente desde fevereiro de 2020, conforme dados oficiais do Banco Central do Brasil, disponíveis em: <https://www.bcb.gov.br/>.
[18] Para o ano de 2019, ainda segundo a IFI/Senado (BRASIL, 2020).
[19] Sem adentrar nas nuances e tecnicalidades económicas, os dados oficiais do Governo Federal e da Instituição Fiscal do Senado Federal podem ser encontrados, respectivamente, nos seguintes estudos e relatórios: (1) <https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:15407> (Tesouro); e (2) <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/595062/RAF60_JAN2022.pdf> (IF/Senado).
[20] No campo geral, citam-se as obras de NABAIS et al. (2013) e de IARA; WOLFF (2010), enquanto que, no campo específico, remete-se a SCUDELER (2018. Dissertação de Mestrado).
[21] Vide declaração dos ministros das Finanças da União Europeia sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento no contexto da crise Covid-19. In <https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/03/23/statement-of-eu-ministers-of-finance-on-the-stability-and-growth-pact-in-light-of-the-covid-19-crisis/>.
[22] Op. cit.